FILME PARA A REENTRÉ ESCOLAR: O PROFESSOR BACHMANN

 

FILME PARA A RENTRÉE ESCOLAR: "O PROFESSOR BACHMANN E A SUA TURMA" ("HERR BACHMANN UND SEINE KLASSE", MARIA SPETH, 2021)
A certa altura, diz o Professor Bachmann a um aluno na sala de aula: "queria agradecer-te, porque quando passo no recreio vejo que estás sempre a sorrir e isso dá-nos a ideia de que a vida é uma coisa boa. Queria agradecer-te por estares sempre bem-disposto". Revi-me completamente no agradecimento; pensei: 'foi o que, entusiasmado, procurei transmitir ao João sobre a carícia ternurenta à Patrícia ou à Bruna quando pediu para sair da sala para ir consolar a Joana'. Outra cena: no final, o professor entrega a avaliação que faz de cada aluno, num formulário preenchido para o efeito e diz: "isto é uma coisa que não tem nada a ver com o que vocês são; isto é uma coisa menor, a avaliação em matemática e alemão; o mais importante é vocês serem os jovens excelentes que são". Muitas vezes, vincula-se estritamente, sem tirar nem pôr, a pessoa do Felipe, ou da Catarina, à performance do Felipe ou da Catarina na escola. Esta (performance), em vários anos da vida da pessoa (Felipe/Catarina) adquire tal centralidade no seu dia-a-dia (um livro sobre o ensino português diz que só por cá alguém aos 50 ano sabe as notas escolares que tinha no 6º ano...), e do seu núcleo de pessoas familiares/amigas que a apreciação/afecto pela pessoa (Felipe/Catarina) parece estar estritamente vinculada/dependente da performance/resultados escolares dela. O afecto incondicional pelo (a) Felipe/Cataria, significará, gostar deles antes e depois dos 15, dos 18 ou 20 valores - mesmo que os 15, 18 ou 20 valores também possam reflectir graus diversos de empenho, trabalho, responsabilidade, etc., ainda que não necessariamente tal e qual, pois factores de outra ordem podem, igualmente, como se sabe, intervir: lugar onde se vive e tempo a que se está da escola e que se dispõe para estudar; condições da casa (quarto só para a pessoa e possibilidade de silêncio para estudar); acesso a explicações; estabilidade familiar; maiores ou menores capacidades; adaptação ao ensino ou educação com o tipo de atributos que aquela requere). E é, ainda, particularmente simpático o modo como Bachmann quase pede desculpa pelos "F" (pior nota que atribui, no registo alemão) aos alunos da sua turma (aos quais está muito vinculado emocionalmente; como que a dizer, de novo, sou, em qualquer caso, teu amigo, mas o nível de proficiência ainda não é o desejável, podes melhorar embora tenhas feito progressos - o tom é sempre o do reforço (positivo), ainda que, e sempre, responsabilizante; e nem a amizade evita enviar uma aluna para a rua, e com ela vá conversar para fora da sala de aula).
Finalmente, num dos meus diálogos preferidos do filme, o professor Bachmann em conversa com um escultor - em uma oficina para a qual levara os seus alunos, para praticarem (tal ofício) - diz que na sua época como aluno a escola quase o alienou (o professor é frágil, não passou à primeira na parte de ciência política de um exame fundamental para o acesso ao Enino Superior - e teve que repetir essa parte do exame; o professor primeiro cursou outra área, mas não viu sentido nela e acabou em Pedagogia, porque o emprego da mulher não era estável e alguém tinha que pagar as contas de casa; o próprio casamento, durara 14 anos, mas terminara - e esta fragilidade nunca parece um acaso no filme; a ferida, nele, surge, ao invés, como porta de acesso a um mais intenso sentido de empatia - do que aquele que temos por mais comum - e na capacidade de olhar a partir "de baixo" e não com um olhar triunfalista, julgador, moralista; um olhar ferido, pois, prepondera, em um docente que, embora sempre utilizando o reforço positivo como estratégia, faz da responsabilização de cada um, e de cada um perante os outros, nomeadamente, até, em parte, pelo desempenho escolar dos outros, um factor/elemento muito relevante do seu mister. O Professor Bachmann pretende, desde o primeiro dia, uma turma muito unida e solidária).
