Franco, o Caudilho
A mais recente biografia de Francisco Franco Bahamonde (1892-1975),
da autoria de Julián Casanova,
Catedrático de História Contemporânea
na Universidade de Saragoça, Professor
Visitante da Central European
University de Viena, Prémio das
Letras Aragonesas, investigador da ditadura,
da violência e dos debates sobre autoritarismo e fascismo, um dos maiores historiadores
espanhóis do século XX e grande especialista na guerra civil espanhola e na compreensão da vida do Caudilho, mostra que o biografado,
nascido, a 4 de Dezembro de 1892, em
Ferrol (Província da Corunha,
Galiza), no seio da classe média-baixa,
cedo devotado ao mundo militar (entra
aos 14 anos na Academia Militar que,
então, formava para a guerra), não se explica sem África (onde, depois de
colocado em Marrocos como desejava,
se destacará, desde logo na elogiada defesa de Melilla, ele que ainda
criança ficara chocado com a perda de Cuba
e das Filipinas pela Espanha), no
crepúsculo imperial espanhol (no seio do Exército,
uma ascensão vertiginosa: General em
1926, Generalíssimo em 1936 e Caudilho em 1939). Vivendo sob
diferentes regimes políticos,
moldando, sem restrições, um outro que levará para sempre o seu nome,
revelar-se-ia um homem para todas as estações. Alinhado, fortemente, com as
potências do Eixo, decisivas para abater a República, e enquanto a Alemanha de Hitler parecia ir vencer a Segunda
Guerra Mundial (1939-1945); satisfazendo todas as demandas dos Aliados
quando se percebe, decisivamente, que estes ganharão o conflito bélico; líder
de um Estado com enormes similitudes com o fascismo
até 1945 e quase pária, por aquele
vínculo com os regimes liderados por Hitler e Mussolini, na cena internacional, no imediato pós-II Guerra (e até
à guerra da Coreia, a partir do momento em que chega a um acordo com os EUA que
o devolve à mesa dos grandes, e agora
transmutado, mudança de narrativa, em chefe
de uma “democracia católica” e guarda
avançada na luta contra o comunismo),
com a utilização de um confessionalismo
católico para mobilizar tropas e
legitimar internamente a ditadura, e justificar, no exterior, todas as acrobacias de aquisição e manutenção, até à morte, do
poder, assim, Francisco Franco, o homem que apontava o dedo às “democracias plutocráticas” e acabou por
alcançar, com a ajuda crucial dos EUA, um crescimento económico, na década de
60, que permitiu, finalmente, passar do intrépido caçador da “canalha maçónico-judaica-marxista” à
imagem de desenvolvimentista e avô
extremoso de fim de carreira. Como previu e ameaçou, só saiu do poder para o
cemitério.
1.No
dia (1 de Abril de 1939) em que, após uma brutal guerra civil (1936-1939),
se dá a proclamação do novo regime (ditatorial)
em Espanha, que viria a ser liderado por Franco (durante 36 anos), bem como nos
dias seguintes, não há, entre os sublevados, quaisquer referências a Deus
ou à religião. Essa será uma construção, fundamental, posterior.
Determinante, aliás, aquela, em particular em algumas regiões (do país vizinho),
no apelo a derrubar o governo republicano
democraticamente eleito – que colocaria em causa, segundo os que se rebelaram, a “civilização cristã” – e,
bem assim, a quando da implantação do regime autoritário, na legitimação do mesmo. Por último, a procura, pelo franquismo, ainda que puramente tática e
sem crédito a nível internacional, finda a Segunda
Guerra Mundial, de se dissociar da Itália de Mussolini e da Alemanha de
Hitler passou pela afirmação de que Espanha não teve um regime fascista, porque este não se baseia no princípio do catolicismo (a que diz
aderir por completo).
2.Mau
grado o regime franquista pretender
assentar na Igreja como um dos seus três pilares – juntamente com o Exército e o partido único, o Movimiento -, durante a guerra civil, em Guipúzcoa, localidade do País Basco, os sublevados, cuja cadeia (última) de comando viria a ser liderada
por Franco, assassinaram 16 sacerdotes
(13 diocesanos e 3 religiosos). Estes, obrigados a
vestir à paisana, para não fazer publicidade, em juízo sumário, foram fuzilados.
3.
Gernika era
um símbolo da identidade basca. Foi inclementemente atacada pela Legião
Condor, enviada pela Alemanha nazi, e pela italiana Aviazione
Legionaria, em favor dos que procuravam destruir a Segunda República.
George Steer
publicaria no The Times e no The New York Times reportagem sobre tal
acontecimento. Peça jornalística, essa, que daria a volta ao mundo (evocação
que Picasso expandiria, ainda, em
célebre quadro). Nesse trágico evento em Guernica, bombas são lançadas sobre
uma população civil indefesa - estavam 10 mil pessoas no mercado (“Guernica foi a primeira destruição total por
bombardeamento aéreo de um alvo civil indefeso. Consequentemente, a Guerra Civil de Espanha está gravada na consciência europeia não simplesmente como
um ensaio para a guerra maior que aí viria, mas porque pressagiou a abertura
das comportas para uma nova e horrífica forma de guerra moderna que era universalmente
temida”, Paul Preston, “A guerra civil espanhola”, 2020, p.23). Eis o que,
de resto, confirmava o que intelectuais católicos como Jacques Maritain e François
Mauriac estavam, já, a difundir no estrangeiro: (que) na "Espanha
cristã" de Franco assassinava-se sem piedade.
O
futuro caudilho intercede junto dos
bispos católicos, garantindo ter-se tratado, em Guernica, de um ataque
perpetrado pelas forças republicanas.
Aqueles devem caucionar tal narrativa. E se, hegemonicamente, a hierarquia,
como nas décadas seguintes, assentirá na palavra e acção de Franco (e a sacralização de tal personalidade foi
elemento fundamental na sua perpetuação no poder), Francesc Vidal i Barraquer, arcebispo de Terragona, da Catalunha, (encontrando-se)
em Itália, não respondeu afirmativamente ao pedido do generalíssimo - e o bispo de Vitória, do País Basco, Mateo Múgica, também não. O bispo de Terragona seria, anos depois,
impedido de entrar em Espanha, já o franquismo
se encontra plenamente instalado. O prelado,
em suma, percebeu, desde o exílio, na ditadura
de Franco, o abuso de "actos
aparatosos de catolicismo", de um catolicismo "belicoso" que tinha trocado "o espírito de caridade, suavidade e
mansidão evangélicos pela violência, represálias e castigo". Assim o
expressou ao Papa Pio XII em 1939 e
em 1940. Algo que constituía "uma
reacção política contra o laicismo perseguidor anterior, [mas] com o qual
[agora, assim respondendo] corre-se o perigo de tornar odiosa a religião aos
indiferentes e aos partidários da situação anterior" (pp.168-169).
O
mesmo Franco que aprovou a morte e mutilação de prisioneiros (republicanos), tendo saído desumanizado
da guerra civil, ouvia missa todos os
dias às 9h30 e, sempre que possível, juntava-se à sua esposa para rezar o rosário (Goebbels, no seu diário,
retrataria o ditador espanhol como “fanático beato”, nas mãos da mulher e
do padre confessor). Um católico conservador, como George Bernanos, que tinha uma pré-disposição a apoiar Franco,
vendo (em Maiorca) execuções a sangue
frio de meros suspeitos de serem republicanos,
indignou-se com parte do clero espanhol - algum do qual, como o navarro,
ingressando, mesmo, nas fileiras bélicas propriamente ditas, enquanto o clero
basco se distinguia da posição hegemónica então tomada no sentido da existência
e da militância de uma/numa Cruzada e
de uma segunda Reconquista,
anteriormente aos mouros, agora aos rojos - e previu, acertadamente, que a guerra civil espanhola deixaria o mundo
“pronto para todo o tipo de crueldades”.
No dizer de Thomas Banchoff e Pankaj Mishra, “a independência de pensamento e de espírito de Bernanos e a sua aguda
consciência política eram típicas de muitos escritores e pensadores católicos
entre guerras (…) O seu meditado
compromisso com a fraternidade humana – a solidariedade dos esperançados em
tempos sombrios – era a demonstração da força espiritual do cristianismo que,
mais do que nas instituições eclesiásticas, se manifestava na mensagem
evangélica da compaixão pelos débeis e oposição a toda a forma de ódio e
crueldade (…) Jacques Maritain, um
destacado intelectual católico da época, redigiu um manifesto antifascista, criticou o liberalismo individualista, denunciou o anti-semitismo, o racismo e o colonialismo
e, em 1948, ajudou a elaborar o célebre relatório da UNESCO sobre os direitos
humanos. Os ideais de dignidade e
fraternidade humana universal, tão
importantes nos documentos fundacionais das Nações
Unidas ver-se-iam refletidos pouco depois nas Declarações do Concílio
Vaticano II, a rotunda abertura da Igreja ao mundo moderno” (ElPaís, 03-06-2025).
Durante
a guerra civil espanhola, a (primeira
grande) batalha por Madrid (ganha pelos republicanos)
dura quatro meses. Vicente Rojo, o
militar que defendeu Madrid pela República
(quando esta, e entre outras operações, sofria os ataques aéreos das forças
insurrectas, antecipando, assim, em
quatro anos, o que viria a suceder com Londres e sua população em relação aos
ataques das forças do Eixo),
definiu-se sempre como "católico,
militar e patriota" e viu-se num furor - ainda que não em uma
neutralidade, como vimos de assinalar -, entre o grupo de golpistas com os quais não se identificava e os milicianos que queimavam igrejas.
4.Franco, um homem destituído de sentido
de humor, foi condecoradíssimo durante a
República. Não é verdade que no
dia 1 da República franco estivesse,
já, com o gatilho na pistola pensando em derrubá-la. As fontes não o indicam,
tal como não o indica a sua trajectória em boa parte deste período – afirmar o
contrário é reescrever/inventar/reinventar a História.
