O NOVO CHEGA, VOZES SÁBIAS E OS DEBATES NO DEBATE SOBRE O ORÇAMENTO DE ESTADO

 

O novo Chega, vozes sábias e os debates no debate sobre o Orçamento de Estado

1.Em tempo de restrições orçamentais, o quadro partidário português conhece uma mutação estratégica no contexto de um dos seus mais recentes, mas não menos relevantes (nomeadamente, no que tange à formação de potenciais maiorias parlamentares futuras), actores, o Chega: depois de se apresentar, há duas semanas, na “Grande Entrevista” (19-10-2022), da RTP, como o representante de “uma direita popular” que opõe, sempre com uma base dicotómica e maniqueísta que acopla, em permanência, ao seu discurso, a uma “direita elitista” (que vê) ao serviço “das grandes empresas” e “interesses”, do mesmo modo que manifesta o desejo e vontade de preencher as ruas, algo que à direita, em Portugal, não teria sido feito desde 1974, apresentando-se como a força impulsionadora de um novo sindicato, o “Solidariedade” –  que, quem conheça um pouco da história do século XX, de imediato se apercebe, desde logo na sua denominação, do aceno anti-comunista que contém, com a ressonância, manifesta, do caso polaco do último quartel da última centúria; sendo certo que congéneres internacionais do Chega, como o Vox, utilizam, já, esses símbolos; com o Sindicato em causa, o Chega pretende, ainda, aproximar-se de grupos profissionais muito definidos que contempla, já, como “target” eleitoral -, ainda afirmando, pela primeira vez, na medida em que apoiou/suportou tais medidas, um mea culpa por cortes de pensões ocorridos nos idos de 2011-2015 (um ponto que surge agora, de forma inédita enquanto tópico relevante na sua retórica, pretendendo uma demarcação relativa a esse domínio, na vida política portuguesa recente), André Ventura, a meio da semana, em entrevista à “Rádio Observador” (25-10-2022) e, três dias depois, no programa “Expresso da meia-noite”, da SicNotícias , propôs, nada mais nada menos do que um verdadeiro Rendimento Básico Incondicional ou Universal (RBI ou RBU), ainda que por um período de tempo delimitado: a partir de Janeiro de 2023, e durante meio ano - com possibilidade, se a situação económico-social o viesse a justificar, de permanecer até ao final de Dezembro - a transferência, mensal, de 125 euros, para todos os cidadãos portugueses. Ventura foi mais longe, de resto, exibindo, inclusive, cálculos, que situou em 5 mil milhões de euros (ou, já se vê, em caso de 12 meses de transferências mensais consecutivas, 10 mil milhões) - que afirmou compensar com o acréscimo de receita fiscal, que sobrestimou, em cerca do triplo, (pelo menos) relativamente às previsões orçamentais apresentadas pelo Governo (para o Executivo, a receita fiscal “extraordinária” situar-se-á na ordem dos 7 mil milhões de euros; para o Chega, esse valor será de 20 mil milhões) – como custo de execução de tal proposta (e antecipando-se, aliás, à crítica quanto ao que fosse uma mera proclamação, procedendo à apresentação, mesmo que controvertida, de números que a suportassem; não se ignoram, aqui, e em simultâneo, dada a excessiva plasticidade programática do Chega em tão pouco tempo de existência, bem como o conjunto de proposições demagógicas que, sistematicamente, produz, as leituras que projectam uma encenação, nesta medida sugerida pelo Chega, para agradar a parte do eleitorado, sendo, nessa interpretação, a contabilidade exibida não mais do que o completar de uma mise en scène um pouco menos primária do que as tiradas sobre os gastos em Jamesons e Grant’s…que com os 125€ mensais, durante um ano, certamente esgotariam os stocks…). Acrescentou a proposta de não tributação dos subsídios de férias e de Natal (custo calculado pelo Chega de 1,9 mil milhões de euros; sendo que, pelo meio, Ventura aludiu à possibilidade de recuperar “desperdícios”, que afirmou serem “públicos” (notórios/registados em documentos oficiais, ainda que sem citar a fonte em que se baseou para chegar a tais dados), somados, de perto de 3 mil milhões de euros, nas áreas da SaúdeJustiça e Administração Interna, a que adiciona, especialmente relevante no actual contexto, a possibilidade de o défice orçamental ser superior ao previsto em resultado das propostas que concretizaria se fosse Governo) para injectar imediata liquidez no bolso das famílias. Ademais, no mesmo espaço de debate político, o líder do Chega afirmou-se contra “os lucros pornográficos” que certas empresas terão – “dizem-me que é linguagem que o PCP costuma utilizar, mas estou-me a marimbar” (numa frase que era evidente piscar de olho a um eleitorado que se revê naquele tipo de verbalização de uma dada posição política relativamente ao problema em apreço, o da “tributação de lucros excessivos”, finalmente, e depois de longo tempo de ponderação, assumido pelo Governo) -, reclamando-se como isolado, à direita, em tal matéria (mas “nós não somos elitistas e entendemos que o estado tem funções a desempenhar”, algo que “a Iniciativa Liberal e uma parte do PSD, não o PSD todo”, a seu ver, não compreenderiam).

