PRIMO LEVI (II)
1.Num texto de 1987 para o La Stampa, inserto em “Os
que sucumbem e os que se salvam”, Primo
Levi escreve que existindo uma «diferença
moral e jurídica entre quem faz e quem deixa fazer», as forças ocidentais,
embora bombardeando várias cidades alemãs e polacas, nunca detonaram as linhas
ferroviárias que impedissem a continuação do transporte e extermínio de pessoas,
mesmo no estertor nazi: “e também é
verdade que a falta de auxílio dos Aliados se deveu a razões sórdidas,
nomeadamente ao medo de ter de alojar e manter milhões de refugiados ou
sobreviventes”.
2.O termo “holocausto” nunca agradou a Primo Levi,
considerando-o “inadequado, retórico e sobretudo errado”. Shoah foi a palavra institucionalizada pelo Knesset em 1951 para descrever os massacres dos judeus pelos nazis.
3.A “metade racional” de Primo Levi considera “não natural” a
poesia, embora primordial face à prosa e fundamental para transmitir, em
primeiro impulso, a experiência por que passara. À rigorosa busca de
objectividade em “Se Isto é um homem” (título a partir de Shemá e, com ele, indagar se
“a humanidade, no sentido mais pessoal da palavra, é preservada ou perdida, se
é recuperável ou não”), podemos apor a amargura, e até uma busca de
revanche, do sujeito poético em “Para Rodolf
Eichmann” [20 de julho, de 1960]: “Ó
filho da morte, não te desejamos a morte./Possas tu viver mais do que alguém já viveu:/Possas tu viver sem dormir cinco milhões de noites,/E ser visitado a cada noite pela dor de
cada um que viu/Fechar-se a porta
que dava para o caminho de regresso,/Em
seu redor fazer-se escuro, o ar encher-se de morte”.
4.Embora a Einaudi,
Natalia Ginzburg e Cesare Pavese, tenham recusado,
inicialmente, a publicação de “Se isto é um homem”, acabando este livro por
sair numa pequena editora (edição de 2500 exemplares, dos quais se venderam
1400), logo mereceu algumas críticas elogiosas bem significativas, como a de Italo Calvino. O livro seria traduzido,
em 1961, para alemão, por Hans Reidt,
um homem que fora desertor da Wehrmacht e viria a combater na resistência
antifascista, nas brigadas Giustizia e Libertá, tal como Levi.
5.Primo Levi que, desde a libertação do campo de concentração e extermínio de Auschwitz (lager de Manowitz), até conseguir regressar
a casa demoraria cerca de 10 meses, e a quem os campos privariam, em definitivo, de um vínculo religioso,
regressará, pela primeira vez a Auschwitz em 1965 (a segunda, em 1982), viria a
ser tradutor de Lévi-Strauss e de Kafka (“O Processo”): “Kafka era judeu, eu sou judeu. ‘O Processo’ começa com uma detenção não
planeada e injustificada, a minha carreira começa com uma detenção não planeada
e injustificada, Kafka é um autor que admiro, não o amo e admiro-o, temo-o,
como uma grande máquina que se aproxima de nós, como o profeta que te anunciará
o dia da tua morte (…) Na minha escrita, para o bem e para o mal, sabendo-o ou
não, sempre tive como objectivo a passagem do obscuro ao claro (…) Kafka faz o caminho inverso: desfia
incessantemente as alucinações que retira de camadas incrivelmente profundas e
nunca as filtra”.
6.Primo Levi nunca foi sionista, mostrando, contudo, apoio à
existência do Estado de Israel (que pensava um estado agrícola). Todavia, cedo
a inclinação nacionalista-belicista foram alvo da sua crítica contundente, por “entrar
em conflito com o antinacionalismo, e o humanismo ético e antifascista de Levi”
[Rui Miguel Ribeiro].
7.Primo Levi sofreu de várias depressões e, particularmente após entrevista a Philip Roth, tornar-se-ia um escritor célebre, o que lhe impunha compromissos sociais e recepções que o afadigavam e desgostavam. Existem argumentos substantivos para considerar que a sua queda, no andar em que vivia, foi voluntária [suicídio], mas existem, ainda, ponderosas razões para arguir que o tombo para a morte não foi deliberado.
[a
partir do excelente Posfácio de Rui Miguel Ribeiro a “A uma hora incerta”, de
Primo Levi, tradução de Rui Miguel Ribeiro, Saguão, 2024]
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