A
12 de abril de 1931 dá-se um plebiscito
entre monarquia e república. A II República emerge - e o rei abandona Espanha, rumando a Paris (a I República surgira ainda no século XIX,
à entrada para o seu último quartel, quando os descontentamentos populares e de
estamentos como o Exército realizam pronunciamentos que redundam na
abdicação de Amadeu de Sabóia;
todavia, a I República durou
pouquíssimo tempo, com o Exército a
restaurar a monarquia na pessoa de Alfonso XII). Dá-se, então, para o Governo provisório, uma ampla coligação republicana com nacionalistas
catalães, galegos, republicanos de esquerda e a direita liberal republicana, plasmada no Pacto de San Sebastian. Nas eleições, para as Cortes Constituintes, de 28 de Junho de 1931, uma coligação entre socialistas e republicanos
de esquerda sai vencedora (250 mandatos, dos quais 116 do PSOE; a direita obteve apenas 8 mandatos). Em Dezembro de 1931 é aprovada
uma nova Constituição que ao limitar
o financiamento estatal a ordens
religiosas e ao impor a dissolução de algumas destas, como a dos Jesuítas, irá suscitar divisões, não
levando suficientemente em conta o vínculo religioso
de muitos milhões de espanhóis. O Governo Republicano
tinha, em postos de referência, ministros católicos
– como a que sinalizar que o Executivo
não derivaria em medidas de cunho mais extremado -, mas a mudança
constitucional iria gerar resistências entre o povo católico (em 1932, os cemitérios da Igreja passaram para a
jurisdição dos municípios. Houve casos de cobrança de impostos aos enterros
católicos e de procissões funerárias proibidas; a remoção dos crucifixos das
escolas e de estátuas religiosas dos hospitais sucedeu, também, num período em
que procissões e festas religiosas foram, em alguns locais, tal como o toque
dos sinos de Igrejas, proibidas, com festas laicas a emergirem em sua
substituição – noutros casos, concorrência; à esquerda, apontava-se a Igreja como factor de legitimação das forças
mais reaccionárias ao longo dos
tempos e daí a sua aversão aquela). Ao mesmo tempo, a violência nos campos, com
a extrema pobreza dos trabalhadores e
a não permissão de avanços para estes pelos poderes
fácticos engendravam novas crises (o deliberado incumprimento da lei quanto
a horas de trabalho por dia, pagamento de horas
extra, recusa de efectuar as sementeiras, contra o que a lei estipulava,
como forma de combate político, etc.).
Durante
o devir republicano – muitos possuem
a ideia de que a República é uma peça
de um só acto, 1931-1936, mas esta
teve a direita a liderá-la entre
Novembro de 1933 e Fevereiro de 1936, com, por exemplo, Gil Robles como ministro da
Guerra, ou a nomeação, neste ínterim, de Franco como Chefe de Estado Maior -, com o bloqueio,
pelos sectores mais conservadores,
das reformas que o povo de esquerda ansiava (em especial,
quanto à questão da propriedade agrícola e apesar de direitos laborais mais favoráveis aos trabalhadores terem avançado),
em 1933 uma nova eleição ocorre e o Partido
Radical, o mais antigo partido de esquerda
ou, segundo Preston, o único centrista
e que foi derivando para posições antissocialistas
e, em cada ocasião, a juntar-se aos vencedores,
coligou-se com o Partido CEDA (Confederação Espanhola de Direitas Autónomas),
em eleições nas quais os anarquistas
se abstiveram, muitos destes desiludidos com a governação, e venceu (no que
concerne à maioria dos mandatos e à formação do Executivo; “patrões e
proprietários rurais celebraram a vitória com reduções salariais,
despedimentos, despejando os rendeiros e aumentando-lhes as rendas. Mesmo antes
do novo Governo ter entrado em funções, a legislação laboral já era olimpicamente
ignorada”, Preston, 2020, p.79). Neste contexto, e muito ironicamente face
ao que o futuro ditará, Franco, por diversas vezes, obterá condecorações e,
mais ainda, será qualificado por jornais de direita
como “o salvador da República” – “o que
deliciava a direita espanhola era o facto de Franco responder aos mineiros
rebeldes das Astúrias como se estivesse a lidar com as tribos recalcitrantes de
Marrocos” (Preston, 2020, p.91; este referência aos mineiros asturianos
remete a uma histórica greve geral,
só conseguida manter por aqueles e que foi reprimida de modo impiedoso, no que
é visto como o primeiro acto da Guerra
Civil que se seguiria).
Todavia,
em novo acto eleitoral, em 1936, o Partido
Radical vai perder, nas urnas, muito do seu apoio popular, e um maior peso
para as forças sindicais, operárias, anarquistas far-se-á notar. É a vitória da Frente Popular. De imediato, o Exército
planeia derrubar a República. A conspiração
contra a República avança, através de
militares de extrema direita. Legiões
são lançadas, pelas forças mais à direita,
na rua para causarem fortes perturbações que possam, a seguir, justificar a
reposição da ordem com recurso a uma ditadura,
varrendo a República; por sua vez, à esquerda, propende-se pela via revolucionária em vez da via reformista, assustando as classes médias. Ocorre, neste âmbito,
uma reunião da maior importância em casa de um corrector da bolsa, José
Delgado. O protagonista de toda a trama – o diretor da «conspiração» - foi
o general Emílio Mola. Franco
pondera, hesita; não integra, desde o instante inicial, o golpe.
5.Em
1917, ainda no decorrer da Primeira
Guerra Mundial, irrompe, na Rússia, a revolução
bolchevique. Um ano depois,
ocorrem tentativas de sublevação
abortadas na Hungria e Alemanha. Novos intentos de insurreição operárias serão sufocados na Áustria e Itália.
Movimentos contrarrevolucionários
surgem, por sua vez, em defesa da ordem,
propriedade e religião. Este movimento anti-liberal
e anti-bolchevique aplanou a ascensão
de Mussolini, como primeiro (líder) fascista da história. Todavia, para
o historiador é nítido, “em Espanha, o bolchevismo era uma fantasia de mentes autoritárias”.
Quando
estalou a I Guerra Mundial, a atitude
da classe política espanhola foi de neutralidade. Espanha não participou
naquele conflito bélico. Nele, a superioridade armamentista europeia subjugou
povos africanos. A segunda revolução
industrial tinha, desta forma (armas mais poderosas e sofisticadas
europeias), uma clara influência na guerra (e seu desfecho). Durante a I Guerra Mundial assiste-se, aliás, aos primeiros exemplos de extermínio massivo na história moderna.
6.
Quando
decidiu somar-se à sublevação, Franco
era “um militar muito dotado,
calculista, disciplinado e com noção do dever”. De mentalidade autoritária
encarava “pacifistas, socialistas,
anarquistas, bolcheviques e maçonaria”
como inimigos. Em realidade, "os insurrectos sabiam o que queriam
destruir, mas não o que queriam construir" (p.90). Ao contrário de
Hitler e Mussolini, Franco não possuía
uma ideologia definida antes da sua subida ao poder.
Luís Bolín, o
correspondente em Londres do ABC -
jornal monárquico que tinha sido
mandado encerrar pela II República na
sequência de uma disputa a propósito de um conjunto de incêndios provocados em
Igrejas de diversas cidades espanholas em 1931 -, por ordem e do proprietário
do periódico, o marquês de Luca de Tena, procede, na capital
inglesa, ao aluguer de avião, para
levar Franco das Canárias a Marrocos com vista a este colocar toda a sua expertise (militar) ao serviço da
mudança de regime (mudança a qual
surge justificada, após o assassinato do tenente
José del Castillo, conotado com a esquerda, com o homicídio, em resposta,
do político de extrema direita Calvo Sotelo). Bolín viria a ser um dos
mais ardentes e extremados propagandistas do franquismo, cabendo-lhe, nomeadamente, a tarefa, junto da imprensa
internacional, de negar o crime de Gernika.
Dois
meses depois de entrar na guerra civil
– “durante mil anos a guerra civil, se não foi rigorosamente a
regra, pelo menos não foi excepção. A guerra de 1936-39 foi o quarto conflito
desta natureza desde a década de 30 do século XIX (…) Nos cem anos que antecederam a década de 30 do século XX, foi possível
distinguir a gradual e imensamente complexa divisão do país em dois blocos
sociais antagónicos”, Paul Preston, “A guerra civil espanhola”, 2020, pp.33-34),
os seus companheiros de barricada escolhem-no
como líder (e será do primeiro andar do paço
episcopal de Salamanca que comandará os seus que, embora com certa
diversidade política, se unificarão - no que contrastará, de modo muito
relevante e com consequências no resultado do conflito civil espanhol, com os
seus opositores). De imediato, avança com negociações
com Mussolini para obter mais meios militares para derrubar a República e faz chegar carta a Adolf Hitler a solicitar armamento (em
troca, concederia minerais e direitos de
mineração ao Fuhrer). Se a
Espanha fica bolchevique, seguir-se-á
França e a Alemanha fica liquidada,
dirá Hitler. Goring, ministro da aviação do Terceiro Reich, declarou em Nuremberga
que exortou Hitler a apoiar Franco para impedir
a expansão do comunismo – mas, do
mesmo modo, com o fito de usar a guerra civil espanhola [portanto, a
população de Espanha] como cobaia na experimentação do seu material de guerra.
O
führer envia, então, para os falangistas, munições, 20 aviões, 20
canhões antiaéreos, pessoal de voo e
terra - operação "Fogo Mágico" [nome que derivará da ópera Siegfried representada, instantes antes
de Hitler ser confrontado com o pedido de Franco para ajuda militar, em
Bayreuth e a que Hitler acabara de assistir; ópera que contém a ária «Fogo
Mágico»]. O Governo de Mussolini – sendo que o Duce, ainda no momento inicial da guerra civil, começa por negar as pretensões de Franco quantos aos
pedidos de ajuda militar, face à ideia de que França estará próxima de auxiliar
a Frente Popular e Itália não quer
uma beligerância direta com os franceses, posição que rapidamente se alterará
com novas informações acerca da posição francesa e porque, por exemplo, o apoio
do governo do Estado Novo aos rebeldes é visto por Mussolini como
contendo um pelo menos implícito beneplácito britânico - principia por aduzir uma
esquadra de 12 bombardeiros aquela coligação.
