'PORTUGAL AMORDAÇADO' E MÁRIO SOARES EVOCADOS EM MATEUS

 

Esta tarde, na Casa de Mateus, Isabel Soares, Francisco Assis, Sérgio Sousa Pinto e Álvaro Beleza evocaram “Portugal Amordaçado” - publicado, originalmente, em 1972, em língua francesa, reeditado, no último ano, pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda – e, bem assim, a vida e obra do seu autor, Mário Soares, homenageado, também com uma exposição a si dedicada, em ano de seu centenário.

 

Coube a Francisco Assis a mais substantiva e circunstanciada intervenção desta tarde, apresentando “Portugal Amordaçado”, um livro que releu recentemente, desde logo, pelo manejo da linguagem e recursos estilísticos a que recorre, como “uma extraordinária obra literária”. Para o eurodeputado, aliás, enquanto escritor/literato na política, Soares, mesmo no plano internacional, só teria paralelo com François Miterrand – “conheci grandes escritores, mas que não se envolveram na política; e conheci políticos razoáveis, mas sem a dimensão literária de Soares”. No entender de Álvaro Beleza, de resto, os mais jovens, com interesse pela causa pública, presentes numa sala hoje muito procurada em Mateus, deviam tomar nota da importância que o lastro cultural tinha em Soares e, nessa medida, emulá-lo devia ser mister em cada um que se dedique à polis, na medida em que, a seu ver, tal confere(-lhe) “uma sensibilidade” muito particular e mais ampla – do que aquela que subjaz de quem não se abeira das artes - sobre os humanos assuntos.

Cotejando sucessivas passagens do livro que anotou, Assis demorar-se-ia nos capítulos atinentes à universidade portuguesa em que o caloiro Mário Soares entrou – em Histórico-Filosóficas, Mário Soares só em Vitorino Magalhães Godinho reconheceria um Professor à altura, registando, quanto ao mais, uma mediocridade e um desinteresse completos, sendo, desta sorte, o mais interessante passado nas tertúlias estudantis (como que à margem da faculdade), recordando, a propósito da universitas de então, a blague de um seu mestre (na passagem por aquela faculdade): “esta é a única universidade no mundo por onde se entra a descer”. Para caracterizar um ambiente e uma paisagem cultural/mental, Assis considera esse capítulo de “Portugal Amordaçado” – livro que, recordou Isabel Soares, Mário Soares enviaria a Marcelo Caetano por intermédio de um amigo comum e, face ao qual, mau grado ser, então, obra proibida em Portugal, o destinatário, abrindo a gaveta do seu gabinete, mostrou como a já tinha lido e como estava profusamente sublinhada – muito relevante. Depois de Histórico-Filosóficas, Mário Soares cursaria Direito, entendendo que o mais positivo daí resultante teve que ver com o devolvê-lo a realidades mais práticas, deixando domínios mais etéreos (no humorado ping-pong da tarde, Sousa Pinto provocaria, então, Francisco Assis, afirmando que tal desiderato é o que aquele ainda tem como meta alcançar; isto, depois de, na abertura da exposição que produziu, o homem da Filosofia, acerca do posicionamento dos palestrantes na sala, ter ironizado, notando que “este é o único sítio em que eles [Sousa Pinto e Álvaro Beleza] estão à minha esquerda”).

A caracterização e as palavras fortes de Mário Soares, em “Portugal Amordaçado”, sobre Salazar, foram o lugar seguinte em que se deteve Francisco Assis que consideraria o ditador um “homem de um cinismo absoluto”, contraponto que Álvaro Beleza, no seu testemunho, faria para com a clareza de Soares. Muitas vezes, academicamente, e em rigor, o regime do Estado Novo é caracterizado como não constituindo, propriamente, um “fascismo”, mas uma elaboração que procure mitigar a sua ferocidade é rejeitada por Assis que lembra o “crime hediondo” sobre Humberto Delgado, mandado assassinar, depois das eleições de 1958, pelo ditador e, outrossim, recorda como no dia seguinte à morte de Hitler foi decretado “luto nacional”.

