PARA LÁ DO CINISMO, (H)A VIDA AINDA

 

PARA LÁ DO CINISMO, (H)A VIDA AINDA

1.Em “Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos” (Almedina, 2013), Boaventura Sousa Santos reconhecia que das pessoas que conhecera, nas últimas décadas, nos vários fóruns internacionais em que participava, mais implicadas na defesa dos direitos humanos, na luta contra a pobreza e as desigualdades sociais, na defesa da Casa Comum (de toda a criação), no voluntariado de ajuda ao próximo, na luta contra o racismo, na defesa dos direitos das mulheres ou dos mais velhos, contavam-se aqueles que o faziam motivados por um vínculo, primeiro e último - com a fonte que os religava a todos -, a que chamavam Deus (“fui observando como os activistas da luta por justiça sócio-económica, histórica, sexual, racial, cultural e pós-colonial baseiam frequentemente o seu activismo e as suas reivindicações em crenças religiosas ou espiritualidades cristãs, islâmicas, judaicas, hindus, budistas e indígenas. De certo modo, estas posições dão testemunho de subjectividades políticas que parecem ter abandonado o pensamento crítico ocidental e a acção política secular que dele decorre. Tais subjectividades combinam efervescência criativa e energia apaixonada e intensa com referências transcendentes ou espirituais”, p.10). Se muitos, vindos de uma tradição de pensamento que consideraria o religioso como “ópio” que impediria a transformação social aí se fixariam para sempre (elogiados, funebremente, no habitual “muito coerentes”), outros, como o autor vindo de citar, em se deixando contaminar pela realidade, ousando dizê-la, assinalaram o devir de apreensão e compreensão do modo como aquele afecta – para desaguar nas ruas, nas comunidades, nas políticas, em dada interpretação do que melhor serve o bem comum - as pessoas/cidadãos nele inscritas: “longe de as afastarem das lutas materiais e bem terrenas por um outro mundo possível, mais profundamente as comprometem com estas”, p.10).
2.Autor balizado em um tempo (meados do século XIX) e em pré-compreensões, mundividências, leituras políticas outras (do que as de Boaventura Sousa Santos), Alexis de Tocqueville, no seu célebre “A democracia na América” (este mês, aliás, reeditado pela Principia), outorgava às instituições da sociedade civil e, muito particularmente, às igrejas a formação de uma ecologia determinante para o bom funcionamento de uma sociedade e de uma democracia. Para Tocqueville, estamos, pois, em estas instituições e na formação que promovem, perante elementos fundamentais/críticos (no que implica tais instituições num permanente exame autocrítico, e na sociedade, como um todo, no mesmo exercício de escrutínio e atenção aquelas) para o bom andamento da polis (para T.S. Elliot, uma sociedade cristã não era, de modo algum, aquela que fundia poder temporal e espiritual [“dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”], mas onde os valores, digamos em quadro marcado pela matriz judaico-cristã, das “bem-aventuranças”, do “decálogo”, presentes nas as “obras de misericórdia” estivessem bem vivos em uma comunidade).
Para voltar, para além de autores que diríamos situados em correntes/tradições políticas bem diferenciadas como os que vimos de referenciar nestes dois primeiros pontos, a um homem não já das ciências sociais e humanas, mas das ciências naturais e, em especial, da “ciência-estrela” da atualidade (como lhe chama Adela Cortina), a neurociência, António Damásio e à necessidade de homeostasia – tendência para o equilíbrio no humano, feito de razão, mas de emoções também -, o grande cientista português releva(va) – veja-se, de novo, “A estranha ordem das coisas” (Temas e Debates, 2018) – as instituições que se dedicam, de modo precípuo, a esta dimensão espiritual são, não só tidas e achadas, mas evidentemente consideradas e convocadas à construção do que seria uma formação integral do humano nos nossos dias.
