QUE REPRESENTAÇÃO E QUE REPRESENTANTES POLÍTICOS?
OUTRAS IDEIAS: QUE REPRESENTAÇÃO POLÍTICA?
Em diferentes democracias, existindo, no conjunto da população, cerca de 40% de não diplomados, depois, nas assembleias nacionais, nos parlamentos, nas câmaras, a percentagem de pessoas em tal condição ascende a 5% ou 10% dos (nossos) representantes.
Na Grécia Antiga, o sorteio para a escolha de representantes em cargos políticos durou certo lapso de tempo – e para aqueles que aceitavam ou se candidatavam a nele participar, como informa Rui Graça Feijó. Durante os anos da 'Grande Recessão', e quando a tecnocracia ou a epistocracia voltou a postular-se como alternativa à democracia, e com vista a uma ampla escuta e participação de sectores sociais que tendem a não estar presentes em deliberações fundamentais da polis – apesar de todos os “Orçamentos Participativos”, “Parlamentos Jovens”, “Conselhos Municipais da Juventude”…que, muitas vezes, diga-se, tendem, ainda, a reforçar grupos, já de si, advindos de meios com maior background cultural e/ou político e, nalguns casos, órgãos a não possuir, nem materialmente desejar possuir, qualquer carácter operativo - pôde, de novo, ler-se, na reivindicação de alguns filósofos ou cientistas políticos, este ponto. Ora, no mais recente livro-diálogo entre Michael Sandel e Thomas Picketty (“Igualdade”, Presença, 2025), que se auto-compreende como um exercício de reflexão ou renovação no campo 'social-democrata' – 'social-democracia' a qual, tendo, é certo, uma história e uma tradição, além de uma diversidade de programas de partidos que se reivindicam de tal ideário em países diferentes, não possui tábuas que ditem, em definitivo, o que, em cada momento e espaço, virá a ser, a concretizar-se (“sou social-democrata, como toda a gente”, respondia Fernando Savater questionado sobre os seus vínculos políticos, ironizando com a elasticidade e amplitude que permeia tal linha política) - é explorada, para discussão desde logo, a experiência indiana neste âmbito: desde 1950, na Índia, do conjunto de círculos eleitorais, 25% são selecionados para que a cada voto num dado partido corresponda a presença de um representante do mesmo que tenha que ser proveniente de castas ou sectores da população normalmente negligenciados na presença na vida pública.
Os autores consideram que este debate ganha especial acuidade em países com a existência duas câmaras. E argumentam que, por exemplo, num país como os EUA se um cidadão, com 18 anos, pode ser sorteado para fazer parte de um júri (em tribunal) e ajuizar casos que envolvem consequências de grande delicadeza e complexidade para todos os visados nele (com repercussões para toda a comunidade, no limite), porque não hão-de encontrar-se aptos para serem, em sorteio, escolhidos para representantes da nação? Quando os 'sociais-democratas' suecos, na década de 1930, ou os 'trabalhistas', no Reino Unido, no pós-II Guerra Mundial, chegam ao poder levam para os Governos pessoas/ministros que tinham estado na escola apenas até aos 11, 12 anos e/ou que trabalhavam, por exemplo, nas minas. Isto, numa altura em que, nomeadamente, a Suécia era uma sociedade de tal modo aristocrata que só 20% do topo da população masculina podia votar - e nestes 20% havia 1 a 100 votos em função da riqueza de cada um. As escolhas para o governo foram uma forma de profunda democratização da própria sociedade escandinava.
Nas suas 'Memórias' da Assembleia Constituinte, e nunca deixando, nós, de ter presentes os dados da população portuguesa de então quanto a qualificações académicas e sectores de atividade a que os portugueses se dedicavam, o Professor Jorge Miranda regista a composição sócio-profissional dos constituintes (1975): os 'advogados' estavam em maior número, seguindo-se, a considerável distância, os 'engenheiros'. Depois, o grupo dos 'empregados bancários' e o dos 'operários'. Havia 5 'trabalhadores rurais', dois 'oficiais das forças armadas', duas 'domésticas', dois 'carteiros' e dois 'locutores'.