Há voluntários de diferentes países, embora não demasiado numerosos – aqui
avultarão os 700 Camisas Azuis do
batalhão irlandês, movimento fascista
comandados pelo general Eoin O’Duffy, convencidos de que é a Cruzada que está em causa em Espanha -,
a juntar-se, igualmente, às tropas dos sublevados.
Com
efeito, ao longo da guerra entre duas
Espanhas, dezenas de milhares de
soldados italianos juntaram-se aos franquistas,
com generais experimentados da primeira
guerra mundial. Milhares de alemães fizeram-no, igualmente – “Mussolini e Hitler tornaram assim um golpe de Estado que não tinha corrido
bem numa guerra sangrenta e prolongada” (Paul Preston, 2020, p.128). Os que
militavam com Franco somavam, assim,
cerca de 350 mil efectivos, cifra idêntica à dos efectivos do exército republicano. No ataque franquista a Málaga, dá-se o primeiro
ensaio da guerre celere (a versão
italiana da Blitzkrieg). A guerra civil espanhola termina em Abril
e em Setembro tem início a II Guerra
Mundial (na qual a Itália de Mussolini não entra no imediato, mas após
semanas de conquista, em África e a Oeste, de Hitler, e com vista a ir buscar
as compensações de guerra).
7.O
Governo da República também pediu urgente ajuda internacional, nomeadamente às democracias,
contra os sublevados. O governo francês respondeu que ajudaria
na medida do possível - e entendeu que não era possível tal auxílio (Blum entendia que se apoiasse os republicanos, viria a existir um
levantamento fascista em França,
perdendo-se não só Espanha, mas também França para aquelas forças. E,
sobretudo, o pavor de perder o apoio inglês e após conhecerem a posição daquele
país, a não intervenção foi a decisão definitiva). A opinião pública francesa dividiu-se. Algo que ocorreu,
igualmente, no Reino Unido (ainda
que inquéritos de opinião, mesmo em
1939, indicassem que 70% dos britânicos reconheciam a República como governo legítimo espanhol; não assim, porém, entre
as elites económicas e políticas, nas quais a comunhão de pertença e de visão com os rebeldes
era grande; embora trabalhistas e conservadores concordassem no pacto de não agressão, líderes trabalhistas tiveram declarações de
apreço pelos republicanos, sendo que Attlee visitou Espanha para mostrar
admiração pelo pessoal das Brigadas;
vários membros do Partido Trabalhista,
a título individual, financiaram e integraram as brigadas internacionais que avançaram para Espanha em favor da República; Preston, pp.147 e ss.). No
caso desta potência, o (seu) cônsul
em Barcelona, Norman King, informou
o Governo de que se a rebelião militar
fosse anulada, a Espanha cairia, mesmo, no bolchevismo.
Para as democracias, o entendimento
de que se ajudassem a República colocavam em causa a política
de apaziguamento face a Hitler, revelou-se um factor inultrapassável na
decisão de não avançarem para Espanha - o que, visto pela parte de alemães e
italianos, nunca ocorreu aos (líderes dos) regimes fascistas (Roosevelt
percebeu o Pacto de Munique, de 1938, que consagrou a política de apaziguamento, como uma traição de Reino Unido e França aos estados mais pequenos, nomeadamente a Espanha). A URSS,
depois de um demorado processo de decisão por parte de Estaline – que,
paradoxalmente, tendo simpatia pelos republicanos,
não queria que aquelas forças fossem de tal modo vitoriosas na Península que
impusessem uma reacção fascista em
grande escala e implicassem a União
Soviética, manifestamente impreparada após a purga estalinista nas suas
forças armadas, para uma Guerra Internacional -, por sua vez, começou a
intervir, ao lado dos republicanos,
na guerra civil espanhola, no Outono
de 1936 (republicanos que se haviam
visto boicotados, inclusive, no seu direito a adquirir armas pela dita neutralidade ou não intervenção das democracias – que a estenderam a esse ponto -,
tendo, então, solicitado armamento aos russos em troca de ouro). Brigadas internacionais intervieram
(trabalhadores e intelectuais perceberam que “Espanha era o último baluarte contra os horrores do hitlerismo (…) Acreditavam que, ao combater o fascismo em
Espanha, estavam também a combatê-lo nos seus próprios países”, Preston,
2020, p.23), igualmente, pela República;
Checoslováquia e México apoiarão as forças republicanas; alguns aventureiros e desempregados juntar-se-ão aos que se encontravam no exílio por o
regime fascista nos seus países os
terem expulsado de suas casas (o principal recrutador de voluntários, do lado republicano,
foi o Partido Comunista; voluntários,
estes, que à chegada a Barcelona tinham bandas musicais e multidões em recepção
de boas-vindas) – mas, tudo somado deste lado da trincheira, nunca em quantidade e qualidade comparadas às que
Itália e Alemanha proporcionaram aos que se rebelaram
(“o regime democrático espanhol foi tão
vítima da pusilanimidade das potências ocidentais como o foram a Áustria e a
Checoslováquia”, Preston, 2020, p.168).
8.
De
acordo com o historiador Julián Casanova,
os sublevados venceram a guerra civil – que principia com
intrépida violência, um tiro na nuca, mas em um golpe que não sai vitorioso (de
imediato, e necessita de três anos para concretizar os seus intentos
políticos), o que contraria tanto a ideia de um exército em uníssono a querer
derrubar a República, quer a noção de
que o povo unido derrubou o exército; em realidade, foi nas cidades em que o
exército se mostrou uno e consistente que a insurreição
foi travada - em virtude de três elementos essenciais: i) tinham as tropas melhor treinadas do Exército espanhol; ii) o poder económico que concentravam era
considerável; iii) os ventos
sopravam a seu favor, com os fascismos
emergentes.
9.
Todas
as Repúblicas que tinham surgido nas
duas décadas anteriores à sublevação
em Espanha, tinham submergido face a ditadores com poderes absolutos. A Primeira
Guerra Mundial, e a profunda crise posterior, tornaram possíveis
personagens excepcionais como Hitler e Mussolini ou Estaline. A maioria dos ditadores não foram fascistas, mas admiraram o regime fascista e imitaram-no. Espanha parecia-se muito com a Europa
(excepcionemos, aqui, países nórdicos). Como faz notar o investigador, o facto
de se concluir, academicamente, pelo vínculo de um regime ao fascismo, ou
pela natureza não fascista de um regime, nada nos permite, de imediato,
logicamente, retirar no que à crueldade do mesmo diz respeito. Como exemplifica,
a ditadura de Videla, na Argentina,
foi de uma enorme crueldade e, sem embargo, não foi um regime fascista.
Poucos
dias depois da sublevação militar no
país vizinho, o general Ioannis Metaxás deu um golpe de estado na Grécia. Horthy, na Hungria, adoptou o título de
Vezér (líder). Tal como Franco, estava convencido de ter sido escolhido
pela providência.
10.
Iniciada
a guerra civil, a 17 e 18 de Julho de
1936, os insurrectos são derrotados
na maioria das grandes cidades espanholas – em realidade, “os conspiradores não tinham previsto que o seu levantamento
desembocasse numa guerra civil. Os seus planos eram um rápido alzamiento, a que se seguiria um
diretório militar como o que havia sido criado em 1923” (Preston, 2020,
p.113). Só que a sublevação, ao
erguer-se, tem efeito colateral nada despiciendo: divide Exército e forças de
segurança; enfraquece o Estado.
Este, em especial, perde o monopólio da
violência (e, com/na perda, o poder
aos comités). O novo chefe de governo (republicano),
José Giral (que substituiu Santiago Casares Quiroga e, ainda, Diego Martinez Barrio no espaço de
dias), permite a distribuição de armas entre os militares operários e os republicanos
mais comprometidos - que saíram,
pois, à rua a combater os sublevados (e
que se tivesse ocorrido desde o início, segundo Preston, poderia ter sufocado a
insurreição). Em Barcelona, a sublevação não triunfou e a cidade
tornou-se bastião de anarquistas e
símbolo da resistência popular e da revolução. Sevilha caiu para os sublevados,
tal como Saragoça, apesar de esta última cidade ter muitos anarco-sindicalistas e Granada, onde cinco mil republicanos foram
abatidos no cemitério – levando a que o guarda daquele local endoidecesse e
acabasse num manicómio – e Garcia Lorca,
conotado com ideias republicanas
moderadas, fuzilado, depois do poeta ter sido escondido em casa de Luís Rubiales, bardo falangista. Em zonas rurais de Castela e
Leão mesclaram-se ações militares com fervor religioso a acompanhá-las (por
parte dos que se encontram em insurreição).
Com o objectivo de eliminar os vermelhos (os
insurrectos incluíam socialistas moderados ou republicanos de centro esquerda na definição de rojos),
as tropas lideradas por Franco utilizaram a violência sexual como arma e criaram
um clima de terror programado (“embriagados
de sangue”). Destacou-se, aqui, o general
Mohammed ben Mizzian pela "forma selvagem de fazer a guerra, por
estimular as suas tropas ao abuso e violação de mulheres e por matar com
granadas de mão os feridos do hospital de Toledo de São João Baptista" (p.103). O facto de, não raramente,
serem trabalhadores e camponeses, em vez de militares, a
actuarem do lado republicano, permitiu
o avanço dos falangistas. Assiste-se,
outrossim, a violência anti-clerical em
lugares nos quais fracassou a insurreição
(“De ambos os lados, heroísmo e nobreza
rivalizavam com crueldade primária e brutalidade, de tal forma que faria inveja
às gestas medievais, apesar de, em última instância, a Guerra Civil espanhola
estar firmemente enraizada na época moderna”, Paul Preston, 2020, p.33).