3.Na semana que passou, num breve zapping televisivo pela logomaquia diária de um comentariado incessante e sem a menor transcendência, versando, no caso, a conversa (na tv) sobre as Jornadas Mundiais da Juventude de Agosto próximo, em Portugal, uma das animadoras de serviço, em tom jocoso, afirmou que iriam estar em Lisboa “jovens que não bebem, não fumam”, não fazem nada (de errado). Enquanto alguns, levantando as vistas, rasgando horizontes, saindo dos dogmas em que podiam inscrever-se sem alguma vez os criticar, percebem a seriedade de uma motivação que arde e convoca a algumas das melhores proposições e práticas no espaço público, contribui para que o melhor de cada pessoa possa ter um espaço, um lugar (de respiração), outros insistem, semanalmente, na inércia de uma visão sem qualquer objectivo de aprofundamento (do nosso conhecimento do mundo), de uma leitura mais densificada dos acontecimentos, subsumindo tudo a um infantilismo e a um moralismo incapazes de detectarem a seriedade, generosidade, gratidão e gratuitidade com que muitos, corajosamente, tomam a vida a partir do religioso. Mais, insistem em nos puxar para os mais baixios recônditos de um cinismo que se basta a si mesmo.
4.A preparação das Jornadas Mundiais da Juventude leva, desde há meses, milhares de pessoas deste país a procurarem, sem qualquer outro interesse para lá dessa inscrição – e nela o bem do outro – que Boaventura Sousa Santos notou, a irem de casa em casa, propor, como redespertar, aos mais jovens este encontro potencialmente universal – e, nele, seguramente, o acordar para forças em si incrustadas e que, justamente, lhes permitam, desde já e desejavelmente para continuar, (a) não se deixarem “vencer pelo mundo”. E, tantos anónimos, a praticar e a disponibilizar-se, por exemplo, por colocar em prática esse dever soterrado, por e para alguns, como o dever de acolhimento, de hospitalidade (que infelizmente, na última década, tanto dividiu uma Europa que, como sublinhava George Steiner, repousa(va) em Atenas (filosofia grega), Roma (direito romano) e Jerusalém (ética judaico-cristã) e em imensas minorias ou coligações que se tornaram maioritárias queriam, ou pretendem ainda, enterrar este tesouro ético acumulado desde há mais de dois milénios). Desde logo, os que constatam empiricamente essa disponibilidade dos “Homens bons” de cada lugar, de Vila Real a Vila Real de Santo António, para dar guarida, “pousada ao peregrino” – de outro país, continente, cultura –, aquele que nunca se viu e que se desconhece por completo mas a quem se recebe com o melhor que se tem para oferecer, percebem que se jogam, neste contexto, elementos de uma dimensão que a pequenez com que se fazem referências que visam diminuir quem pretende aumentar a comunidade sequer imagina.
5.Dito isto, sendo manifesto que funcionando, hoje, o mundo inteiro, “segundo os mesmos princípios económicos”, algo sem “precedentes na história”, e que este mesmo modelo, “como único no mundo” (“nenhuma [outra forma de produção] (…) subsiste hoje em dia, salvo em zonas muito periféricas, sem qualquer influência nos desenvolvimentos mundiais”, Branko Milanovic, “Capitalismo Apenas”, Atual, 2022, p.8). implica, nos valores e crenças de cada pessoa – “…como complemento a visão ideológica igualmente incontestada de que acumular dinheiro, além de ser respeitável, é o objectivo mais importante da vida, um incentivo compreendido por pessoas de todas as partes do mundo e de todas as classes”, p.9 -, assinale-se, para as Jornadas Mundiais da Juventude, portanto, como no domínio não já do valor, mas do preço (e do lucro), aquelas beneficiarão a comunidade. Dos estudos, muitos deles independentes, sobre as Jornadas Mundiais da Juventude que decorreram em Madrid (2011) e no Rio de Janeiro (2015) retira-se que, em qualquer destes casos, os benefícios, diretos e indiretos, para os respectivos países (em que aquelas cidades se inserem), de entre os que puderam ser calculados (em euros), se cifraram acima dos 350 milhões de euros. É certo, em Madrid muito focados na cidade (ou área metropolitana) em que as Jornadas se realizaram. Os relatórios indicam ainda: “a marca Espanha saiu reforçada”.
