O CENTENÁRIO DE PASOLINI E A SINGULARIDADE DO SEU "EVANGELHO SEGUNDO MATEUS"

 



O CENTENÁRIO DE PIER PAOLO PASOLINI E A SINGULARIDADE DO SEU "EVANGELHO SEGUNDO MATEUS"

Homem da palavra, licenciado em Literatura pela Universidade de Bolonha (cidade natal), Professor de Letras, Pier Paolo Pasolini (1922-1975), quando entra no mundo cinematográfico é já um literato de créditos firmados (romance, poesia, crónica). E também no cinema pretende afirmar a centralidade da palavra, quer fazer um 'cinema-poesia' (movimento homónimo incluirá os estudiosos de Pasolini e aqueles que se inscrevem na mesma corrente estética). Fazer cinema, aliás, para este autor é uma outra forma de escrever – “eu escrevo poesia através do cinema”. Pasolini aplicará, de resto, o discurso indireto à câmara (de cinema) e bem pode dizer-se que também podemos ler os filmes de Pasolini.

De outra banda, deve assinalar-se, com igual vigor, a ligação de Pier Paolo Pasolini e seus filmes, à pintura. Neles, pois, as referências aos maiores mestres das artes plásticas encontram-se presentes, podendo, porventura, por antonomásia, contemplar-se, naqueles, o modo como explora, interpreta e dilucida a obra de Giotto. “Muitas das imagens dos filmes de Pasolini fazem-nos lembrar muitos dos pintores renascentistas”, observa a Professora Anabela Branco de Oliveira, diretora do Curso de Teatro da UTAD, com vastos estudos e obra publicada sobre cinema (e a relação Literatura-Cinema), conferencista em universidades internacionais de referência, formadora do Plano Nacional de Cinema, nossa guia na evocação do centenário desta personalidade maior da cultura do século XX e no perscrutar mais 'fino' de "Evangelho Segundo Mateus".

Integrando uma geração muito criativa que se depara, no pós-II Guerra Mundial, com uma Europa devastada e destruída, repleta de miséria e miseráveis, com cidades por reconstruir e um desemprego e indigência massivos, Pasolini passará, nomeadamente como vários dos autores seus contemporâneos e compatriotas (Vittorio de Sica, Luchino Visconti, Roberto Rossellini, entre outros) por uma fase 'neo-realista' – um movimento, no caso cinematográfico, que visa mostrar a realidade tal qual aquela era, a miséria, as más condições dos trabalhadores, assumindo (este tipo de cinema) como que um "carácter documental". Estamos, ademais, na presença de filmes de baixo custo, que recorrem, frequentemente, a actores não profissionais, pessoas da rua. “Ladrões de Bicicletas”, de Vittorio de Sica, foi um dos primeiros filmes que Pasolini viu e de que mais gostou (um filme no qual o próprio ladrão da bicicleta a rouba porque está na miséria; e uma bicicleta que surge, aqui, como "motor da história e como motor da relação pai-filho"). Posteriormente, cada um destes realizadores seguirá o seu próprio caminho (estético), com, em todo o caso, o grande amor pela arte - a música, a pintura, a poesia - a ser traço de união entre todos (estes autores).

Este homem que nasce no seio da alta burguesia italiana e que frequenta os meios intelectuais, homossexual assumido num tempo em que a exclusão poderia marcar a ferro uma existência – ainda por esclarecer, cabalmente, as circunstâncias da sua morte que, de algum modo, poderão ligar-se a tais contextos - escreverá, muito, no dialecto da sua terra e afirmará a necessidade de transgredir – “escandalizar é bom”, será um dos seus lemas artísticos -, tendo, frequentemente, problemas com a censura (e, não menos relevante, ele que se afirmara marxista, é expulso do Partido Comunista por “actos imorais”).
Fundamental, porém, nos filmes de Pasolini, é compreender que neles, e através deles, o artista (se) interroga sobre questões fundas como “o que é o humano?”, “o que é a sobrevivência do Homem?” e que, com eles, procura “tornar as pessoas mais humanas”.

Em “Evangelho Segundo Mateus” (como o realizador pretendia que originalmente o filme se intitulasse), “não temos uma história contada tradicionalmente”; temos uma fragmentação narrativa, com, por exemplo, “recurso a elipses” – “agora, conta-se um pedaço da história de Cristo”, depois outro, em suma, há momentos da vida de Cristo que são tratados pelo filme, mas não com uma sequência cronológica. A própria forma – fragmentação narrativa – é um modo de transgredir (aos usos tradicionais). Neste filme, adquirem uma força, um contorno, uma importância os rostos das personagens: tal como pretende o autor, atentando, devidamente, neles, “os rostos das personagens dizem tudo” (mesmo sem palavras, os olhares dizem tudo, desde o que se passa entre José e Maria ou do que perpassa a alma de Maria no momento da crucificação de Jesus). O filme, com efeito, é perpassado por grandes planos de rostos, e rostos "que não apareciam, então, no cinema" – os rostos por maquilhar das gentes do povo, os rostos não estilizados, os rostos curtidos pela dureza de vida e a erosão do tempo, os rostos desdentados dos populares. Pasolini, em "O Evangelho Segundo Mateus", pretende oferecer a figura de um Jesus plenamente humano, “determinado”, “teimoso”, assertivo, exortador, vigoroso no chamamento e na denúncia, que “quer que o sigam”. Pasolini, não obstante ter ido aos locais onde Cristo viveu, acabaria por filmar tudo, para esta sua película, em Itália, na Sicília. No entender do cineasta, aquela Itália “possui o mesmo sentido que a Palestina” (em que Jesus de Nazaré vivera) e este pretende, agora, oferecer-nos “um presépio natural”. Neste filme, não vemos cenas de sangue, Cristo a ser açoitado – a centralidade é adquirida pelas parábolas e ensinamentos de Jesus (uma vez mais, a palavra como protagonista). E note-se como, a nível musical, nesta obra cinematográfica, Pasolini tanto recorre a Bach e Mozart como a (música de) espirituais negros (uma maneira adicional de manter o jaez subversivo).
Anabela Branco de Oliveira chama, ainda, a atenção dos (futuros) espectadores deste filme, para a relação, que nele podemos observar, de Cristo com o(s) espaço(s) – o deserto e o mar, as reflexões e a ligação entre estas e aqueles espaços, a relação do espaço com a palavra; o liame da arquitectura com as pessoas; a presença de pura poesia – atenção à singularidade e surpresa da cena da menina que dança com um ar inocente (e em que parece uma noiva); os rostos a quando da ressurreição.

Assim, algum do itinerário proposto e recomendado pela Professora Anabela Branco de Oliveira que, na tarde da passada quinta-feira (24-11-2022), nos presenteou com um magnífico, muito sugestivo e instigante, com um público adolescente muito atento e interessado, revisitar da vida e obra de Pier Paolo Pasolini – e, nesta, a singularidade do seu “Evangelho Segundo Mateus”, um filme que L’Osservatore Romano, em 2014, considerou ser, provavelmente, a mais conseguida apropriação cinematográfica da figura de Jesus Cristo (mesmo que realizada por um ateu admirador de Jesus, um homem preocupado com a perda do sagrado no mundo contemporâneo).   

Pedro Miranda

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