Tal violência anti-clerical foi vista, por muitos, no interior do movimento republicano, como um favor feito aos insurrectos
(dada a grande maioria católica da população espanhola; “Principalmente no início da guerra, sucederam-se vagas de assassinatos
de padres e de suspeitos de serem fascistas (…) Foram destruídas igrejas e monumentos religiosos. Estima-se que mais de
seis mil padres e religiosos tenham sido mortos [durante a guerra civil, sem exclusivo republicano,
como já registámos]”, Preston, 2020, p.134). Em aldeias a 18 quilómetros da
capital espanhola foi cometido o acto de maior barbaridade do lado republicano, na sua actuação ao longo de
três anos, com a assassinato de 2500 prisioneiros, direitistas, muitos deles
feitos em Madrid logo no início do conflito.
11.
A mais longa e dura batalha,
durante os três anos que durou a guerra
civil espanhola (que o
historiador Paul Preston vê como um dos momentos fortes da mais global guerra
civil europeia que se alastrava, intermitentemente, há 20 anos), decorreu no Ebro. Ali, 30 mil sublevados morreram; o dobro, faleceu
entre os republicanos. 250 mil
pessoas lutaram durante 4 meses.
Franco
nada fez para que o seu primo, comandante Ricardo
de La Puente Bahamonde, irmão na
infância e suas brincadeiras, fosse fuzilado como retaliação por ter permitido
manter o aeroporto de Leão nas mãos dos republicanos.
O mesmo se diga quanto ao escasso empenho colocado pelo caudilho em procurar que Primo de Rivera fosse libertado ou não
eliminado pelos republicanos – ou não
pudesse esta personalidade fazer-lhe sombra (o que não impediu um intenso
aproveitamento político da sua morte). Houve julgados sumariamente e fuzilados
por terem lido Kant, Rousseau, criticado Hitler ou
Mussolini, ou terem faltado à missa. Durante a guerra civil, vivia-se melhor, com outra abastança nas zonas
controladas pelos nacionalistas, onde, não raro, podia encontrar-se
restaurantes repletos – em Madrid, ao invés, vivia-se de lentilhas. O
puritanismo vigorava por tais localidades: “comer num restaurante em mangas de camisa era olhado de esguelha. As mulheres
eram encorajadas a vestir-se com uma modéstia protectora, a não fumar e a não
se pintar. As mangas queriam-se chegadas até ao pulso, as golas aos pescoços;
as blusas que fossem largas e compridas” (Preston, 2020, p.229). Um latifundiário, que tinha touros nos
melhores prados enquanto as pessoas passavam fome, tendo visto a sua terra
ocupada, em Palma del Rio, assim que
as forças nacionalistas tomaram a sua
terra, na província de Córdoba, escolheu 200 e na sua propriedade estes foram
abatidos a metralhadora.
Uma guerra longa, de desgaste, foi desejada por Franco depois
do falhanço inicial do assalto a Madrid [sobre este ponto, o da condução de uma guerra de
desgaste, por parte de Franco, no seu final Comentário
Bibliográfico, aposto à biografia de Franco, Julián Casanova dá conta como esta
é matéria controvertida na historiografia,
mas considera tratar-se, a perspectiva de que Franco desejou e concretizou uma guerra de desgaste, a melhor
interpretação do sucedido]. Quando Hitler invade Praga, Franco entra,
finalmente, na capital do seu país. Em Fevereiro de 1939, França e Reino Unido
reconhecem o governo franquista.
Durante
a guerra civil, houve 100 mil vítimas consumadas pelos sublevados; 55 mil vítimas feitas pelos republicanos; 350 mil mortos nos anos
seguintes por doenças e inanição; 270 mil presos políticos em campos de concentração. Foram quase 1000 dias de combate.
Franco mandou dizer à Santa Sé que não aceitaria nenhuma
mediação, mas apenas uma rendição
total e incondicional dos republicanos
– no seio dos quais, durante aquele triénio sangrento as divisões, as
incontáveis facções, nomeadamente
sobre como conduzir a guerra, em momentos de pura sobrevivência, digladiaram-se
e quase geraram uma guerra civil no
interior da guerra civil (Preston, p.203).
12.
Era
o Dia da Raça. 12 de Outubro de 1936.
Em Salamanca. Miguel de Unamuno,
como reitor, e em nome do general Franco, que não pôde assistir,
presidiu à cerimónia, acompanhado de Carmen
Polo [mulher de Franco] e das autoridades militares e eclesiásticas.
Unamuno foi o último a falar [havendo, hoje, quem sustente que as suas palavras
não eram audíveis e que o relato é construído depois]: "Eu também acreditei nisso [motivo invocado a posteriori, pelos sublevados, para o golpe
militar contra a República] da
'guerra internacional em defesa da civilização cristã'. Mas não, essa era
[antes] uma «guerra incivil». «Vencer não é convencer [...] Não pode convencer o ódio que não deixe
lugar para a compreensão, o ódio à inteligência». O general Millán-Astray, sem
braço esquerdo, sem o olho direito e com uma cicatriz na bochecha esquerda,
sinais de velhas batalhas em África – lá, em cujas trincheiras os militares
espanhóis lutaram a I Guerra Mundial que não puderam combater, quer dizer,
construíram uma cosmovisão e inscreveram-se em um caldo de emoções e
sentimentos [colonialismo, brutalização, ressentimento pela traição de
políticos que deixam cair Impérios], como os relatados a propósito do
conflito bélico de 1914-1918, por Erich
Maria Remarque, em “A Oeste nada de novo”, algo de muito relevante, aliás,
para se compreender como Franco irá parar aos braços de Hitler e Mussolini,
gente da I Guerra Mundial -,
interrompeu-o: «Morram os intelectuais!»
e «Viva a morte!», o seu grito
favorito. Os legionários armados
aproximaram-se do estrado. Ameaçaram e insultaram o velho professor.
"Falta-vos razão e direito de luta", sentenciou o académico.
Miguel
de Unamuno escreveria, dois meses depois, ao seu amigo Quintin de Torre: “O catolicismo
espanhol tradicionalista puro tem muito pouco de cristão. O que aqui temos é uma militarização
africana, pagã e imperialista. Desta forma, nunca haverá uma paz real.
Vencerão, mas não convencerão; conquistarão, mas não conseguirão converter”.
13.
O
(novo) regime franquista teve a
adesão incondicional das Forças Armadas, dos industriais,
dos terratenentes
e dos banqueiros. A Espanha foi, com Franco, um estado policial, com um omnipresente sistema de controlo e vigilância e o lema "Deus, pátria e Justiça". A imposição
de uma ordem de tipo castrense na
sociedade sucede a todo o vapor. Leis com efeitos retroativos, para julgar e
punir, tantas vezes com a morte, os que haviam batalhado do lado oposto ao do Movimento que uniu falangistas e carlistas.
Haverá depuração na função pública (5 mil guardas, fiéis à República, são expulsos da Guardia
Civil). Por lei, Franco fará com que revertam para a Falange – fundada, em Outubro de 1933, com fundos monárquicos, e onde pontificava José António Primo de Rivera, um dos
filhos de Miguel Primo de Rivera: “as
suas milícias de camisas azuis, com as suas saudações romanas e os seus cantos
rituais de Arriba España! E España una! España libre, España grande!
imitavam os modelos nazi e fascista”; a JAP, a juventude da CEDA,
entoava cânticos que diziam “Jefe! Jefe! Jefe! Os nossos
chefes nunca cometem erros”, frase copiada dos fascistas italianos” (Paul Preston, 2020, p.83), sendo, aliás,
a Falange, subsidiada exatamente pelo
governo italiano; Gil Robles esteve
presente no comício de Nuremberga e muita da propaganda da CEDA baseou-se nas técnicas aprendidas durante a viagem de estudo
que realizou à Alemanha nazi - todos
os bens pertencentes aos sindicatos marxistas
e anarquistas – que os haviam
acumulado pelas quotas dos seus filiados ao longo de anos. Em 1937, Franco
criara, ademais, a Radio Nacional de
España para impulsionar a sua causa através da propaganda.
Franco
adoptou o nome Caudillo (“Chefe”, “Líder”), equivalente ao Führer,
em Hitler, e Duce, em Mussolini (Vezér, em Horthy, recorde-se). Nos
jornais, moldados pela censura e a propaganda, podia ler-se: "Uma
pátria, um estado, um caudilho". António
Eça de Queiroz, subdiretor do Secretariado de Propaganda Nacional
(português) diria de Franco: "O Homem, com letra maiúscula". Em
realidade, Franco contou, desde o início do golpe
contra a República, com o "apoio incondicional de Salazar". Travar
o comunismo seria a motivação para
tal auxílio. Ao porto de Lisboa, entre 1936-1939, chegaram blocos alemães com
material bélico (muitas armas) destinados aos falangistas, republicanos
fugidos para Portugal foram, muitas vezes, entregues, pelo Estado português ao
regime franquista (que, não raro, os
mataria). Todos os líderes fascistas
ou ditadores de direita caem em
1944/45, com excepção de Portugal e Espanha – de aí que Portugal devesse ser
muito mais estudado pelos espanhóis do que é, e muito mais do que outros países
que se parecem muito menos, e têm muito menos em comum, considera o autor da
mais recente biografia de Franco. A solicitude e os bons ofícios de Salazar foram muito eficazes para os rebeldes em alguns fóruns internacionais.