No pós II Guerra Mundial, a porta que se julgara aberta, também entre nós, para a democracia foi fechada – “cada vez que as eleições se aproximavam”, Salazar deixava uma aresta na porta, uma “democracia suficiente” que nunca se concluiria em real democracia, para a qual “os portugueses não estavam preparados” - com a cumplicidade das potências ocidentais (o telegrama do embaixador norte-americano, tristemente célebre, a considerar que Salazar era o menos longínquo ou o mais próximo que se poderia encontrar, em Portugal, de um democrata…). As elites do Ocidente “traíram”, então, Portugal, vincou, de modo incisivo, o antigo Presidente do Conselho Económico e Social.

Para Francisco Assis, o capítulo dedicado, em “Portugal Amordaçado”, a Humberto Delgado, conta-se entre o melhor daquela obra – no elencar de virtudes e defeitos do “general sem medo”, sempre um “homem digno”, em qualquer caso. Um ponto assinalado pelos diferentes intervenientes da mesa-redonda de Mateus passou, justamente, pela característica da cordialidade, do respeito pelos adversários, pelo combate político sem transformar o outro em inimigo assacada a Soares. Dele, as gargalhadas, a ausência de angústias, o optimismo militante – a filha Isabel diria que, das 12 vezes em que foi preso, sempre que a família o ia visitar, era Soares quem os estimulava, dizendo que o fim do regime estava próximo -, a dimensão intelectual, o carisma, a coragem, uma joie de vivre, a vontade de acção e a lucidez como elementos mais marcantes.

A recusa do luso-tropicalismo e a clara noção da necessidade da independência das colónias – os portugueses haviam emigrado muito para os Brasis e a Europa, mas não seduzidos, tanto quanto isso, por África até ao início da guerra colonial – encontram-se, já, em “Portugal Amordaçado”, tal como o desiderato de uma democracia representativa, pluralista, liberal que se afastasse de modelos totalitários. “Tudo o que se seguiu – na vida política estava já aqui!” [apontou Assis segurando o livro em apreciação].

Era o que dizia e a forma como dizia, esse não sei quê que impressionaria Álvaro Beleza – à época, militante da JSD – a quando da “revolução de veludo”, em Praga, para o onde o estudante de medicina convocara muitos jovens que assim seguiram, conjuntamente com Mário Soares, concorrendo no saudar de Vaclav Havel (mesmo não percebendo as pessoas, em Praga, o que Soares dizia, entusiasmou, aquele, a multidão; tendo-se rodeado, ao longo de toda a vida, de pessoas ligadas ao mundo das artes e da cultura, Soares ficaria amigo de Havel, homem do teatro, que viria a comprar casa em Lisboa).

Em suma, Francisco Assis vê em “Portugal Amordaçado” a melhor obra política portuguesa que conhece, “o romance de uma geração” mas com pessoas de carne e osso – em grande medida, uma história da oposição ao regime do Estado Novo -, obrigatória – “pelo menos no PS, devia ser obrigatória” -, escrita por um protagonista que foi o “grande político” que conheceu (e já não tem idade, nem vislumbra, de entre os políticos no ativo, quem possa ter envergadura próxima). Na habitual discussão sobre diferentes formas de entender a História, Assis observa a importância do indivíduo na história – “há personalidades que, por si próprias, pela sua acção, mudam o rumo da história”.

A propósito da geração que funda o PS, Sousa Pinto conta uma história divertida e eloquente - “Soares contava que sempre que ia a reuniões com socialistas a nível internacional, Felipe Gonzalez lhe dizia: ‘mas que socialistas são estes?’, nunca vi socialistas assim” – colocando em cena a origem socialista democrática portuguesa como diversa de outras, vindas, não raro, aquelas, do sindicalismo, conquanto o PS nasce “de um grupo de amigos intelectuais”. No principal ponto de Sérgio Sousa Pinto na alocução desta tarde, a ideia de que aquilo que hoje é dado como uma identificação de facto – socialismo democrático e social democracia como coincidentes, como um e o mesmo objecto – foi uma criação de Mário Soares: “ele não aderiu, não se inspirou na social-democracia; ele criou a social-democracia!” [portuguesa]. O deputado do PS afiançou – no que Álvaro Beleza corroborou, reclamando igual indagação – que quando, no nosso país, há questões políticas de fundo em decisão se coloca a seguinte interrogação: “o que faria Mário Soares nestas circunstâncias?”.  

