Pedro Abrunhosa, Vila Real

 

«DEITA-TE NA MINHA SOMBRA»
Talvez o momento mais surpreendente do concerto de ontem, de Pedro Abrunhosa, com a sua convidada especial, interpretando, em conjunto, o "Hallelujah", de Leonard Cohen.
“A palavra ‘Aléluia’ quer dizer “salvé”, quer dizer “entra”, “come do meu pão, bebe do meu vinho, deita-te na minha sombra"…Aleluia quer dizer tudo menos arame farpado, e quer dizer tudo menos milhares de refugiados que morrem num barco no Mediterrâneo. Aleluia quer dizer que somos um continente cristão, e ser cristão é acolher os mais fracos; é tratarmos dos loucos, dos velhos, dos doentes (…) Quando cantarmos Aleluia quero que pensemos nos milhares que morrem em busca de um mundo melhor, dos pais que procuram paz para os filhos…”, Pedro Abrunhosa
Diferentemente das demais vezes em que regressou a Vila Real, Pedro Abrunhosa evocou, ontem, brevemente, o concerto, no campo do Calvário, na "tenda", numa "semana académica", de 1994 - e para contar que foi ali que, pela primeira vez, soou o "Socorro, estou a apaixonar-me!" (uma novidade, em forma de 'pequena história', mesmo para quem o ouviu ao vivo há 29 anos). Desde o instrumental inicial, durante larguíssimo minutos, até à sua, à época, sempre misteriosa entrada em cena, brindada, euforicamente, por milhares, os largos isqueiros com o fogo primordial cuja presença tinha uma força que prefiro às atuais luzinhas dos telemóveis, e as letras sabidas/sorvidas de cor, num momento, por um lado, de libertação de um espartilho sobre o sensorial, numa ode aos sentidos e ao corpo - Abrunhosa como veículo e "contributo nacional" para transformação de "costumes" -, por outro, o hedonismo que cantou, se permitiu maior "autenticidade" e a vivência de dimensões fundamentais ao humano, encontrava-se, ao mesmo tempo, potencialmente, em linha reta de um movimento que, "sem amarras", também foi susceptível (Ash volta ao ponto de Judt, apesar de valorar positivamente 68, no seu recentíssimo balanço da "história do presente", em "Pátrias") de enredar o humano numa desvinculação aos outros e à polis que conhece agora - mesmo já não sendo tempo de bacantes, como diria Steiner - um estádio "final" - tudo isso fez da presença de Abrunhosa em 94 a mais marcante das suas vindas à capital transmontana (o artista tem ascendentes em Sabrosa). Sem embargo, e nada despiciendo, do Abrunhosa de 1994 (no fim do que hoje se reconhece, de modo consensual, como um termo de ciclo com uma dimensão mais autoritária nesses anos derradeiros), até ao Abrunhosa de 2023 (do "o António e a Maria o que têm que fazer?..." ao atual os russos [de Putin] que se 'lixem...'), a mesma canção reclama o corpo do outro e o corpo social-político (a mesma canção como que fundindo o sensorial e o político, nas introduções e inflexões que actualizam o seu sentido, consoante as conjunturas e o que está em jogo na comunidade; de resto, Chul Han vê no auto-centramento, a recusa atual do eros, a não saída e desejo do outro, no seu amplo diagnóstico de uma cultura da "privatização"). De modo que, e retomando, em 1994, Abrunhosa era incómodo (no desafio às mentalidades e no viés político) e hoje, diversamente, quase se poderia dizer o que tantas vezes se observou sobre Rui Veloso - que era dos raros casos, pelo país, em que avós (os tabus de 1994 há muito que o deixaram de ser) e netos iriam com o mesmo agrado aos seus concertos. Para o Carlos, já há uns anos, estávamos, então, (agora) nos concertos de Abrunhosa, numa "missa laica". Como artista sintonizado com o tempo, não é de excluir o captar das ambiguidades e complexidades que um determinado curso que um movimento propicie o tenha levado a um renovado diálogo e escuta de uma dada tradição (o que, aliás, nada tinha de especialmente singular do lado de onde vem - veja-se a redescoberta, em tal hemisfério, em anos recentes, em França, de autores como Peguy ou Bernanos - cf. 'Le Monde Diplomatique', Dezembro 2019); por outro lado, os seus concertos, este último melhor do que aquele a que se assistira na sua última vinda a Vila Real há 3/4 anos, não declinando em pura nostalgia, ou no cumprimento burocrático das inúmeras canções trauteadas pelos país nas últimas três décadas (porventura o principal risco em que incorria), apresentam uma reconfiguração do espectáculo (a imagem, hoje, com os seus 'efeitos especiais' sobre o palco, mesmo quando nela se pretende sublinhar palavras, a ganhar imenso terreno sobre o que sucedia há uma década apenas - e Abrunhosa a deixar tal representações e reproduções à descendência), com um performer (um necessário agitador da coreografia da rua humana à sua frente) à altura de, justamente em época de frigidez e "analfabetismo dos sentidos", obrigar a saltar do chão e mover corpos e almas, numa emoção partilhada (principal mérito). De qualquer forma, nesta década, além de desgostar ao MNE tutelado por Lavrov, deixou a sua marca sobre o auge emigratório português (150 mil/ano a sair dos "braços de minha mãe"). É certo que da plateia vêm, por estes dias, mais "corações" (mãos em forma de) do que a adesão a uma mensagem provocadora/transformadora, mas não se pode dizer, propriamente, que tenha envelhecido mal ou se tenha deixado capturar pelo exclusivo romântico de permanecer como enfant terrible (de derrubar muros que já foram derrubados e de ignorar estilhaços dos mesmos) - ou, se se preferir, compreenderá, hoje, o músico como transformador é o apelo a pólos civilizacionais de partilha quando tudo se despedaça em fragmento.
E não são muitos os que conseguem colocar Vila Real a mexer(-se).

P.S: "Aqui, ninguém manda calar os artistas". A quando do início da bárbara invasão da Ucrânia, pela Rússia de Putin, o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo fez chegar a Pedro Abrunhosa uma missiva, no sentido de este não se (continuar a) pronunciar sobre aquele ataque desumano. Abrunhosa acabara de escrever e compor "Que O Amor Te Salve Nesta Noite Escura", em memória dos que leva(va)m com aquela selvajaria, tendo respondido, simplesmente, ao MNE russo que "aqui [em Portugal], ninguém manda calar os artistas!". Esta noite, em Vila Real, num belo concerto, voltou ao tema.

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