Com um PCP sem fôlego - se outras causas estruturais para a perda de eleitorado o não atormentassem, já como atormentavam há muito, no pós-queda do muro de Berlim e o que tal significou - depois de um orçamento de estado chumbado, faz agora um ano, e as consequentes eleições legislativas antecipadas, e após, ainda, posições lastimáveis assumidas sobre a guerra de agressão da Rússia de Putin à Ucrânia, e com um BE, mau grado a contundência das questões colocadas durante o debate orçamental – a tecnicalidade do significado do reporte de prejuízos, por parte de determinado tipo de empresas, por tempo aparentemente indeterminado, com um claro aumento da despesa fiscal ou diminuição de receita para o Estado por tal via, torna mais difícil, ao cidadão comum, a sindicância política de tais medidas, do mesmo modo que uma clara explicitação, ao eleitorado, dessa interpretação/crítica de tal aposta política surge envolvida em termos mais complexos do que os disponíveis no resumo do Telejornal; em uma perspectiva diversa daquela propugnada pelo BE, sufragada por quem considera que a capitalização das empresas e fortes mecanismos de suporte às mesmas, redundarão em benefício da economia como um todo, situam-se não apenas os que ratificaram, na generalidade, o Orçamento de Estado, o principal documento político anual de um país, mas vários dos participantes na esfera pública portuguesa que partem, em termos político-ideológicos, de uma aproximação, estrutural, a um olhar que coloca aquele tipo de centralidade no eixo do seu pensamento; em todo o caso, um maior detalhe e dilucidação do que aqui se joga, para a globalidade dos portugueses, parecer-nos-ia, nesta hora, adquirir pertinência -, ainda, igualmente, por recuperar da perda eleitoral que o voto contra, no OE, para muitos incompreensível, há um ano veio a gerar, o Chega, de um modo análogo ao de outras forças gémeas europeias – pense-se na evolução discursiva e programática de Marine Le Pen agora no seu Rassemblement National (ainda que o eleitorado a que o Chega pretende, neste instante, também aceder, transpondo, por comparação, para o caso francês fosse cativado ainda ao tempo, bastante remoto já, da Front National de Jean-Marie Le Pen) -, e sem quaisquer pruridos de consciência ou coerência ideológica ou programática (que, diga-se, também não parece, minimamente, incomodar os seus eleitores), desenha, assim, um novo contorno político que poderia expressar-se do seguinte modo: tomando a iniciativa propositiva enquanto outras forças partidárias ainda não o fizeram, pese as críticas, pelas mesmas, igualmente apontadas ao OE (algo, em si mesmo, não despiciendo em termos políticos) e sabendo-se do horror da política ao vazio (não faltaram líderes, e importantes documentos, oriundos de áreas políticas ditas conservadoras (democratas), e/ou de instituições com inscritos horizontes metapolíticos, nomeadamente neste século XXI, a convocar trabalhadores a concertarem-se em sindicatos para reivindicar justos interesses sem prejuízo de uma visão de conjunto do “bem comum” sem que houvessem sido ouvidos), visa juntar, na mesma plataforma política, os que, como aqueles que até às mais recentes legislativas foram engrossando o seu pecúlio eleitoral, ratificam propostas políticas e discursos de fundo xenófobo ou racista (da inacreditável proposta para um gueto para ciganos durante a pandemia covid19, aos “bandidos” que associou a certos inteiros bairros, à vinculação da imigração, dos imigrantes, à erosão de recursos do Estado providência apesar de todos os estudos e evidências em sentido contrário, quando não, mesmo, estabelecendo um liame entre aqueles e a criminalidade, por exemplo), securitário e centrado nas questões da corrupção, com manifesta instrumentalização de símbolos e invocações religiosas – sem separação entre Deus e César, procurando colocar em cheque a dimensão de “razão pública” que o “liberalismo político”, ou “democracia liberal” implicam - os desiludidos de forças partidárias mais radicais à esquerda do PS, com um novo discurso de claro - mas surpreendente apenas para quem não atentou na experiência internacional comparada das últimas décadas (embora transpor as mesmas receitas para contextos diferentes nem sempre dê os resultados pretendidos por quem as aplica), nem espera o contínuo ziguezague e oportunismo de tais personagens e forças políticas (da estigmatização de prestações sociais dirigidas a diminuir a severidade da pobreza – nem sequer a eliminar esta, atente-se, mas diminuir, apenas, a sua severidade e contra as quais militou e fez campanha, marginalizando ainda mais quem à margem já se encontrava… – à apresentação da proposta de um RBI de 125€ mensais) – teor socializante.

