"DEBAIXO DO CÉU", DE NICHOLAS OULMAN

 

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A guerra acabara de se concluir e há um SS preso numa espécie de campo de detenção: um refugiado judeu entabula conversa com este. Falam de literatura. O (agora) homem livre conhece a diferenciação existente nos comandos nazis, e julga estar a falar com alguém que pertence à elite daquela organização (tenebrosa). Descobre que estava enganado; trata-se de um "normal" guarda de um campo de concentração. E neste diálogo se encerram, podemos dizê-lo, as habituais perplexidades da relação entre barbárie e cultura. 

Há a sobrevivente, exilada judia que conta como embarcou, num avião, para os EUA. Como a viagem foi sobressaltada, em virtude de uma tormenta ambiental. E como um indivíduo, alemão, nazi, no avião, sabendo-a judia, pegou no saco para que esta pudesse vomitar, tratando-a com a maior simpatia. Um nazi que não se portava como um nazi, diz agora a judia já idosa. Desde Orwell que "um fascista com as calças na mão não é um fascista". E aqui, como em certa medida no passo anterior, o realce de os que enfileiraram no nazismo eram de carne e osso, não seres com chifres ou outras características do género. O que, naturalmente e como se sabe, mais arrepia (e nos obriga a olhar até ao fundo de cada poço). Não por acaso, João Pinto Coelho, dizia que depois de muito estudar o nazismo, começara a duvidar do seu carácter (o homem capaz de fazer aquilo a outro homem).

Uma outra sobrevivente, refugiada, igualmente marcada pela passagem por Lisboa: sem a adesão da "massa do povo" alemão, nunca teria sido possível a Hitler fazer o que fez. Sim, houve alguns alemães bons que, aliás, ajudaram a salvar uma imensa minoria. Mas as massas, pelo contrário, alinharam com os nazis. Hitler, claro, foi determinante no despoletar do inimaginável, mas teve que contar com um papel decisivo do povo alemão. Eis outro dos temas que têm dado origem a vasta literatura (ainda recente, da última meia dúzia de anos).

Sim, passou-se na Alemanha, mas muitos, no lugar daqueles teriam feito o mesmo, sugere outra voz, por entre as muitas imagens de arquivo que vamos vendo, em especial de uma Berlim já completamente destruída. Arendt diz que quando lhe perguntavam se não tinha vergonha dos alemães, respondia que se envergonhara do humano (e contava as inúmeras nacionalidades que participaram no imenso mal feito). 

Há a história da judia bela que se salva, em Paris, porque um oficial francês por ela se encanta. Há a família judia cujo sobrevivente conta a viagem de comboio para Portugal. A inacreditável paragem em San Sebastian, onde pululavam bandeiras nazis e se celebrava os avanços destes na guerra. Chegados a Lisboa, tudo é maravilha, as ruas, a limpeza, a comida, as cores; paradoxalmente, em um tempo em que Portugal vivia sob uma ditadura, a liberdade.
Nos testemunhos recolhidos por Debaixo do Céu, Portugal, naturalmente naquele contexto, não surge como menos do que um paraíso. Para além de Lisboa, uma das pessoas ouvidas conta ainda como esteve na Figueira da Foz, com mais uma multidão de refugiados, e que nunca vira uma praia tão grande pelo mundo; a viagem à Biblioteca de Coimbra, da qual ainda se recorda; o passeio por Tomar. Tudo isto, em dois dias. Proporcionado por um dos funcionários da (então incipiente) Biblioteca da Figueira, que pede a este homem que lhe ensine francês (a partir do qual lhe pretende explicar o terrível do regime português).
Há refugiados que se integram na sociedade portuguesa muito bem, dando, nomeadamente, aulas de Línguas. Outros têm Lisboa apenas como mero trampolim, antes de nova viagem, nomeadamente para os EUA.

Quase sempre, esta cerca de dezena de testemunhos escutados por Nicholas Oulman principiam a sua narração biográfica pela Alemanha dos anos 30, aonde viviam. Onde constatam, uma vez mais, o inaudito de, de um dia para o outro serem párias, e quem sempre lhes falara e fora amigo colocá-los, a eles judeus, de lado. E de como houve pais que desde o momento zero da chegada de Hitler ao poder, desde o dia inaugural mandaram os filhos sair do país. Quem não saiu nesses primeiros tempos, ou teve imensas dificuldades em sair, ou de todo não mais escapou. A mensagem nazi era clara: "não vos queremos cá". Se uma grande mole entendeu que nunca seria possível chegar ao extremo a que se chegou, houve, em realidade, quem desde a hora primeira não tergiversasse e tivesse conseguido interpretar, por completo, o significado do novo poder na Alemanha.

[37 pessoas viram este documentário na sessão do Pequeno Auditório do Teatro de Vila Real, a 16-04-2019]

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