O Estado Novo foi, também, um regime modelar para o novo regime
nascido em Espanha, com Franco (p.230) [o qual, e por sua
vez, serviria de inspiração para o marechal
Petáin e a legislação surgida sob a
sua tutela; Franco escolhe para Ministro dos Negócios Estrangeiros um católico para sinalizar moderação e, curiosamente, o MNE de Saddam Hussein, muitas épocas depois,
era Tariq Aziz, cristão, utilizado,
e seu vínculo religioso, como forma de diplomacia por Saddam; a revolução dos
cravos enquanto terceira onda democrática em movimento influencia sobretudo,
embora não exclusivamente, a Europa: na América Latina, o regime de Franco
inspirará muito Videla e Pinochet, com o qual o generalíssimo terá uma intensa
e vasta troca epistolar]. As únicas
vezes em que Salazar saiu do país foi para se encontrar com Franco (as
escassíssimas vezes em que os dois ditadores
saíram dos respectivos países mostra, também, onde se encontrava, então, a
Península Ibérica). Falavam em espanhol. Ambos, em termos materiais, foram do fascismo
ao desenvolvimentismo. Os dois eram
prudentes, frios e distantes, austeros e “incorruptíveis”. Nada a ver com os
grandes líderes carismáticos e mobilizadores de massas. A relação entre aqueles foi fria e distante. Partilhavam visão
autoritária e corporativa do Estado e a sua sorte estava entrelaçada. Encontraram-se, porém, pela última vez, em 1963, Salazar contrariado pela descolonização de Marrocos,
Espanha abdicou do Império, nada de amigos afinal desde aí. Quando Salazar morre, faz-se um “funeral”
em Madrid; Franco não vai, envia o príncipe.
A saudação romana institucionalizou-se como saudação oficial na Nova
Espanha, com a boina
vermelha e carlista e camisa azul
falangista como uniforme. O hino falangista
Cara al sol permanentemente entoado. Espanha "seguirá a estrutura dos regimes
totalitários, como Itália ou Alemanha", declarou, ainda, Franco à
agência United Press, em Julho de
1937. Para o Caudilho, Mussolini era
"a maior figura política do mundo",
um "verdadeiro génio latino".
Franco escreveu também ao (seu) "querido
Fuhrer". Até a guerra da Coreia estalar, em 1950, foi, efetivamente,
como um pária pela sintonia ideológica com Mussolini e Hitler.
Franco
chega ao poder numa "brutal guerra
de extermínio"; não era um antigo cabo
(como Hitler), ou um ex-socialista
(como Mussolini) que nunca tinha estado com os grandes. Quem entronizou Franco, ao contrário do que sucedeu na
ascensão de Hitler ou Mussolini, foram os colegas de armas.
Quase não teve oposição. Sanjurjo, inicialmente indicado para
liderar a intentona contra a República, encontrando-se exilado em
Portugal, morre em acidente de avioneta junto ao aeroporto de Cascais; outra
figura imponente entre os militares morrerá, idêntico destino, em acidente
natural nas baleares. Franco “não precisava de sofisticação intelectual
ou dotes diplomáticos. Não foi um político maior na Europa, mas não foi um
ditador menor”. De acordo com os estatutos
falangistas, o caudilho só responde perante Deus e perante a história. Aliás,
Caudilho, monarca, príncipe e senhor
dos exércitos. Franco, Franco, Franco!,
os três vivas como gostava de ser
tratado.
E,
nesta, era hora de a humanidade
acertar contas com a filosofia da revolução
francesa.
Denunciar
e apontar o dedo era, nesta Espanha franquista, considerado uma coisa de bons patriotas. Visou-se, com a bufaria, romper com os laços de amizade, quebrando, assim, qualquer gérmen de resistência ao regime. Os presos políticos
e os ostracizados (socialmente) serviram como mão de obra barata para as empresas e o Estado, nomeadamente na
construção de estradas e de ferrovias. 100 campos
de concentração, com 500 mil pessoas, servem de castigo e reeducação. 200
mil pessoas morreram por fome e má nutrição nos anos 40. Muitos operários e camponeses de baixos recursos foram acusados judicialmente, tal
como republicanos de rendas mais elevadas (condenados à morte, a trabalhos forçados, a indemnizações
milionárias). São fuzilados, inclusive, republicanos
que haviam denunciado a extrema violência que do seu campo político tinha sido
espoletada - e que haviam conseguido salvar políticos de direita e elementos do clero
(p.201). Com enorme simplismo Franco "inteirava-se" das condenações,
com essa forma as ratificando. O jurista Vicente Gay e Forner, Catedrático de
Economia na Universidade de Valladolid, delegado
de imprensa e propaganda de Franco expressou a sua fervorosa admiração pela
Alemanha nazi, considerando o campo de concentração de Dachau "um verdadeiro estabelecimento educativo",
uma "aldeia higienizada"
(p.184). Na Plaza Mayor de Salamanca,
é realizada homenagem aos 10 mil viriatos
que vieram de Portugal para se juntarem às forças do Movimento insurreccional; não eram, em realidade, voluntários (continuavam a receber o seu
salário de militares em Portugal e o tempo de serviço era contabilizado no seu histórico militar), mas assim eram
nomeados para não comprometer Salazar junto do Comité de Não intervenção.
Petições
de clemência dirigidos ao capelão José Maria Bulart eram, muitas vezes, por este, com desprezo e
desdém, deitadas ao lixo. A repressão combinava
(-se) com o culto de personalidade a
Franco.
Os anos mais obscuros da ditadura de Franco foram os primeiros,
geradores de enorme sofrimento, enormes custos sociais e culturais. Se o caudilho tivesse, por um qualquer acaso,
terminado a vida em 1945 não haveria hipótese de recompor a sua imagem.
Com
o franquismo, restauraram-se as
festas religiosas suprimidas pela República,
como o Natal e a Epifania. Muitos monumentos em memória dos mártires, isto é, dos
“caídos por Espanha e por Dios”, (exclusivamente, está bom de ver) os sublevados, são erguidos. Eclodem espectaculares
celebrações do novo regime, após a sua vitória.
14.
Com
a guerra civil, a rede
de transportes foi destruída em várias zonas de Espanha; a produção
agrícola caiu de forma abrupta; famílias
inteiras foram destruídas. "A guerra civil tinha deixado em Espanha um
Estado débil e corrupto, com substanciais recompensas para alguns e fome e miséria
para a maioria" (p.195) Uma guerra na qual, em suma, no dizer de Julián
Casanova, "venceram os proprietários e o capital" e "perderam
os assalariados" (Paul Preston escreverá no Prefácio à
mais recente edição/revisão de “A guerra civil espanhola” [Edições 70, 2020]: “Muitos anos dedicados ao estudo de uma
Espanha anterior, durante e depois dos anos 30, convenceram-me de que, embora
se tivessem cometidos muitos erros, a República
Espanhola era uma tentativa de providenciar uma vida melhor aos membros
mais humildes de uma sociedade repressiva. Contra tal temeridade, a vingança
exercida por Franco e seus seguidores foi brutal e impiedosa”, p.16).
Espanha
não entrou na Segunda Guerra Mundial,
porque estava muito debilitada em termos
militares e económicos e dado depender
do fornecimento de petróleo pela Grã-Bretanha e pelos EUA. A transformação
de uma economia de guerra numa economia de mercado demorou mais de uma
década (após a guerra civil, precisa J. Casanova, a recuperação demorou 13 a 15
anos, p.294). França e Reino Unido
aceitaram financiar a reconstrução espanhola pós-bélica e fornecer trigo e carburante.
Sem
embargo, a 10 de junho de 1940, Mussolini abandona posição de não beligerância e entra na guerra.
Franco passou da estrita neutralidade
a não beligerância. Ademais, e em
rigor, preparou a entrada na guerra nos "últimos
tiros", para poder recolher os
subsequentes louros. Tropas espanholas e voluntários marroquinos ocuparam Tanger.
Franco demitiu os ministros mais simpatizantes dos Aliados.
15.
Durante
a Segunda Guerra Mundial, registou-se
um robusto suborno, a mando do governo
inglês, para que a Espanha se mantivesse neutral
(na guerra). Suborno a generais e pessoas próximas do Caudilho, como o seu irmão. Sem que
aqueles, é certo, soubessem quem estava a subornar. Neste contexto, foram
repartidos 14 milhões de dólares. Nicolás Franco, os generais José Enrique Varela,
ministro do Exército, e António Aranda receberam 2 milhões; o coronel Valentín Galarza recebeu 1 milhão. O general Alfredo Kindelán,
metade. Parece pouco provável que Franco desconhecesse os subornos, dado os
envolvidos serem generais muito próximos de si, bem como sendo o seu irmão um
dos principais beneficiários das prebendas (p.206). Aliás, a corrupção grassou
sempre durante o franquismo: "Franco, como Hitler e outros ditadores,
sabia que a corrupção à escala massiva garantia a lealdade e a fidelidade
pessoal. Os oficiais do exército, os ministros e altos dirigentes do Movimento seriam fiéis enquanto os
assuntos do bolso, os favores, as prebendas e privilégios deram bons frutos.
Por isso, permitiu um enriquecimento sem limites dos grupos de poder. A
corrupção, como na Alemanha do Terceiro
Reich, proliferava em todos os âmbitos do regime" (p.21).
Por
sua vez, o Erika - comboio especial do Fuhrer -, em Hendaya, a
23 de Outubro de 1940, foi local de encontro de Franco com Hitler, com a
participação dos espanhóis na Guerra em curso, em cima da mesa. "Esta gente é intolerável. Querem que
entremos na guerra em troca de nada", desabafará, entre os seus, o Generalíssimo, no final da conversação. “Prefiro que me arranquem 3 ou 4 moedores do que encontrar-me de novo com
Franco”, vociferará Hitler.
16.
O
filho de Mussolini, quando leu no jornal a existência de um pacto
germano-soviético, pensava tratar-se de um "erro tipográfico" - Hitler não avisou o Duce daquele acordo (p.194).
E, se por todo o mundo se duvidava daquela aliança,
a realidade não tardou a corroborar os cépticos: mais de 3 milhões de soldados de Hitler invadiram a URSS, em 1941.
A guerra seria curta e seguir-se-ia o assalto a Inglaterra, elaborara Hitler.
