FEIÇÕES DO MUNDO (OCIDENTAL), NA TARDE DO CRISTIANISMO (HALÍK)

 

Feições do mundo (ocidental), na tarde do cristianismo

1.Se a cultura é o meio de busca de sentido, incluindo a Preocupação Suprema (ultimate concern), então ela pode ser considerada um locus theologicus, uma matéria de investigação teológica. É através da arte que damos com os grandes sonhos e, neles, os grandes anseios e aspirações humanas, não apenas de indivíduos, mas de gerações inteiras. Na medida em que a cultura é uma expressão da busca humana por sentido, então é nesse anseio, abertura e inquietação que Deus está presente; anonimamente, em expressões de abertura, desejo e esperança humana, onde não é reconhecido ou nomeado, Deus acontece (Tomás Halík, “A tarde do cristianismo”, Paulinas, 2022, pp.49-51).

2.Na vida de cada humano, no modo como cada um habita o mundo, não apenas na sua moralidade (quotidiana), mas na sua criatividade e imaginação, sentido estético ou de empatia, pode detetar-se uma fé implícita; desde logo, fé enquanto “primordial confiança ontológica” (emunah), mas, talvez afirmando de modo mais ousado, na e daquela vivência poderá, porventura, mesmo, depreender-se um determinado conteúdo de fé; em que acredita, fundamentalmente, cada pessoa: “uma pessoa pode surpreender-se com a fé implícita das suas próprias acções: de acordo com o Evangelho de Mateus, aquele que cuidou dos necessitados encontrou Cristo sem o saber” (p.20). É neste contexto que é possível falar da fé dos (ditos) «não-crentes» e da incredulidade dos (ditos) crentes: “o modo de cada pessoa ser humana é a expressão mais autêntica da sua crença ou incredulidade (…) diz mais sobre a sua fé do que aquilo que ela pensa ou diz sobre Deus” (p.21).
Quem é, então, um «crente autêntico»? “Aquele que ama” (p.208). Amor inseparável a Deus e ao próximo (amo a Deus no amor ao próximo - “o amor humano a Deus não é uma relação exclusiva com um «ser sobrenatural» para lá do horizonte do mundo”; a palavra amor, em contexto cristão, significa auto transcendência, transcendência do egoísmo e da autoabsorção -; amo o próximo por amor a Deus, não idolatrando, pois, o humano; por outro lado, “até a aceitação da graça – isto é, da vida de Deus – nos sacramentos [pense-se na eucaristia] tornar-se-ia, sem uma fé unida ao amor, apenas um ritual vazio semelhante à magia”, p.209).

3.No nosso tempo, os acessos de dogmatismos ou fanatismos “crente” ou “ateu” tendem a ser expressões bem menos frequentes do que o entrelaçamento entre “fé” e “descrença” nos mesmos espíritos (de algum modo abertos à dúvida; partindo de uma perspectiva “crente” ou “não crente” não dogmáticas, na mente do mesmo indivíduo conviverão, pois, em diferentes momentos, um “crente” e um “descrente”). Isto significa dizer que não apenas fora dos muros da Igreja, mas também no seu interior há um número crescente daqueles que poderiam ser chamados “simul fidelis et infidelis – no seu mundo interior reside uma mistura de fé e cepticismos, de confiança básica e dúvida, de questões críticas e incertezas” (p.228). Neste contexto, se poderá compreender a afirmação do Cardeal Daniélou, segundo o qual “«um cristão é sempre um pagão parcialmente baptizado»” (p.219), mas, ainda, a perspectiva, que podemos sufragar com Comte-Sponville, de que “todos estamos na situação da Aposta de Pascal, nenhum de nós se deixa convencer pela tradicional «evidência da existência de Deus». A nossa crença e incredulidade são escolhas livres” (p.261). E, todavia, se concordamos no “não sabermos” – e no “não sabermos” como “defesa contra o fanatismo e o fundamentalismo, bem como contra o nihilismo, contra o «saber» ilusório e fácil, (…) bem como contra a resignação” -, a aposta crente é a certeza de que a rejeição da esperança conduz a um mundo mais pobre: “vivo num ‘não sabermos’ com a janela aberta para o «talvez». O ar fresco da esperança pode assim fluir livremente nas minhas perguntas e nas minhas trevas. Repito: jamais, em hipótese alguma, fecharia esta janela. Temo que os ateus, pela sua livre escolha, ou seja, pela sua rejeição de Deus, da fé e da esperança, fechem essa janela do «não sabermos». Estou convencido de que a rejeição da esperança torna o mundo do incrédulo mais pobre e mais estreito. Receio que neste espaço fechado, o espaço para a espiritualidade em breve sufoque e que, sem fé e esperança, a espiritualidade ateia possa, mais cedo ou mais tarde, ficar sem fôlego” (p.261). 

Boa semana.

[no 'reparo do dia', na universidadefm, nesta semana]

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