Às tantas, para motivar os alunos para a aprendizagem toca com eles violão, ou com aqueles canta; vai com eles a uma espécie de workshop de escultura ou assiste a um combate de boxe de um dos alunos - e assinala este paradoxo: no fundo, "muitas vezes não sei para que servem estas actividades que promovo e sinto-me culpado de não dar mais matéria de alemão e matemática; mas, ao mesmo tempo, ao dar as matérias, sinto que lhes estou a 'enfiar aquilo pelas goelas". Dito de outro modo, "sinto" que a parte de "adestramento" importa 10% no conjunto do processo de ensino - reflecte. Em termos emocionais, mas não apenas, diz Bachmann, "recebo muito de uns alunos, algo de outros e nada de outros ainda". E a prova de que o que se faz pode fazer bem a um outro ao qual não se está a fazer nada directamente - enfim, o nosso carácter social e, nesse contexto, a nossa responsabilidade testemunhal - passa, justamente, pelo sorriso que alguém mantém sempre e nos faz bem; numa carícia que traz fraternidade ao mundo; no cuidado com que se toma o outro que momentaneamente sofre e se afirma assim aquele como próximo e não como indiferente.
O filme "O Professor Bachmann e a sua turma" ("Herr Bachmann und seine Klasse", Maria Speth, 2021) situa-se em uma cidade industrial alemã, com bastante imigração. Na sala de aula, alunos adolescentes, entre 12 e 14 anos, oriundos de 12 nacionalidades diferentes (de Marrocos à Bulgária, passando, claro, pela Turquia). Da integração num novo país, cultura, língua; do papel do professor e suas estratégias para motivar a aprendizagem; dos papéis de "sexo" ou "género"; da tolerância - ou pacífica e mutuamente enriquecedora troca - na diversidade; do porquê da escolha da profissão e da busca do seu papel na escola de hoje; da ligação emocional com os alunos e do conhecimento da sua concreta vida quotidiana (o que fazem, com quem vivem e convivem, o que se passa em casa, quem nela faz o quê e como); da própria especificidade da formação de professores na Alemanha; da sexualidade e da sua vivência a partir de diferentes mundividências (o que diz o Corão sobre o assunto?, questiona o professor, sempre de gorro e com uma vestimenta também sempre muito informal, uma sua aluna que seguiria o Islão 'à letra' e que vai sempre com o véu para a sala de aula); da ligação aos pais dos alunos e da procura de ajudar na construção de um projecto de vida; a empatia para lá das notas, e a separação entre estas e o que a pessoa é, bem como a procura de melhoria de capacidades não apenas cognitivas da pessoa/aluno; a própria indumentária de cada um e o local onde almoçam como factor/elemento na promoção da sua coesão e proximidade emocional; a gestão da autoridade em sala de aula e a própria gestão dos conflitos dos alunos entre eles (promoção da autonomia e independência); da história alemã no século XX e das causas da imigração inicial neste século para aquele país e, depois, em massa no pós-II Guerra Mundial - um filme muito interessante, embora muito extenso (217 mn), Urso de Prata em Berlim e "uma obra-prima do documentário", para João Lopes, no DN.
Multiculturalidade omnipresente, primeira vez que os alunos experimentam a democracia em acção é ali, na escola. Cidade no centro geográfico da Alemanha. Pela política nazi, em 1938, a maior produção de armamento durante a II WW foi lá instalada. Operários de trabalhos forçados, prisioneiros de guerra e dos campos de concentração. 17 mil pessoas deslocadas para aquela cidade. Hoje, 70% da população é de origem imigrante. No filme, cada jovem é uma folha em branca, pedagogia adaptada a cada um dos alunos/meninos. "As crianças nestas idades ainda não desenvolveram disfarces para seguir certos modelos sociais". A sinceridade, honestidade e sensibilidade é o que torna o filme mágico, diz a realizadora. Câmara na rede, entre professor e alunos, como num jogo de ténis. Conhecer e criar confiança com a turma era essencial. Não dirigir os alunos, 200 horas de filmagens. A sala de aula parece uma sala de estar, com sofá, instrumentos musicais e mesa onde se pode comer. Isso cria um ambiente familiar, que leva os alunos a falarem dos seus anseios e medos. As discussões que o professor promove levam à democracia. Libertar de tabus, de medos de pensar e de falar. Todos devem expressar a sua posição, mas devem, também, fundamentá-la para lá das suas tradições culturais [diz a realizadora ao Ípsilon, do Público, 04-02-2022] Grande vivacidade. O professor não está ali para descarregar certezas sobre os alunos. Método: maiêutica. Dinâmicas em sala de aula. O professor transmite tanto o conhecimento como afeto pelos alunos. Ensina dignidade e tolerância. Sweatshirt dos AC/ DC. 6ºano de escolaridade. Professor com curiosidade e sem preconceitos. Professor, carisma e paciência.