Uma boa parte da Força Aérea russa,
apanhada desprevenida pelo dolo do Fuhrer, foi destruída antes, sequer, de
levantar voo. Churchill considerou o
erro de cálculo de Estaline – líder que não acreditava no que lhe estavam a
dizer os serviços de inteligência dos
Aliados, a este propósito - talvez o
maior da Segunda Guerra Mundial. Nos
primeiros dias, o ataque da Alemanha nazi fez centenas de milhares de mortos e
prisioneiros russos. Roosevelt permaneceu, então, em silêncio. Diferentemente,
Churchill, que sempre fora anti-comunista,
mostra, de imediato, apoio à Rússia e ao seu povo.
A
Espanha de Franco envia a chamada divisão
azul, a 250ª legião ao serviço da
Wehrmacht. Há duas guerras em curso,
interpretará Franco: uma, a Oriente,
onde Espanha actua; outra, no Ocidente, onde Espanha é neutral. 47 mil combatentes espanhóis, neste âmbito. 5 mil morreram
na frente oriental; a primeira leva
de 18 mil soldados era composta, em um terço dos membros, por universitários. Motivações
diversas para os participantes espanhóis aderirem ao assalto aos soviéticos (p.211):
-
vingarem-se dos bolcheviques que
participaram na guerra civil espanhola;
-
agradecer o apoio dos alemães nessa mesma guerra
civil;
-
busca da glória, ascensão social, aventura;
-
procura do subsídio, dado a quem participava,
como forma de fugir da fome e da miséria;
-
expiação por ter lutado do lado errado durante a guerra civil.
17.
Dois
anos depois da entrada da Itália - sociedade
dividida, economia subdesenvolvida
e Exército débil - na guerra, a elite pré-fascista
preparou a queda de Mussolini,
em Julho de 1943. Um dos elementos que lhe tiraram
o tapete foi o seu genro, Ciano. O Duce estava, agora, com 60 anos, doente, longe da personalidade
heróica de duas décadas antes. Nem a Espanha de Franco o reconhecia como líder
italiano (não reconhecerá a República de
Saló); é a paga pela ajuda de
Mussolini [a Franco e seus comandados], durante a guerra civil, ironizava, no seu diário,
Goebbels.
A
queda do fascismo em Itália foi
estrepitosa. Mussolini e milhares de fascistas
foram assassinados durante os dias da Libertação.
Antes disso, o antigo líder todo-poderoso italiano mandou executar vários dirigentes fascistas,
incluindo o genro.
Nos
momentos derradeiros da sua vida, Mussolini, em fuga com a sua última amante, Clara Petacci, de comboio, disfarçado
com uniforme nazi, é interceptado. Resultado: ambos os membros do par amoroso foram
colocados de cabeça para baixa, na Piazzale
Loreto, de Milão (p.227). Hitler, por sua vez, suicidou-se a 30 de Abril de
1945, com Eva Braun, com quem casara
na noite anterior; Goebbels, na mesma linha de actuação, colocou termo à
própria vida; Himmler, executou
gesto semelhante, mas no Luxemburgo dominado pelos britânicos; Ribentrop, condenado em Nuremberga, foi
executado.
Roosevelt
não pôde assistir à vitória final dos Aliados.
Morre a 12 de Abril de 1945, com 63 anos. "Roosevelt foi um grande estadista, um líder inteligente, culto e
liberal (...) que soube prolongar a
vida do sistema capitalista" (p.229), assinalaria Stalin.
A
capitulação alemã deu-se às 2h41 da
madrugada de 7 de Maio de 1945; a 18 de Julho, Franco demite os ministros mais
próximos do Eixo e passa a nomear
mais ministros católicos.
18. Francisco
Franco Bahamonde nasce a 4 de Dezembro de 1882, em Ferrol, província da Corunha,
na Galiza, localidade, à época, com
20 mil habitantes. Seu pai, Nicolás
Franco Salgado-Araujo, general da Armada,
com estâncias em Cuba e Filipinas, era de vida dissoluta. O progenitor saiu de
casa em 1907, deslocando-se, com a sua amante, para Madrid e não vindo a
assistir ao matrimónio de Francisco. A mãe, Maria del Pilar Bahamonde, era conservadora, amável, estoica e
piedosa. Franco, segundo filho daquele matrimónio, teve 4 irmãos, uma das quais,
Paz, morreu muito precocemente.
Nicolás, por sua vez, contribuiu, de sobremaneira, para o irmão se alcandorar
ao topo da hierarquia militar e política de Espanha - e fez carreira na ditadura. Franco ingressa aos 14 anos na Academia Militar de Infantaria, de Toledo (não ingressando na Marinha, como tradição familiar, o que é
bastante relevante, na medida em que se houvesse entrado na Marinha muito dificilmente teria um
percurso que o tivesse, depois, levado a enfileirar no golpe de Julho de 1936).
Franco
e Carmen Polo conheceram-se em
Oviedo, no Verão de 1917. A mulher era filha de uma rica família local.
Casaram-se, naquela localidade, em Outubro de 1923. Franco, com 30 anos;
Carmen, de 23. O pai e a tia Maria del
Carmen Polo y Martínez-Valdés opuseram-se ao matrimónio, vendo em Franco alguém que procurava o dote. Carmen fica orfã de mãe -
profundamente religiosa, de uma família ilustre asturiana - e é tratada por
monjas, sob supervisão da tia. O pai é um advogado acomodado que não interfere
naquela educação.
Franco
e Carmen viveram juntos 52 anos. Ele, austero e devoto à nação; ela, coberta de
jóias. Habitaram em Madrid, em lugar refinado. Em 1926 nasceu a sua filha, Carmencita.
O pater famílias, apesar de visto
como “bom” pela descendente, nunca brincou com aquela, confiando-a aos cuidados
da mãe (de acordo com os costumes da época, em tratando-se de uma menina).
Franco
andou de descapotável até ao assassinato de John F. Kennedy, em 1963, e poucas vezes foi ao estrangeiro. Ao fim
de muitos anos, destituiria o seu cunhado, o cunhadíssimo brilhante advogado e
um arquiteto institucional do franquismo, Serrano
Suñer, como Ministro dos Negócios
Estrangeiros e não o nomeou para embaixador
(em Roma), como aquele pretendia, regressando, antes, à carreira de advocacia.
Vários casos extra-matrimoniais por parte daquele expuseram a família Franco,
que se ressentiu.
Franco
recebeu donativos de ricos que lhe agradeciam, assim, ter garantido (a verdadeira) Espanha (p.284). Ele e a
família utilizaram o património nacional como propriedade privada (p.285). Morreu
rico e enriqueceu a sua família, "a
quem permitiu um desenfreado saque" (ao erário público) (p.25).
Hitler,
Estaline e Franco "tiveram pais
autoritários e violentos em casa" (p.35). O Caudilho não assistiu ao funeral do seu progenitor (e proibiu a
amante do pai de o fazer – e, todavia, no filme “Raça” [1942; escrito, no
imediato pós-guerra civil, pelo
próprio Franco, e realizado por José
Luís Saenz de Heredia; mais tarde, haverá uma “reedição” deste filme, agora
chamado “Espiritu de una raza”, na qual, em função de conjuntura diversa e em
plena Guerra Fria, desaparecem as
críticas aos EUA, por exemplo] reinventa a morte do pai, enquanto heróica, em
Cuba, abandonado pelos políticos). Para Franco, a infância não era a época da
vida de que mais gostava de falar.
Entrou
para a academia militar de infantaria em Toledo, onde sofreu praxes,
"um calvário", que "alimentaram o seu ressentimento".
Na Academia
Militar, dava-se mais valor à disciplina
e obediência, do que à evolução do pensamento e das táticas militares. Ali, aprendeu um
"ardente nacionalismo espanhol,
nostálgico da glória imperial". Soy militar. Assim permaneceu ao
longo de toda a vida.
Chega
a Marrocos a 17 de Fevereiro de 1912 (com 19 anos). Nesse país africano – onde
reelabora/interpreta o fim do Império, que se queria renascido, como uma
traição dos políticos espanhóis à própria Espanha e faz o seu baptismo de fogo
- fez uma ascensão imparável até general.
Em menos de 20 anos, 17 mil soldados, chefes e oficiais morrem. A ideia nacional-militarista de ligar o liberalismo à decadência e em resgatar o esplendor perdido, não colhia em muitos
sectores populares que viam na aventura em África – os últimos restos do
Império espanhol haviam desaparecido em 1898, mas para evitar que demasiado
território ficasse para os alemães, na sequência da Conferência de Berlim (1884-1885), é atribuída uma parcela, um protectorado, a
Espanha, no Norte de África, lugar no qual os militares do país vizinho (que
para lá rumavam em busca de rápida ascensão na carreira, África verdadeira universidade de Franco) se haverão
essencialmente com tribos - apenas algo de bom para oficiais e contratistas.
Todavia,
a decadência do regime, com os seus 10
mil homens insepultos, frente a apenas 4 mil guerreiros mal armados (de tribos)
marroquinos, no descalabro de Julho/Agosto de 1921, tal como o fantasma da revolta operária levou a que muitos
vissem com bons olhos o levantamento
militar, de 13 de Setembro de 1923, Miguel
Primo de Rivera, capitão general
da Catalunha e íntimo dos barões da indústria de Barcelona, que colocou termo
ao regime liberal (instalação de
regime corporativo e esmagamento da autonomia catalã). Enquanto ditadura, esta era uma, entre muitas, à
escala europeia, na época. A partir de 1929, porém, o mal-estar e os conflitos
dispararam (a benevolência de PSOE,
fundado em 1879 e engrossado pela aristocracia da classe operária [metalúrgicos
e operários dos estaleiros de Bilbau, mineiros das Astúrias, tipógrafos e
operários da construção de Madrid], e UGT, que com a proibição do movimento
anarquista ficara com o monopólio das questões sindicais, desaparecem). A
situação económica deteriorara-se. Em Janeiro de 1930, Primo de Rivera apresentou
a demissão ao rei e este, depois das autárquicas de 1931 terem dado a vitória,
nas principais cidades, a socialistas e republicanos liberais de classe médica,
e com duvidosa lealdade para consigo de Guardia
Civil e Exército, foi para Paris.
