A MÚSICA DA VIDA DEPOIS DOS 70

 


Serestas, entre diferentes grupos de maiores de 70 anos, a música não é apenas uma paixão, mas a vida orgânica, o sopro, o andamento do quotidiano, o veículo para a expressão de valores individuais/comunitários, numa palavra, a sua razão de viver, a razão de ser. "Guardiões de uma memória", assinala o realizador Sérgio Tréfaut, todos cantam "Carinhoso", o "hino brasileiro não oficial". Pessoas acordando cedo pensando na canção que vão interpretar à noite. Náufragos de uma sociedade que não acolhe mais aquela autenticidade, a remete para as margens, muito menos criativa, em muita da actual cena funk, por exemplo, do que a dos poetas populares, arredios da sociedade do parecer, do novo-riquismo que a Globo inculca (vinca Tréfaut). Juntos, em vários grupos de anónimos, “belíssimos e monumentais”, nos Jardins do Palácio do Catete (comparado ao Jardim da Estrela, na realidade lisboeta) – anterior sede da Presidência da República brasileira antes de Brasília, hoje Museu aberto à população do Rio de Janeiro -, cantores e instrumentistas, vivendo, nalguns casos, de acordo com o seu testemunho, o melhor que a vida lhes tinha proporcionado (até então). As casas que vemos, destes  pequenos intérpretes [porque ninguém conhece], mas gigantes [em cena - espontânea]”, são acanhadas, muito muito precárias não raro, pode morar-se sozinho, mas o que não pode faltar é o gira-discos, o CD, aquela continuidade com o tom e o som colhidos desde infância. A música popular do seu país como traço maior de identidade entre os brasileiros (a música popular brasileira é como que "o cimento da nação", observa o cineasta). Filmado a partir de 2019, acompanhando o dia a dia – e belo dueto, em forma de musicoterapia, no ocaso do documentário – de vários membros de uma geração, a Ocidente, colocada à margem, como se já lhe não pertencesse viver (há uma cena extraordinária de uma senhora centenária a cantar, com alguém, atrás de si, a ir soprando-lhe a letra ao ouvido, percebendo-se que a senhora de 100 anos, a dado momento, bem dispensaria aquelas deixas, tão lançada estava na canção). Murro no estômago derradeiro quando o autor deixa registado, a finalizar, que o Rubinho do bandolim havia morrido, com a covid19, depois de dois dias às portas do hospital sem ser atendido. E, como ele, outros membros daquele grupo fantástico de homens e mulheres, que Sérgio Tréfaut resgata, em homenagem sensível, nomeandos um a um, sucumbindo aqueles, apenas, à abordagem política sinistra da pandemia no seu país natal. Os sobreviventes ainda puderam assistir ao lançamento da película do realizador luso-brasileiro-francês, e a senhora já com 102 anos abraçou Trefaut de alegria. "Paraíso": um filme que mistura todas as classes sociais, negros e brancos em colaboração, uma espécie de utopia Brasil. 

*Serestas - modo brasileiro de reunião que vem já do século XIX, sessões em que as pessoas se juntavam para compor e cantarem. Tréfaut nasceu no Brasil, de onde saiu aos 10 anos, e onde quis regressar durante um período considerável de tempo aos 50, já depois de se ter licenciado em Filosofia na Sorbonne, e a, posteriormente, nos ter deixado documentários marcantes como “Lisboetas” – sobre a imigração em Portugal do final dos anos 90/início dos anos 2000, com impressivas imagens da capital portuguesa a lembrarem fenómenos de escravatura -, “Viagem a Portugal” – onde, curiosamente, as práticas do SEF eram altamente questionadas – ou o elogio ao Cante Alentejano (em “Alentejo, Alentejo”), a uma comunidade – que principia com outra cena não menos marcante: “'Está tudo pronto para o concerto do Tony Carreira?', ouve-se, ao fundo, o estridente locutor de serviço, levando os elementos do Cante Alentejano, como bem descreveu Kathleen Gomes, a deixarem “o local cabisbaixos, humilhados. O que se vê nessa cena é o triunfo de uma determinada representação do povo, criada, alimentada e reproduzida pela televisão, que contaminou todas as dimensões da cultura portuguesa”. António Guerreiro já havia explicado, de resto, a diferença entre o “povo” e o “povo da televisão”: “o povo construído pela televisão é ridículo. (…) Há o “povo” que vem aos estúdios dos programas da televisão (quase sempre um “povo” suburbano que já conhece bem os códigos da televisão e sabe imitá-los); e há o povo que a televisão visita no seu habitat natural, geralmente os recantos profundos do país onde se vai em busca de arquétipos”.

"Paraíso", de Sérgio Tréfaut

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