"Maria Speth filma num estilo que evoca o do mestre Frederick Wiseman, assente na observação imersiva, não-interventiva e isenta de opiniões, sermões e manipulação sentimental, ideológica ou outra em relação ao meio, grupo ou tipo de estabelecimento escolhido para documentar. E vai assim fazendo o espectador sentir-se uma testemunha invisível, gradualmente mais integrada e bem informada sobre a região, o meio, as pessoas, as relações entre elas e as suas personalidades, os objectivos da instituição. E o tempo passado com eles e entre eles revela e amplifica a dimensão pedagógica, social, emocional e humana de 'O Professor Bachmann e a Sua Turma' (ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim)", Eurico de Barros, "Time Out".
"O desejo de compreensão do mundo é, já em si mesmo, fazer – mundo, pois requer uma atitude experienciadora, e constitui uma alternativa à mesmidade, ao inconformismo e à involução. (...) As formas para serem esculpidas não são dadas a priori, e isso justifica que os currículos se perspectivem como construções e hipóteses, e não como produtos ou pontos de chegada". (Maria Inês Gomes, in 'Cinema Sétima Arte')
"É, seguramente, um dos títulos mais importantes da produção documental dos últimos anos" (João Lopes, 'SicNotícias')
"[O professor Bachmann] os acompanha e os faz crescer, para que eles possam – depois daquele ano – prosseguir os seus estudos na ‘escola normal’, digamos assim. E é esse trabalho que é incrível, espantoso, comovente e nostálgico. Não se trata de pegar num funil e encher a cabeça dos alunos com matérias, mas de pegar no cinzel (acontece realmente no filme, no atelier de um escultor) e mostrar a beleza que está escondida dentro de cada um e cada uma. É isso que o professor Bachmann faz, com muita arte, muita paciência, muitas experiências diferentes, com muita dedicação e amor, com muita proximidade e autoridade. É um professor que faz muitas perguntas, não para avaliar e dar notas – ele sabe como isso é redutor –, mas para que cada um e cada uma seja “obrigado” a encontrar as razões para as suas afirmações, a duvidar do que diz e do que faz, e descubra que talvez deva mudar.", Manuel Mendes, "7Margens".
Câmara invisível, cinema direto. Andou pela sala de aula um/dois anos antes de começar a filmar a realizadora Speth. O professor tem que consciencializar cada aluno do seu valor. Força, doçura, abertura. Bachmann tem mais de 60 anos. Pouco ortodoxo. Quando se canta, dança, toca ou se contam histórias, o lado pessoal mais duro fica um pouco de parte. Filmado ao longo de um ano letivo. Filme de baixo orçamento. Só foram usadas duas câmaras. 30 dias de rodagem, 6/8 horas dia na sala de aula. 3 anos na montagem. Muito tempo passado com as crianças pela equipa que realizou o filme fora das aulas. Câmara ao nível dos olhos dos alunos. Foi a realidade, ela mesma, a oferecer o presente que é o filme. A carpintaria, os malabarismos. Cada aluno representa, praticamente, uma minoria na sala de aula, pelo que não existe ali uma maioria para oprimir. O professor tenta detectar os talentos, possibilidades e interesses de cada um. Sem preconceitos mas não pelo politicamente correto. Aplausos e silêncios fundamentais na questão da autoridade do professor. Uma autoridade baseada na confiança. Desenraizamento. 25% dos habitantes desta localidade onde o filme foi rodado nem sequer tem cidadania alemã. O professor integra um programa de inclusão escolar. Durante um ano, prepara alunos para os programas docentes regulares.
"Que equilíbrio entre integração e pluralidade cultural? Como deve o sistema de ensino responder as mudanças introduzidas pela demografia na Europa, gerada pelas migrações? (...) Bachmann, antigo revolucionário e artista (...) dilui as fronteiras entre ensino curricular e aprendizagem de vida (...) O filme aspira a mostrar-nos, com profundidade, cada um dos alunos" (Miguel Munoz Guarnica, "El antepenúltimo mohicano").
"Épico íntimo e humanista", AO Scott, "New York Times". Que curso do ensino médio é próprio para cada um - eis trabalho para Bachmann e que este desempenha com "clareza, compaixão e alguma relutância". O professor é ex-escultor e estudante de sociologia. É honesto com os alunos e não os trata com indulgência.
["O Professor Bachmann e a sua turma" passa na RTP2, 23h25, na próxima quarta-feira, dia 14]



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