DAS CONVERSAS DO MUSEU DA VILA VELHA ÀS "CONVERSAS DE BASTIDORES" (NO TEATRO DE VILA REAL)

 

DAS CONVERSAS DO MUSEU DA VILA VELHA ÀS "CONVERSAS DE BASTIDORES" (NO TEATRO DE VILA REAL)
1.No dia em que João Botelho sobe ao palco das “Conversas de Bastidores” (no Teatro de Vila Real), recordo as suas palavras, no Museu da Vila Velha, nos idos de 2008/2009: no seu tempo de estudante em Coimbra, um filme era visto por um conjunto de interessados “académicos”, estudantes curiosos e entusiasmados e, depois, discutido, detalhadamente, durante uma inteira semana; tal fazia parte, nobless oblige, da experiência, da vida universitária (de ampliar olhares para lá do “técnico”), do “curso”. Agora, assinalava João Botelho, um “gosto (gostei)”, “não gosto (não gostei)” é, as mais das vezes, tudo quanto fica no diálogo pós-película (entre os que ainda se deslocam a uma sala de cinema). Pedro Mexia, no Expresso, reiterá-lo-ia, aliás na senda do que podemos ler de diferentes cinéfilos e cineastas à escala internacional (“Em Nova Iorque, as salas que exibem filmes de arte e estrangeiros estão fechando. Mais de 75% dos cinemas da cidade fecharam. Antes, eu podia atravessar a rua e ser transportado para a Itália, ou para o Brasil, através de um filme. Mas isso hoje é difícil de encontrar, pois não são filmes rentáveis”, Woody Allen, “Veja”, 12-01-2022; “O Cinerama Dome e o Egyptian Theater podem virar pó (…) São dois célebres cinemas de Los Angeles, representantes de uma época em que a exibição era tão importante (…) Quando Fellini morreu, em 1993, levou a certeza de que a televisão jamais mataria o cinema. Para ver um programa de TV, bastava ligar um botão. Para ir ao cinema, havia um ritual: vestir o paletó, pegar o guarda-chuva, tomar a condução, entrar na fila e comprar o ingresso. E, quando as luzes se apagavam, mergulhar numa atmosfera de fantasmas. “Ir ao cinema é a lembrança de que estou vivo”, dizia o cineasta. As salas estão morrendo antes do cinema. (…) A pandemia completa o serviço em escala mundial. (…) Na Coreia do Sul, as telas, em vez de filmes, exibem games de batalha para três garotos com grana para alugar o espaço e ficar surdos com o som dos tiros. Sofrendo de abstinência, os cinéfilos vestem o paletó, penduram o guarda-chuva no braço e ligam o smartphone. Na sessão de hoje: “Amarcord”, de Fellini.”, Álvaro Costa e Silva, “Cinema Fantasma”, “Folha de São Paulo”, 24-04-2021, p.2.), com outras palavras: “os grandes cinemas fecharam quase todos, ir ao cinema já não é uma religião ou uma devoção, e nenhum espectador (...) conseguirá recuperar o fascínio da infância ou a vivacidade da juventude” (“Algum entusiasmo”, in “Fraco Consolo”, “Expresso”, “Revista do Expresso”, 23-11-2019, p.106). De modo mais irónico, e no qual não poderíamos deixar de nos rever, registava o poeta que João Bernard da Costa haveria de levar para a Cinemateca, em 2012, no mesmo semanário: “quando Ingmar Bergman morreu, um crítico muito respeitável decretou que se tratava de um cineasta 'antiquado', preso a 'psicodramas' amorosos e a 'especulações metafísicas'. Pois bem, eu sou tão antiquado que é disso mesmo que gosto, de psicodramas e especulações” (23/11/12, Atual).
2.As conversas do Museu da Vila Velha principiaram, vale a pena recordá-lo, por uma iniciativa, quase de tipo informal, promovida pela Quercus, nesse final da primeira década deste século. Foi do mais interessante que se passou em Vila Real, nesses anos, no que concerne ao encontro, no espaço público, dos seus cidadãos, de modo espontâneo, na publicidade do “porta a porta”, do “passa a palavra”. A associação ambientalista projectou, então, na Vila Velha, um conjunto de películas relacionadas, em sentido amplo, com o Ambiente, promovendo, de imediato (em findando cada filme), a cada sessão, um debate aberto sobre o que se acabara de ver, em tardes de Sábado de Inverno. Recordo-me bem da primeira sessão, centrada no derramamento de petróleo nos Oceanos e, muito particularmente, das brechas do Direito Internacional neste contexto, dando azo a que os corvos criminosos se eximam, neste âmbito, às suas responsabilidades (e até nisto a Goldman Sachs se encontrava metida). Na estreia, eramos nove, a organização, o entusiasmo do Rui, mais dois curiosos (dos vários universos do universo da vida). A sessão seguinte contou, já, com cerca de vinte pessoas (embora, ainda, nestas se contabilizando aquela boa cepa de vilarealenses que vão a todas, no que à cultura diz respeito); à terceira, aderiram mais de 7 dezenas de participantes; e foi sempre a crescer: mais e mais pessoas, até não caberem no espaço onde os filmes foram sendo projectados (não demasiado grande, é certo). Surgiram, neste ciclo, documentários relacionados com o abandono do Interior; vimos fitas sobre quão poucos são os que se dedicam, atualmente, à pastorícia e o peculiar mundo mental de alguns jovens pastores (o mundo foi sendo mais próximo, também, no que ao humor que nos aconchega e conforta diz respeito); experimentou-se, no olhar, a dureza do trabalho no campo – que não é aquela coisa gira, vista numas férias em cantares de lagares, em vindimas em que nos inserimos quando o rei faz anos – e os protetores de burros irromperam, igualmente com ênfase, na grande tela. Realizadores dos documentários estiveram presentes na sala. Personagens dos ‘filmes’ reais retratados falaram na primeira pessoa. O ciclo prolongou-se para lá do previsto e, a cada novo Sábado, assim que terminou esse espaço comum, fomos sentindo a falta daquele encontro de cidadania.
Posteriormente, mas pela mesma época, em tom mais formal, em conjugação de esforços entre a Câmara Municipal de Vila Real e a Delegação Regional da Cultura, outras conversas do Museu emergiram. Por lá estivemos, na charla de Rentes de Carvalho, por lá passaram Adriano Moreira, ou Luísa Dacosta. Ali, João Botelho – de quem ontem podemos ver, no Teatro Municipal de Vila Real, um requintado “O ano da morte de Ricardo Reis” – deu conta do devir cultural e dos modos de aproximação ao cinema ao longo das últimas décadas (e o que isso dirá de nós, enquanto comunidade).
Para o Rui Alves da Silva, com aquele abraço.

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