2.Nas reacções ao OE, destaco duas das vozes – que se me afiguraram de registo inteligente, coerente e consequente com as posições tidas, pelas mesmas, nos últimos 12 anos da vida política portuguesa, com as dissemelhanças e continuidades que este período pode encerrar, podendo falar-se de um pré e um pós-2010 – que se pronunciaram quer quanto ao conteúdo (político), quer quanto à retórica/linguagem que acompanhou a apresentação deste Orçamento: Pacheco Pereira, em “O Princípio da Incerteza” (23-10-2022), na “CNN Portugal” – ele que sempre considerou que a impossibilidade de políticas contracíclicas substantivas, em circunstâncias como as actuais, e da imposição de défices zeros à escala europeia redundava numa espécie de “ilegalização da social-democracia”, observando, agora, uma colagem excessiva ao que chama de “vulgata económica” que, com diferenças, se mantém, independentemente dos protagonistas; creio que próximo deste entendimento, a perspectiva de um “liberalismo social” como regime-regra europeu, sublinhado por Manuel Maria Carrilho, na sequência do lançamento do seu novo livro, “A democracia no seu momento apocalíptico” (Grácio Editor, 2022) – e a escritora Lídia Jorge – cujo mais recente romance, “Misericórdia”, Miguel Real, no último número do “Jornal de Letras” (nº1358, 19-10 a 1-11-2022), qualificou como “o grande romance português sobre a velhice” a par de “Os velhos”, de Paula de Sousa Lima – que, ao “Expresso”, referiu que “no momento em que as pessoas estão a sofrer muito, é errado ter-se um discurso triunfalista em números (…) A oratória é uma mensagem muito importante. Há que encontrar as palavras para estar junto das pessoas. E têm de reconhecer que não chegam a todos, mas não de forma fria, matemática. Têm de o dizer colocando-se ao lado”.

Sem que qualquer uma destas vozes caísse na demagogia (do 180 graus diferente do apresentado), mas procurando manter, num contexto de longo prazo, e para lá dos representantes, no Executivo, a cada momento, uma apropriação crítica, integrada em uma lógica e visão políticas que se lhes ofereceram como mais conformes a uma proposição inscrita no que poderíamos designar de tradição social-democrata – um dos mais reconhecidos e premiados economistas portugueses, professor na London School of Economics, Ricardo Reis, partindo de um pressuposto assente na preferência por modelos económicos liberais, afirma, em diferentes intervenções públicas ainda recentemente aportadas, que tanto a acentuação nas políticas públicas no investimento promovido pelo Estado, quanto a da diminuição da carga fiscal às empresas são apostas, com vista ao alavancar do crescimento económico, carácter esse, o de aposta, significando a impossibilidade de um resultado económico (cientificamente, tecnicamente) garantido à partida (pese, naturalmente, à luz da sua pré-compreensão, a preferência pela segunda das opções políticas vindas de enunciar); os que contestam tal aprofundamento de despesa ou investimento do Estado em nome das “contas certas” e da “responsabilidade” orçamental vêem-se, por sua vez, contestados pelos que consideram que aquelas “contas” e “responsabilidade” são, afinal, prejudicadas por “borlas fiscais” que entendem indevidas e que não redundarão, em seu entender, em uma repartição equitativa do que a comunidade deixará de receber por via daquelas; a problematização/ponderação/balancear de uma margem de manobra para apoios adicionais às pessoas e famílias a pilotar consoante a decorrência das situações política e económica mundial e nacional e/ou face ao acorrer, imediato, às circunstâncias, em muitos casos dramáticas, noutros de paulatina pauperização, que muitos portugueses experienciam no presente, bem como o grau de aceleração da redução da dívida pública portuguesa e o enlace, de tal velocidade, com aquelas mesmas urgências sociais são outros pomos de debate e de decisão não isentos de uma enorme seriedade e complexidade - partindo, nós, sempre, do princípio de que “cada humano é um fenómeno que não se repete na história” (Adriano Moreira), sendo, evidentemente, possível e desejável acolhê-lo de múltiplos modos, e não por uma única via, em uma comunidade que, visando em todo o momento dignifica-lo, não pode esperar pela ordem justa definitiva societária para o acorrer, nem, inversamente, com a solicitude de socorro ignorar o que falta trabalhar em ordem a uma sociedade mais justa -  e a uma necessária empatia com quem, irremediavelmente, vê perdido um trem de vida (o perdido, economicamente, para a inflação, em 2022, é irrecuperável), assim vozes/participações na vida pública que creio eivadas de sabedoria.

Boa semana.

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