Morreu dois meses depois, aos 60 anos.
Em
1931, nasce a II República. Há que
acatar o novo regime – dirá, em discurso, Franco – ele que será Chefe de Estado Central em 1935, Chefe das forças de Marrocos no mesmo
ano, depois de ter sido Comandante das
Baleares em 1933-34 e Governador Militar
da Corunha em 1932. No entanto, não perdoa a Manuel Azaña, homem de Letras e erudito alçado a Ministro da Guerra e, mais tarde, a Primeiro-Ministro, ter mandado fechar a Academia Militar (que Franco liderava e
que Azaña via como bastião do reaccionarismo;
em 1931, ao alterar, ainda, com a Lei de
Reforma Militar, as regras de promoção militar, atendendo não apenas à
participação na guerra, mas à carreira militar em si mesma, desatará o
descontentamento dos militares africanistas;
todos estes, com alguma excepção, estarão contra a República, em 1936), o que o levará, inclusive, a fazer um discurso
ameaçador para o novel regime e a ter
uma repreensão registada, em função
do mesmo (Franco choraria no final dessa alocução). A primeira insurreição contra a República dá-se um mês após a sua proclamação. O primeiro embaixador alemão na Espanha rebelde enviou, à tutela, um telegrama confidencial no qual dizia que
duvidava das capacidades de liderança (militar) de Franco.
Sob
a égide do Generalíssimo, um
quotidiano espanhol permeado pelo medo e com rompimento dos vínculos sociais de
solidariedade. A jurisdição militar
como que suplantou a civil; a justiça
militar arbitrária deu origem a 9 anos de puro terror. Conselhos de guerra sumaríssimos executaram 50 mil pessoas. Ainda
em 1975 eram executados presos políticos
e a censura permanecia.
Franco
falava de si na terceira pessoa; o
trato, com ministros e amigos de
infância, era formal e distante. O embaixador português Pedro
Theotónio Pereira escrevia a Salazar: "cada dia tenho mais apreensão pelas ideias de Franco" (p.191).
Com
a queda do Eixo, as pretensões de Juan Carlos passaram a ser mais
intensas. Manifesto a solicitar a restauração da monarquia tradicional
espanhola acede ao proscénio da história. Franco demitiu todos os subscritores desse documento, ordenou a
detenção de muitos e desterrou outros tantos. Parte da cúpula militar, todavia,
também enviou carta a Franco no mesmo sentido.
Passatempo
favorito de Franco era a caça. Tradição da aristocracia. Para Hitler,
diferentemente, tratava-se de um desporto triste pela desigualdade entre
atirador e caçado. Ir à caça era, para muitos dos que acompanhavam Franco,
reafirmar uma identidade de casta. Jogava
dominó e gostava da pesca. Os seus aduladores diziam que
gostava de leitura, mas nunca o demonstrou. Em El Pardo não havia uma biblioteca
a sério, apenas escritórios com
papéis. Possuía uma oratória simples, monótona e aborrecida (p.289). O teatro e
a música não o interessavam particularmente, mas era um grande aficionado do
cinema - como os grandes ditadores da
sua época.
Franco
"não fumava, nem tocava em álcool,
com excepção de um pouco de vinho às refeições; não era mulherengo. Carmen Polo
foi a sua única mulher e o seu estilo de vida era frugal" (p.282).
A
Espanha é admitida na ONU em Dezembro
de 1955 e, pouco depois, Franco viu-se obrigado a aceitar a descolonização dos territórios africanos
pelos quais havia lutado na sua juventude. Projectos autárquico-militares da
Alemanha nazi e da Itália fascista
foram inspiração para a Espanha de Franco. Este, nunca havia sido um liberal na economia, mas a emergência
dos tecnocratas da Opus Dei como que vindicam esse modelo,
sem nunca transigir com a existência de um sistema fiscal progressivo que pudesse promover uma redistribuição de rendimento e
criar um sistema de saúde ou de educação públicos robustos, em tempos em
que a universidade era tida, de um
modo geral, como muito medíocre. A partir de 1953 passa a ter a bênção e a
ajuda económica, técnica e militar dos EUA (The
New York Times, 30 de Agosto de 1951: com este auxílio massivo económica estamos a
ajudar Franco a perpetuar-se no poder e será essa a nossa responsabilidade
perante a História). Eisenhower, em 1959, é o primeiro presidente dos
EUA a visitar os EUA. E foi o primeiro líder democrata, 23 anos depois do golpe de Estado, recebido por Franco. O Plano de Estabilização desse ano mudou a
Espanha, com muitos a passarem da fome e escassez a ter uma casa, carro e
televisão. O eixo industrial Madrid-Viscaya-Barcelona continuava o mais
pujante; milhões vão deixar o mundo rural e partir para as cidades em busca de
uma vida melhor; dá-se, por consequência, uma crise da agricultura tradicional.
Bom cristão, austero,
humilde, a quem não
deslumbravam os títulos ou a riqueza, assim, Franco, retratado pela propaganda. Palácios, jardins, edifícios
históricos foram utilizados pela sua família, como antes o eram pela monarquia (monarca sem coroa). "Franco era popular, adorado por uma boa
parte da população e havia muitos que o deificavam como defensor da ordem, da autoridade, da concepção
tradicional da família, dos sentimentos
espanholistas, da hostilidade beligerante contra o comunismo e um inflexível catolicismo
reaccionário. Nem tudo se devia ao medo, à repressão e à propaganda. Uma
parte importante da população, desmobilizada e apática, compartilhava os êxitos
de Franco" (p.21). Depois "apareceram
fricções, importantes conflitos nas fábricas e universidades, incluídos padres
e católicos que falavam de democracia, socialismo e liberdades, provocando
alarme na hierarquia eclesiástica e uma reacção indignada de dirigentes e
servidores de Franco acostumados a uma Igreja submissa e entusiasta"
(p.22). Entre os opositores começaram a aparecer intelectuais falangistas que marcavam distâncias face
à ditadura e estudantes de esquerda oriundos de famílias instaladas (provenientes dos vencedores da guerra civil) (p.300). Guerrilheiros com armas nas montanhas da
Andaluzia, Astúrias, Leão e Galiza fugidos durante a guerra civil eram outro
dos raríssimos flancos de alguma preocupação para a ditadura. Aqueles ainda tinham armas e tal causava algum
desconforto ao franquismo. Seis mil guerrilheiros participaram em atividades armadas em diferentes montes
de Espanha, a partir de 1939. Mais de 2000 guerrilheiros
e 300 homens das Forças Armadas
morreram em confrontos (entre si). Francisco
Franco, ao longo de 36 anos dependente (do
apoio de Estados/potências de topo) do/no
exterior e todo-poderoso em Espanha,
morreu às 5h25 da madrugada de 20 de Novembro de 1975. No mesmo dia e mês no
qual tinha sido fuzilado, pelas tropas
republicanas, José Antonio Primo de
Rivera em 1936. Até à presente década ambos estiveram sepultados no Valle de los Caídos (repabtizado, Valle de Cuelgamueros), mandado erguer,
20 anos após a rendição republicana,
como símbolo da vitória total da cruzada e
segunda reconquista que Franco quis
representar. Nenhum dos hierarcas de Franco foi preso, arrestado
ou processado.
A
quando da morte de Franco, doente de Parkinson,
a 20 de Novembro de 1975, as autoridades democráticas
europeias não se fizeram representar no funeral. Augusto Pinochet, sim. O então presidente chileno elogiou Franco na
luta contra o comunismo e por uma
civilização não materialista nem
ateia. Juan Carlos, num primeiro discurso de 12 minutos, elogiou, também,
Franco. Francisco Franco fez-se enterrar
como um faraó. Nenhum dos outros ditadores, Mussolini e Hitler, teve tal culto de personalidade no
funeral. Franco nomeou 119 ministros. Aprovava leis sem os consultar. Não
era a perícia que procurava, mas a lealdade e obediência. Quando alguém possuía algum poder pessoal, demitia-o. Os mais fiéis
eram recompensados, fechando-se olhos a corruptelas e incompetências.
Nomeava-os, também, para os Conselhos de
Administração de empresas públicas e privadas. O seu círculo mais próximo
foi integralmente masculino, com a comum ideia da absoluta superioridade
masculina e, mesmo, da camaradagem e violência. O lugar da mulher era na
cozinha e no dormitório.
Quando
a Segunda Guerra Mundial terminou
centenas de fascistas e criminosos de
guerra instalaram-se em Espanha, protegidos por Franco. Três dos mais
destacados foram o belga Léon Degrelle,
fundador do movimento fascista Rex; o austríaco Otto Skorzeny, coronel das SS;
e o croata Ante Pavelic, líder do
movimento Ustacha.