A questão do sorteio remete-nos, afinal, de modo provocador, a pensarmos, de novo, na representação (ideal) das/nas nossas democracias; na uniformidade ou diversidade de perfis, competências, saberes, conhecimentos, mundividências nelas presentes; no modo como se pretende (re)lançar uma sociedade com níveis de politização mais robustecidos; do monopólio das escolhas de candidatos e/ou, pelo menos, do modo como esse monopólio tem sido utilizado e como no seu interior se geram escolhas; dos temas e questões que nas comunidades são importantes mas podem ficar soterrados, por perfis muito idênticos, de pessoas que frequentam as mesmas leituras (?), os mesmos programas, os mesmos lugares, um mesmo e exato mundo; da relação da democracia com a tecnocracia; do que são (compostos) os “melhores” politicamente…Talvez ocorra a alguém perante a ideia de “sorteio” a resposta sobre se então “qualquer um” pode ser representante e a resposta é, de facto, a política (democrática) como o terreno de “qualquer um” (não há 'título académico', de 'nascença', 'profissional' ou outro que garanta a existência de um bom político; sendo que um político, prosseguindo dadas finalidades e interesses, beneficiando mais determinados sectores sociais e interesses, só poderia consensualmente ser tido por “bom” em existindo valorações idênticas do que é o 'bem comum' e, nele, o que deve conter primazia, algo que, por natureza das coisas, é o que separa cidadãos com visões diferentes da cidade, pelo que raros, como é natural, são os casos consensuais). Mas se a ideia é termos representantes “melhores do que nós”, do que “o homem médio” é preciso, também, interrogar-nos se com o tipo de selecção do pessoal político que temos tido até agora, ou nas décadas mais recentes, se tem chegado a esse “fim” (a escolha de pessoas acima do “homem médio”). Finalidade, por outro lado, em sociedades, como notava já Tocqueville em “Da Democracia na América”, muito cépticas a qualquer diferenciação, dificilmente assumida como objectivo – querem ou não querem, aceitando, pois e desde logo, que existem “melhores”? [um parêntesis para uma entrevista de Francisco Assis, há uma semana, ao 'Público': sendo, como referiu, amigo “muito, muito, muito” próximo de Sousa Pinto, registou que este último político desde há anos que se coloca face a um verdadeiro problema “existencial” (sic) dado o tipo de pessoal político que foi passando a permear as assembleias ao longo das várias décadas em que este as integrou. Sousa Pinto que, por sua vez, tem referido, inúmeras vezes, no espaço público, que a democracia é o regime do cidadão comum e que há que viver, sem ansiedades, com a realidade de homens excepcionais, de cultura e coragem, como, por antonomásia, os ditos “pais da democracia” portuguesa, terem desaparecido ou desertado. Esta ambiguidade quanto a viver-se, sem angústias, com a falta de grandeza dos representantes políticos – dita pelo próprio – ou, justamente o inverso, encontrar-se, aquele, segundo um dos amigos mais próximos, em crise “existencial” pelo tipo de representantes desde há vários anos se encontram no Parlamento e afins, parece-me poder ilustrar o ponto]. Queiram ou não a maioria dos cidadãos, a verdade é que as nossas democracias contêm um elemento aristocrático – órgãos não eleitos, como o Tribunal de Contas, por exemplo -, fundamental ao seu bom andamento, como bem nota Daniel Innerarity.
A formação de elites, e de elites com preparação sólida em vários âmbitos que estão longe de esgotar-se numa dimensão técnica (a sabedoria integradora de uma visão que não se subsume no acumular de informações ou conhecimentos), devia, com efeito, ser uma preocupação da comunidade.
E por elites não se toma, aqui, necessariamente, uma determinada credenciação académica – houve grandes primeiros ministros e outros governantes, hoje dos tais poucos reconhecidos consensualmente, sem esse diploma, nos últimos 50 anos na Europa e o que não podemos deixar de reconhecer, em nossos dias, é a uma credenciação académica não corresponder competências básicas de leitura de uma realidade política que tem implicações nas vidas coletivas e individuais, dado que a escola, em rigor quem decide os currículos, lhes falhou -, mas uma preparação de uma sabedoria que devia principiar por uma séria consideração, durante a escolaridade obrigatória, de um corpus de conhecimento sobre as diferentes mundividências, correntes ideológicas, formas de performance política até indispensáveis, hoje por hoje, à leitura do mundo: seria, então, a junção de uma abertura real da política a todos (na escola a que todos têm direito), com o plus do fornecimento de instrumentos hermenêuticos que levariam a que aqueles que frequentam a escola fossem (potenciais) verdadeiros 'epistocratas' [Jason Brennan] (em se achando, cada jovem cidadão em formação, em consonância com uma dada orientação, partindo para nela se inscrever de modo livre – nomeadamente, para lhe acrescentar um ponto ou um futuro – de forma sólida e robusta). Claro que para além da escola, nada impede que se formem outros grupos ou associações, clubes que visem as mesmas motivações e objectivos, para lá do que os partidos (não) estão a fazer.
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