Nessas Jornadas, só relativamente ao IVA, e mesmo atendendo a isenções fiscais concedidas pelo Estado espanhol – que, por este facto, investiu, pois, ao contrário do que se tem ouvido, no evento -, o Estado espanhol lucrou 15 milhões de euros. Se algo de análogo ocorrer em Portugal, só o IVA faria recuperar metade do investimento do estado central.
6.O Estado central português irá, assim, alocar, de acordo com a última atualização governamental realizada há dois dias, 30 milhões de euros às Jornadas Mundiais da Juventude (e, incluindo a recuperação de uma zona da cidade degradada, as Câmaras Municipais de Lisboa e Loures irão gastar cerca de 35-40 milhões). Estarão cerca de 1 milhão-1,5 milhões de pessoas, tanto quanto pode, a estes meses de distância de Agosto, supor-se, em Lisboa (a evolução da situação internacional, com uma guerra e uma inflação gravíssimas implicam, sempre, prudência). Que terão de alimentar-se (cada garrafa de água, para ilustrar, paga IVA), alojar-se, em muitos casos, levarão para os seus países, continentes, culturas diversas (da portuguesa) souvenirs da presença em Portugal. A presença mediática de Portugal nos diferentes continentes será imensa, na primeira semana de Agosto.
Haverá sectores de atividade e pessoas que lucrarão mais do que outras com a realização das Jornadas Mundiais da Juventude em Portugal? Os sectores da hotelaria, restauração e quejandos serão, neste contexto, mais afortunados? Com certeza. Espera-se, por isso, que tais empresas declarem mais lucros, possam oferecer mais emprego, que haja distribuição primária, desde logo, mais favorável a mais pessoas (evidentemente, tudo num período de tempo curto; as Jornadas realizar-se-ão ao longo de uma semana).
7.Com um custo de 30 milhões – estado central – obterem-se resultados, em se repetindo as experiências vindas de indicar (e que tudo indica que possam, mesmo, repetir-se), na ordem de 350 milhões para o país (só contando com esta dimensão material) é uma decisão errada terem o Governo e as autarquias de Lisboa e Loures, com forças políticas diversas a representá-las, dito “sim” às Jornadas Mundiais da Juventude em Portugal? Com o lucro que existirá para a comunidade, consegue dizer-se que é por se realizarem as Jornadas que existe pobreza em Portugal (como se viu, a rodos, pelas redes sociais, na última semana, afirmar-se)?! Será isso sério? Então, há acréscimo de receitas – para público e privados – e, com isso, há mais pobreza (ou, dado o investimento, não se pode combater a pobreza)? É um raciocínio tortuoso, ofensivo para a inteligência, de uma demagogia desbragada.
8.Uma instituição da sociedade civil propõe ao Estado central e local a realização de um dado evento; o Estado, através dos seus representantes e agentes, faz uma ponderação dos vários interesses em presença, sopesa o que corresponde melhor ao bem comum, e decide. Por uma instituição ter um carácter religioso devia, ipso facto, ver a sua proposta rejeitada? É isso que, no entender de alguns, é colocar em prática o princípio da laicidade? E, no caso concreto, atendendo ao que se sabe sobre o evento, e não estando, como não está, minimamente em causa, a questão da laicidade do estado (a não ser que se queira, como alguns quereriam, que a Igreja Católica não devia ter direito de cidade, de estar no espaço público ou de ver uma acção por si proposta, que resultará num ganho para a comunidade, apoiada), a melhor decisão do poder público seria rejeitar a proposta de realização das Jornadas Mundiais da Juventude?...
9.Que apesar de tudo isto se questione uma dada opção já no interior dos recursos alocados às Jornadas – não vistas no seu todo, mas numa dada particularidade – está muito bem e há que ter a sensibilidade de, em cada pormenor, procurar colocar uma razão crente cristã – o mal está, justamente, em se pretender que alguém é pobre por causa das Jornadas Mundiais da Juventude, ou, como também se pôde ler reiteradamente por estes dias, que corporações da função pública não serão aumentadas por causa das mesmas jornadas (mesmo que os 30 milhões, como um todo, fossem “perdidos” – de resto, como exposto, uma impossibilidade matemática! -, seriam eles que permitiriam aqueles aumentos? Absurdo).