19.Lendo-se
a mais recente biografia sobre Franco, da autoria de Julián Casanova, há
similitudes com o nosso tempo – nada é completamente novo, nem nada é uma
absoluta repetição, como diria Ratzinger
– que saltam à vista: a) o descrédito dos partidos tradicionais e falta
de capacidade ou de vontade política das elites para propiciarem a mudança
(p.59) necessária – antes de um golpe de
Estado se dar e uma ditadura se
instalar; no caso espanhol, com Primo de Rivera uma (primeira) ditadura (no século XX espanhol), em
1923; b) "Muita gente queria soluções radicais, simples e extremas" e encontrou
em Franco e companheiros a pretensa solução
para os mesmos (como atualmente em tantos movimentos e líderes ditos populistas, iliberais, autoritários);
c) um líder eivado de um moralismo redentor, que se "apresentou como o máximo defensor da luta
contra a corrupção" (p.28) - mas que permitiu e deu guarida a um regime
profundamente corrupto ("uma era nascente de rapina e corrupção à
grande", p.280), um tópico hoje tão presente, nomeadamente por aqueles
que a seu lado têm compagnons de route
cujo exemplo é de fugir; d) muitos
milhares ou milhões de pessoas aderiram, em Espanha, ao fascismo para regenerar a
política e a pátria, com as mesmas ideias, isentas de qualquer complexidade
acerca do humano, dos que, por exemplo, na Alemanha nazi, como os testemunhos
de Milton Mayer provam em “Eles
pensavam que eram livres. Os alemães em 1933-1945” (Tinta da China, 2025), visavam a purga, em um estilo muito presente, e com grande adesão popular,
nos nossos dias; e) um líder que se
cria um messias ("via-se a
si mesmo quase como um Messias", p.16), escolhido pela Providência e que não tinha que responder (politicamente) perante humano algum (precisamente
como se pretendem aqueles que estão a dar cabo da democracia e das liberdades
nos seus países, até há pouco faróis
nesses âmbitos demo-liberais); f) uma liderança que mais do que
interessada na perícia e no conhecimento, escolhia para a
administração os leais e obedientes
(cegos) (tal como a recusa dos peritos
e da ciências hodiernamente); g) um discurso permanentemente eivado de um tom e conteúdo conspirativo (em nossos dias, permanentemente
disseminado nas redes sociais com
objectivos de manipulação política e partidária, em múltiplos países); h) a divisão discursiva e maniqueísta nós/eles, patriotas e traidores,
nacionalistas
e vermelhos,
verdadeiros espanhóis e anti-espanhóis (divisão que
constitui o cerne discursivo dos populismos actuais). Muito presente, também, o
que se tem designado hoje por “discurso
de ódio”; i) a utilização e manipulação de uma identidade religiosa para fins e
objectivos pessoais, políticos, partidários (o catolicismo funcionou como ecrã
fundamental para a sobrevivência do regime franquista;
hoje, dos EUA, ao Brasil ou à Hungria e Polónia a simultânea evocação e
denegação do mesmo cristianismo em termos políticos); j) regimes políticos muito próximos ou semelhantes apoiaram-se
mutuamente (por exemplo, e para lá de outros ditadores, a junta dos coronéis grega foi também
aliada de Franco, como Mussolini e Hitler tinha sido essenciais para a vitória
do Movimento franquista), tal como
vemos assistência mútua, congressos internacionais de extremistas); k) tornar
a Espanha grande outra vez, propunha-se Franco (Espanha "voltaria a ser grande, com um importante
lugar entre as potências do mundo", p.17)), como agora, em diversos
países, populistas e autocratas à direita reclamam igual slogan.
Um nacionalismo ardente era fomentado e hoje parece de regresso; l) a
ideia de destruir a democracia a partir de dentro, a partir do seu interior
– “bem vistas as coisas (…) os jovens seguidores de Gil Robles, da JAP,
tinham revelado abruptamente os objectivos da tática legalista, em termos que
faziam lembrar a atitude de Goebbels relativamente às eleições alemãs de 1933:
«Com as armas do sufrágio e da democracia, Espanha deve preparar-se para
enterrar de uma vez por todas o carácter apodrecido do liberalismo. A JAP não
acredita no parlamentarismo, nem na democracia»” (p.94). Se é certo que a
derrota nas urnas não permitiu promover, por implosão, a derrocada do regime demoliberal e desaguou, antes, num golpe de Estado militar, todavia essa
era a tática a seguir, vendo que Hitler chegara, em parte, pelo voto popular a
Fuhrer (e a partir dele tinha posto fim à democracia e suas instituições). Da
Polónia à Hungria ou aos EUA o ataque e captura à independência dos tribunais,
da imprensa, das universidades, entre outros ataques a direitos fundamentais
ilustra bem como continua actualmente muito vincada em alguns líderes e regimes
o perverter a democracia a partir de dentro.
Em
relação ao mesmo período da história portuguesa, e para lá dos paralelos já
estabelecidos neste texto, quando representamos a acção de Francesc Vidal i Barraquer, arcebispo
de Terragona, é, nas suas diferenças, difícil deixarmos de evocar D. António Ferreira Gomes (em ambos os
casos, Bispos no exílio e impedidos de regressar à sua pátria); nas atividades
heróicas de diplomatas, para salvar judeus, no contexto da Segunda Guerra Mundial, como Ángel
Sanz Briz, em Budapeste, Julio
Palencia Álvarez-Tubau, em Sófia,
José Rojo Moreno, em Bucareste e Sebastian de Romero Radigales, em Salónica
é impossível não nos recordarmos de Aristides
Sousa Mendes; a década de 60 como período de grande crescimento económico em Espanha impele-nos ao correlato com o que
sucedeu, nos mesmos anos, em Portugal, com a diferença de que por cá, a Guerra Colonial iria devastar esses
ganhos; a mesma indignação de altos
dignitários do regime com os que na
Igreja, a dado momento do devir das ditaduras, principiam a fazer críticas e afastar-se
daquelas, ressentimento para com estes recorrendo a argumentos idênticos (a
reposição de um estatuto privilegiado e de todas as prerrogativas a uma
instituição que permitia, agora, tais desmandos…); a mesma utilização da tortura como instrumento de punição para os tidos
como desviantes da linha justa do regime; a mesma manipulação na
mobilização de massas para escorar posições do regime e chapeladas eleitorais –
do plebiscito para manter o franquismo ou regressar à monarquia tradicional espanhola às presidenciais de 1958 em Portugal…
Franco
passou pelo Porto para conhecer as bodegas
e esteve em localidades como Braga, Guimarães e Monção (p.268). Em Coimbra
recebeu um doutoramento honoris causa
(p.269). Foi ao mosteiro da Batalha e
ficou hospedado, com a mulher, em Sintra. Disse a Caetano, de quem era muito amigo, que apesar de haver muitos
protestos no país vizinho, as pessoas tinham carro, consumo e, por isso, tinha
“livrado a Espanha da revolução”.
P.S.:
sobre o papel da Historiografia, ou
da História enquanto grande juiz do
passado, Julián Casanova conta um dos muito divertidos chistes de Churchill: “A história julgar-nos-á com benevolência», dirá o estadista
britânico a Roosevelt e Estaline, no encontro que mantiveram em Teerão, em
finais de 1943. Quando os seus interlocutores lhe perguntaram como podia ter
tanta certeza disso, respondeu: “porque
eu escreverei a História». Fê-lo em VI
Volumes (Sobre a Segunda Guerra
Mundial). Ora, regista Casanova: “Mas
nós, os historiadores, não somos membros de um júri que coloca os actores numa
sala de juízo, com poder para sentenciar. Nas nossas investigações, que
difundimos em ensino e escrita, dialogamos sobre o significa da História e da
sua relevância para o presente, fazemos perguntas e encontramos novos
significados. Franco, nos seus quase 40 anos de mando, foi golpista, caudilho
salvador, criminoso de guerra, abraçou o fascismo, que abandonou paulatinamente
após o seu colapso, procurou e encontrou respeitabilidade internacional, foi
bandeira da luta contra o comunismo durante a guerra fria, ‘sentinela do
Ocidente’ e campeão das ditaduras desenvolvimentistas (p.29) (…) Que os leitores compreendam que a História é
uma ferramenta que conduz por muitas ruas e direcções, ilumina acontecimentos
que só se entendem através da indagação séria e minuciosa das fontes (…)
Frente aos muitos que se creem amparados no uso político da História a partir
do presente, o juízo sobre a maldade ou
a bondade dos personagens do passado não é um conceito histórico. O autoritarismo
nunca é uma bênção; a perseguição de centenas de milhares de pessoas não é o
preço que há que pagar para salvar uma nação num momento de extraordinário
perigo (…) Tem que ser possível,
cinquenta anos depois, voltar a vista para o passado e não procurar apenas
aprovação ou condenação” (pp.382-383).
Julián
Casanova crê que, face a biografias precedentes de Francisco Franco, a sua, nas
livrarias espanholas desde Fevereiro e já na quinta edição, aduz uma comparatística internacional, o enxertar de
Espanha no contexto da História Global que nem sempre se poderão encontrar em
outras aproximações acerca do caudilho
(para compreender quem foi Franco utiliza, em simultâneo, o “microscópio”, a
história de Espanha em sentido estrito, e o “telescópio”, a perspectiva de que,
por exemplo, nenhum ditador, no
pós-1945, se aguenta sozinho [nenhum ditador
independente], sem o apoio de uma grande potência e da importância, nesse
contexto, da guerra da Coreia). Do mesmo modo, em um livro escrito em capítulos
breves (o que é inédito no autor), pensado, também, para ser capaz de convocar
uma geração digital – ou a ela aceder, se não diretamente, deixando um conjunto
de fios e incisos que os professores de História possam utilizar - incorporando
elementos, inclusive, os mais originais do livro, que o Wikileaks proporcionou
(o relato de Gerald Ford da conversa
que Helmut Schmidt, figura maior da
social-democracia e chanceler alemão, havia tido com ele, durante uma cimeira da NATO, desaconselhando-o de ir
ver Franco, dado que a democratização em Espanha estaria próxima e a resposta
de Franco de que em Espanha não haveria revolução
dos cravos, como em Portugal, nem queda dos coronéis, como na Grécia, “os pequenos países [Alemanha] têm-nos é
inveja [Espanha protegida pelos EUA]” chegou através destes leaks) - aporta um aturado conhecimento
e interpretação das personalidades que se situaram na proximidade ou na órbita
do Generalíssimo – com um método
narrativo indireto que deixa que Suner ou Blanco falem (por si); um dramatis personae a que não é alheio,
ainda, o acervo fotográfico disponibilizado ao longo da obra e que mostra quem
esteve com e ao lado de Franco, ao longo dos anos e das décadas (tendo Julián
Casanova investigado intensamente nos EUA as biografias de muitas destas
personalidades que foram suporte de Franco) - que biografias outras do homem
que esteve à frente da governação de Espanha durante quatro décadas não
facultam. O investigador considera a História, essencial à cidadania - sendo
crucial os historiadores procurarem comunicá-la e os professores estarem ao dia -, não é propriamente
permeada pela racionalidade: “se a
História fosse racional não teria havido o Holocausto”.
Pedro
Miranda
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