DA UNIVERSIDADE (MIGUEL TAMEN, ANTÓNIO FEIJÓ, ORTEGA Y GASSET, BILL READINGS, RATZINGER...)

 

Da Universidade

1.Certo dia, contou-se esta parábola: “Uma vez, um rei do Norte da Índia reuniu todos os cegos da cidade. Depois, fez passar um elefante diante deles. Deixou que uns tocassem na cabeça e disse: “Um elefante é assim”. Outros puderam tocar na orelha ou no dente, na tromba, no lombo, no casco, na traseira, nos pêlos da cauda. O rei, em seguida, perguntou a cada um: “Como é um elefante?”. E, segundo a parte que tinham tocado, respondiam: “é como um cesto entrançado…”, “é como um vaso…”, “é como um arado…”, “é como um armazém…”, “é como um pilar…”, “é como uma giesta…”. Então – continua a parábola – começaram a discutir, gritando: “O elefante é assim”, “não, é assim”, atiraram-se uns aos outros e começaram a lutar” (Ratzinger, na Sorbonne, 1999).

2.Não sei se no início de cada ano lectivo, nas universidades portuguesas, alunos e professores dão, hoje, continuidade a uma conversação tão interminável quanto indispensável: o diálogo sobre a missão, o papel, o objecto e os objectivos, o desígnio da instituição onde se encontram.

3.Em primeiro lugar, importaria constatar que a universidade é, historicamente, uma instituição tipicamente europeia. Significa, isto, pois, que face a outras potências e faculdades – que não a inteligência – o homem europeu decidiu viver da inteligência e a partir dela.

4.A Universidade surge na Idade Média. Na sua evolução histórica, sempre diríamos que “comparada com a medieval, a universidade contemporânea complicou o ensino profissional que aquela em gérmen proporcionava, e agregou a investigação, retirando por completo o ensino ou transmissão da cultura”. Como escrevia, já em 1930, Ortega e Gasset, sobre a Missão da Universidade (Angelus Novus), “isto foi evidentemente uma atrocidade. Funestas consequências disso que agora paga a Europa. O carácter catastrófico da situação presente europeia deve-se a que o inglês médio, o francês médio, o alemão médio são incultos, não possuem o sistema vital de ideias sobre o mundo e o homem correspondentes ao seu tempo. Essa personagem média é o novo bárbaro, atrasado em relação à sua época, arcaico e primitivo em comparação com a terrível actualidade e data dos seus problemas. Este novo bárbaro é principalmente o profissional, mais sábio do que nunca, mas mais inculto também – o engenheiro, o médico, o advogado, o cientista”.

5.Em terceiro lugar, olhando de novo para as origens da Universidade na Idade Média, cumpre sublinhar que esta não investigava. Ocupava-se muito pouco da profissão. Nela, tudo é cultura geral – teologia, filosofia, artes. Se a filosofia oferece panorâmica global, por sobre todos os outros saberes, assim que as ciências se autonomizam, logo que o conhecimento e a informação passam a ser pouco domesticáveis, e a especialização predomina na divisão do trabalho obrigatória, a fragmentação passa a ser norma.

6.Claro que ainda assim, como nota Bill Readings, em A Universidade em Ruínas (Angelus Novus), na ideia moderna de Universidade estiveram presentes a razão (kantiana) – capaz de questionar a tradição e a natureza – a ideia de cultura – com os idealistas alemães, com Humboldt aqui a ser decisivo, procurando com a wissenchaft, a ciência especulativa que é unidade subjacente a todas as actividades dos saberes específicos, a busca especulativa da unidade do conhecimento que marca um povo cultivado. Essa unidade de saberes integrados era, claro, propriedade dos gregos e está agora perdida – e a cultura literária – onde os anglo-saxónicos veriam a tal possibilidade de unidade (literatura que substitui a filosofia, nessa ordem unitária, e que cavará o fosso para as ciências exactas enquanto outra cultura, como reflectiu C.P. Snow). A Universidade contribuía para a formação de uma cultura nacional, dela se esperava a formação de um conjunto de referências comuns que entretanto a eclosão da globalização tornou desnecessária ou impraticável, contribuindo, deste modo, também – ao lermos Readings, assim cremos – para a tal a sociedade liquefeita, estilhaçada e fragmentada (onde será já a ideia de excelência, à escala planetária, feita de rankings e top´s, empresa burocratizada em que a figura do Administrador se imporá sobre a do aluno ou o professor, a ilustrar a Universidade dos nossos dias).

7. Podemos sempre actualizar o programa de Gasset – e ele pressupunha uma imagem física do mundo (Física), os termos fundamentais da vida orgânica (Biologia), o processo histórico da espécie humana (História), a estrutura e funcionamento da vida social (Sociologia), o plano do Universo (Filosofia) – mas do que certamente precisamos de fixar dele é esta ideia da cultura como o sistema vital de ideias de cada tempo, reportório de conhecimentos (e convicções) que deve dirigir efectivamente a existência de cada homem e lhe permite estar à altura dos tempos, algo para o qual a universidade é (era) fundamental. Sem este reportório actualizado, estaríamos certamente amputados, mais pobres, menos livres, mais manipuláveis, sem podermos fazer uso devido da cidadania que nos incumbe mesmo, ou sobretudo, em tempos sombrios como estes – tempos em que a sociedade deve também esperar da universidade um contributo para a tal cultura comum – de referencias éticas e estéticas, onde a ética, aliás, deve ser uma estética, para citar Miguel Veiga – onde consigamos o integrum que impeça parecermos e sermos os cegos a apalpar e definir o elefante-metáfora do mundo complexo em que vivemos e para o qual estamos tantas vezes (intelectualmente) desarmados e perdidos. O contributo da Universidade é, ainda, por esta via, o do uso renovado da razão, da cultura, da inteligência para o renovar, também, da esperança, no – neste – caos. 