Na tarde de Mateus – em cuja Casa Mário Soares esteve por diversas vezes -, um desfiar de pequenas histórias ainda: a filha Isabel contando que a PIDE irrompia, frequentemente, pela casa onde viveu a sua infância e adolescência bem cedo, manhãzinha, e revirava tudo mesmo no quarto das crianças, arrancando, certo dia, o cartaz de Che Guevara que Isabel conservava no quarto; o dia em que pichachens surgiram pelas paredes de Lisboa com a cabeça de Soares a prémio e identificando-o como “judeu” (assinado CCC, Clube de Caça aos Comunistas, “mas sabia-se que era a PIDE”) e a bala recebida em casa em envelope (“é apenas uma das várias que vais levar” – o que, alertado pela família, levou Soares a não regressar, nessa altura, a Portugal); os múltiplos exemplares de “Portugal ameaçado” trazidos, pela família, na mala desde Paris, onde Soares se encontrava no exílio, e a apreensão de com eles passar a fronteira, na medida em que se achavam proibidos e o carro era revistado; a ida para Itália, em paragem escolar, pela família á procura do pai, incontactável por razões de segurança; o dia, já pós 25 de Abril – contado por Sousa Pinto – em que alguém diz a Soares que “o camarada Arnaldo de Matos” está na “clandestinidade” e que deve encontrar-se com ele. Na clandestinidade quando já se está em democracia? Porquê? Para quê?, interroga-se Soares. Que aceita ir ao dito encontro. Para o fazer, tem que ser vendado. E assim sucede. Voltas e mais voltas do automóvel que o levará ao referido interlocutor. Finalmente, chegados. Soares, já fora do carro mas ainda na rua, tira a venda dos olhos. Uma senhora passa e reconhece-o: “Então, dr. Soares, o que anda a fazer na Parede?!”.

Sousa Pinto entende e compreende que Francisco Assis tenha entrado “em transe” – como o jurista definiu a intervenção daquele – com “Portugal Amordaçado”, porque o próprio, dado a estados depressivos, e conquanto se enfade e duvide do/com o projecto político em que diz inscrever-se, encontra naquele livro “uma alegria” e um renovado estímulo ao compromisso partidário. “Espero que no 25 de Novembro te ponham a falar no Parlamento”, atira Assis a Sousa Pinto. “Podes esperar sentado”, obtém, do amigo, como resposta. Assis, em definitivo, encontra no livro em apreço a clara noção, poucas vezes identificada, de como as contas públicas começaram a ser saneadas ainda durante a República (antes, portanto, do 28 de Maio).

Se Francisco Assis destaca que o livro é escrito por alguém que está longe de poder saber o que lhe iria suceder-lhe em anos vindouros – maxime, que iria chefiar Governos e alcandorar-se à Presidência da República - e, mais, o que entende como mais provável ao momento de redacção de “Portugal Amordaçado” são anos longe do país e da família, Sérgio Sousa Pinto, diversamente, descortina na obra a presença de um espírito que confia que lhe está destinado um encontro com a História (com maiúsculas). Neste contexto, Sousa Pinto recorda o que, não raramente, dizia a Soares, apreciador do debate ideológico: “deixe lá o socialismo”, porque “um dia o socialismo vai acabar e o dr. Soares há-de continuar a ser lido e estudado”.  

A melancolia em que Assis e Sousa Pinto convergem é, na revisitação de “Portugal Amordaçado”, uma mentalidade, uma subcultura descritas no livro de 1972 que, em alguma medida, permanecem no Portugal de 2024…já não “amordaçado” [exteriormente coagido] mas anestesiado [interiormente apático]. “Soares dizia que o grande milagre foi dar-se a democracia num país com tão poucos democratas” (Sousa Pinto).

 


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