Tal como, em debates não necessariamente no âmbito da “razão pública”, alguns questionarão, com igual legitimidade, (se) as grandes concentrações, ou alguma dimensão de espetacularidade que possa ser inerente às mesmas, como o espaço mais ou menos ideal/idóneo/apto para o adentrar em certas zonas que se pretendem convocar, no (interior do) humano, em ocasiões como esta.
E, ainda, o modo como o imenso falatório suscitado a propósito das Jornadas evidencia que existe demasiado reboque das redes sociais (cada vez menos capacidade/vontade (?) de mediação), posições reactivas ao que delas emana sucessivamente, e como resistir à pressão que suscitam torna a governabilidade – em múltiplos âmbitos da vida colectiva – num exercício que reclama uma tenacidade, uma firmeza de convicções, um rumo e uma dificuldade acrescidos.
Muitas sociedades, e a portuguesa não foge à regra, parecem, ademais, viver, em permanência, à espera do “escândalo” do dia seguinte, sobre o qual uma mole imensa decreta uma sentença um milésimo depois de “conhecido”. Com esse tempo de estudo das questões, de pensar (?) nas várias implicações de cada âmbito, de raciocinar (?) sobre um tema, de visar a complexidade (?) das coisas mais não se faz do que apenas integrar “a matilha vociferante do espectáculo” (P.Sloterdijk). Porque, em realidade, não se vê vontade firme de mudar o estado de coisas: agora, as jornadas mundiais da juventude, apesar do lucro para a comunidade previsto a vários títulos, é que provocavam pobreza no país, mas, em realidade, quantas pessoas lemos, pelas redes sociais, por estes dias, que estigmatizam as medidas (e, já agora, seus beneficiários) que em Portugal combatem a severidade da pobreza? Quantos pensam no momento de ler (?) os programas partidários, em momento eleitoral, em verificar como aqueles, ou cada um deles em concreto, pretendem combater a pobreza? Quantas se preocuparam em estudar o problema da pobreza em Portugal, apesar de neste milénio vários estudos fundamentais terem sido publicados (em memória e homenagem, recordo o relevantíssimo estudo coordenado pelo Professor Alfredo Bruto da Costa, Presidente da Comissão Nacional de Justiça e Paz à época, na primeira década de 2000?) Quantas manifestações em favor do assunto (na semana passada, por exemplo, foram milhares em luta pela defesa dos direitos dos animais, que merecem toda a consideração - mas que diremos dos 2 milhões de pobres portugueses após transferências sociais?), quantos levaram o tema da pobreza aos seus congressos partidários?, quantos exigiram que fosse um tema central dos debates televisivos entre os principais candidatos a liderarem Governos nestes 30 anos? Quanto rejeitaram, em nome do erário púbico, empregos conferidos, exclusivamente, pelo cartão partidário ou influências pessoais ou entenderam serem demasiadas as prebendas que um determinado cargo acarretava?, etc. etc. etc.
A realidade é que olhando a tanto desvelo nestes dias, e logo quanto a uma organização que acresce ao país e que permitirá, se assim se quiser, mitigar (mesmo que moderadamente e sem magias) a pobreza nele existente, só nos lembramos do ditado popular: “quando a esmola é muita, o pobre desconfia”.

Pedro Miranda

P.S.: As Jornadas Mundiais da Juventude têm um site próprio, desde há muito, que quem quiser pode consultar. Desde o momento zero, a indicação de que quem quiser, mesmo sem se inscrever nas Jornadas, terá um sector para ficar instalado, na missa com o Papa Francisco. Para se estar presente, assistir e participar, e como é óbvio e seria inadmissível em sentido contrário, não há necessidade de qualquer contrapartida, nomeadamente monetária. Vi pelas redes sociais repetir, sistematicamente, na última semana, o contrário. Não espalhem “notícias” falsas.
[hoje, no 'reparo do dia' da universidadefm, aqui em versão integral]

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