Da Universidade (II)

8.A concretização do postulado socrático da necessidade de uma vida examinada correspondendo, pois, neste contexto, como vimos de assinalar, à necessidade de uma conversação, levada a cabo pela «corporação» de mestres e alunos, acerca do sentido, da missão, da ideia de universidade, poderia, entre nós, ser suscitada, ainda, por um recente contributo, em jeito de interpelação e revisão da matéria com que António Feijó e Miguel Tamen nos brindaram, no último ano, com A universidade como deve ser (FFMS).

9.Os autores em apreço deixam-nos um conjunto de incisos que, na sua parte primeira, julgo poder sintetizar do seguinte modo: i) há uma noção generalizada no debate público de que universidade é, ou deve ser igual, a licença para um emprego; ii) com tal noção, a universidade deixa de ser vista como fim em si mesmo, e adquire um mero carácter instrumental; iii) se essa noção correspondesse à realidade, se a universidade tendesse a significar, exactamente, essa licença para o emprego, então necessário seria que alguém estivesse disposto a cumprir a promessa: afinal, quem garante tal licença, e quem paga o consequente emprego (ao diplomado)?; iv) pensar que é boa, sem mais, a finalidade "emprego", adstrita à universidade, é tornar igualmente como bom qualquer emprego que se consiga (que se siga de um curso; e independentemente de como ele venha a ser valorizado pelo próprio empregado); v) não se pensa, pois, nesta ideia de universidade maioritariamente presente na sociedade que outros fins esse emprego possa permitir alcançar (por exemplo, se permite prosseguir a conversação iniciada na universidade e, muito em particular, uma vida examinada); vi) tal perspectiva, toma como assente que um curso é exclusivamente um bem privado da pessoa; vii) ora, um diploma universitário é, em realidade, "inconsequente" no sentido de que não conduz, necessariamente, a uma dada "consequência" (por exemplo, no plano laboral), é fim em si mesmo, que reconhece ganhos cognitivos e avanços no adulto em formação.

10.No sentido mais rigoroso do termo, consideram os ensaístas, nunca houve universidade no Portugal contemporâneo (bem como na grande maioria de países europeus). E porquê? Porque, muito embora possamos ter ensino universitário de elevadíssima qualidade científica e pedagógica, o confinamento mono-disciplinar dos alunos do ensino superior contraria a ideia de universidade. Esta - nos termos hegemónicos dos nossos dias europeus - é exclusivamente vocacional; a universidade, assim, apresenta-se-nos como mosaico de escolhas vocacionais. A ideia de Universidade do vice-Reitor da Universidade de Lisboa e do seu colega de Letras, dada à estampa neste livro, “funda-se em três posições simples e antigas. A primeira é a de que a universidade não deve visar fins úteis. A segunda é a de que deve oferecer aos seus alunos o acesso a todos os domínios do saber. A terceira é que deve ser autónoma de todos os poderes, e gerir-se a si mesma”. Se o curso de Geologia tiver pouca empregabilidade, por exemplo, e for curso proibido de abrir, bem pode um interessado pelo conhecimento em si mesmo querer cursar geologia: por muito que ele diga que não está interessado num emprego, ser-lhe-á respondido que essa área não pode por ele ser estudada por não ter empregabilidade, o que, além de redundar num diálogo de surdos, denota um ponto de vista do Estado sobre a ciência, como estribando-se no mais trivial sentido prático. Ora, “até mesmo do ponto de vista prático, tal negligência é imprudente, por não ser claro que eventual situação futura, lesiva da espécie, a disciplina possa ser chamada a responder”, constatam tais académicos. Que concluem este ponto do seguinte modo: “A razão maior do valor da universidade é hoje relativamente imperceptível. Pode, no entanto, ser formulada de modo preciso, mesmo se num vocabulário quase desaparecido: a criação e a aprendizagem de uma disciplina científica induzem uma forma de contentamento intelectual, e são um bem em si mesmas”.
Depois de anos de conversa sobre cursos inúteis que condenariam ao desemprego, António M.Feijó e Miguel Tamen propõem, agora, que pensemos de pernas para o ar: mesmo os que só olhem para cursos universitários do ponto de vista prático não entendem o perigo que corremos, como sociedade, pelo abandono de áreas disciplinares que o futuro poderá revelar de novo urgentes (interrompendo-se o legado de gerações de investigadores). Os olhares parciais e reducionistas, mesmo que apelativos, são quase sempre lesivos da inteligência colectiva e do «bem comum».

Pedro Miranda

(publicado no jornal I)

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