A PROPÓSITO DE OPPENHEIMER: UMA ENTREVISTA PARA O PROF. MANUEL LOZANO LEYVA

 

A PROPÓSITO DE OPPENHEIMER: UMA ENTREVISTA PARA O PROF. MANUEL LOZANO LEYVA

Fui ver a estreia, gostei bastante mais do que a generalidade da crítica publicada em Portugal (com a excepção de João Lopes, no DN; não propriamente assim noutros países) do filme "Oppenheimer", houve um conjunto de questões que, durante semanas, trouxe comigo (a propósito do mesmo) e este texto do Professor Manuel Lozano Leyva (https://elpais.com/.../la-esquizofrenia-inteligencia...) levou-me a concentrar a indagação em 7 perguntas que permanecem:

1.Na entrevista que The New York Times fez a Christopher Nolan, a propósito da estreia de Oppenheimer, o jornalista Dennis Overbye interrogou o realizador sobre se este não entendia que o grande físico sobre o qual incide o seu mais recente filme pretendia, ao mesmo tempo, “construir esse gadjet fantástico [a bomba atómica]” e, logo, ser “impedido de o usar”. “Como um serial killer que diz ‘agarrem-me, antes que eu mate de novo’. Ao que Nolan principia por responder: “ou como um cientista de uma empresa de tecnologia dizendo ‘regulem-me, por favor’”.
A pergunta que trago comigo do filme, e atento “o carácter complexo e enigmático”, a “esquizofrenia” do biografado, “uma das pessoas mais singulares do século XX” – como o Professor Manuel Lozano Leyva escreve no interessantíssimo artigo que publicou a 19 de julho em ElPaís -, é, radicalmente, a seguinte: queria, mesmo, Oppenheimer ser travado (isto é, queria realmente que o dispositivo não fosse utilizado)?
 
2.Embora, e desde logo se não se atentar devidamente no título da sua coluna, possa parecer um parágrafo em modo de partilha de um pequeno episódio, uma anedocta na vida de Oppenheimer (1904-1967), a meu ver, e se me permite, a chave da interpretação, neste contexto, que o Professor Manuel Leyva parece fazer do grande físico teórico, no texto em ElPaís, é a que aponta/sugere (pode, eventualmente, intuir-se) no diálogo que aquele estabelece com o amigo judeu e grande físico Isidor Rabi: “precisamente, isso – o cristianismo ser uma combinação de sangue e delicadeza - é o que mais me atrai [nele]”.
O físico cosmopolita, amante de poesia, poliglota capaz de em seis semanas aprender neerlandês de tal modo que profere conferência de física nessa língua (após aquele período de tempo de aprendizagem), esse génio sofisticado, elegante, diletante até, simultaneamente sente temor e atracção pelo impacto que terá a aplicação, numa conjuntura de guerra, do seu experimento científico? [delicadeza e sangue, portanto?]
 
3.Se o elemento do seu texto que vim de mencionar é quase sussurrado, como que uma confidência, ao leitor, diferentemente é a conclusão do artigo, que tem o seu quê de arrepiante (escalofriante), na qual, não sem a coragem (intelectual) de tomar partido, mesmo que temporalmente à distância (há, aqui, um anacronismo, é certo) e, nomeadamente, assumindo que se tivesse sido colocado perante a questão de participar no Projecto Manhattan teria dito sim.
O Professor Manuel Leyva diz – e daí, também, a sensação de calafrio – que sabe que esse sim iria “atazaná-lo” até à morte. A minha questão, aqui, é a seguinte: essa consciência dilacerada dever-se-ia, exclusivamente, ao facto de saber que após a criação da bomba atómica o mundo seria outro (e um mundo pior) – capaz de uma (quase) imediata destruição massiva de milhões pessoas (e da criação de um modo geral), caso, em qualquer parte do mundo, fosse premido o botão nuclear -, mesmo que, no imediato, o Projecto Manhattan, pelo seu diretor científico, pudesse ser entendido como modo de dissuasão (entre potências) que, pelo potencial mutuamente destrutivo, levava a nunca se chegar a esse ponto terminal, ou, diversamente, concebe – e essa é outra das principais interrogações que ficou a morder-me desde que vi o filme – que há uma fronteira muito ténue, muito porosa, entre colocar à disposição do poder político uma arma que, em termos nacionais norte-americanos e dos Aliados, poderia ser vista, por aquele poder, como uma tentação inescapável (seja para colocar fim à II Guerra Mundial, fosse para evidenciar uma força mundial sem comparação quando no horizonte já se via a competição com o sovietismo)? A seu ver, existe uma (absolutamente) clara separação, ao nível da responsabilidade ética, entre quem assume a responsabilidade (técnico-científica) de disponibilizar uma arma atómica e quem a decide utilizar, ou há um peso ético em quem cria a bomba atómica que não é muito diferente de quem depois assume a decisão de a colocar no terreno (para mais, quando Oppenheimer, julgando que os nazis poderiam chegar à bomba atómica em primeiro lugar, mas, na altura em que a bomba atómica é colocada à prova nos ensaios pelo grupo que trabalhava em Los Alamos, os nazis já estão derrotadas há algum tempo e o físico aconselha a melhor forma de a bomba ser lançada no Japão)?
 
4.A cena porventura mais citada do filme – cujo correlato (real) podemos observar, por exemplo, nos diversos vídeos do Youtube em que essa confissão é feita por Oppenheimer alguns anos depois da sua queda no palco dos heróis norte-americanos, após suscitar dúvidas sobre aquela sua criação, “sinto que tenho as mãos cheias de sangue” diz a Truman – é aquela em que Oppenheimer confessou que imediatamente após o ensaio bem sucedido da bomba atómica, no deserto norte-americano, pensou na passagem do texto sagrado hindu Bhagavad-Gitaagora, eu sou a morte/a destruidora de mundos”.
Há ou não, neste humano que é cientista, e que sabe que, em certo sentido, será visto como o propulsor de um “novo mundo” (no qual a destruição total, no segundo seguinte, se afigura como possibilidade), uma possível hybris, uma desmesura, um sentimento de (ser, tornar-se) todo-poderoso que pode ser mais forte do que o refrear desse ímpeto atendendo às consequências (e mesmo após cerca de 220 mil mortes, vemos Oppenheimer saudado como um grande herói, e nesse imediato pós-II Guerra aparentemente não constrangido com esse fato que lhe é colocado)? Apesar da formulação do texto hindu que lhe vem à memória ser feita segundos após o bem-sucedido teste da bomba atómica em solo norte americano, seguramente que as implicações e consequências de se chegar aquele resultado, e de uma possível aplicação, um dia, daquela bomba em humanos (e na demais criação, sempre mutuamente implicados), foi sopesada pelo cientista. Ele, e o conjunto da vasta equipa que liderou, tinham como única possibilidade (caso as consequências de uma possível criação e aplicação da bomba lhes parecesse demasiado tenebrosa) rejeitarem, ab initio, participar no Projecto Manhattan, ou, depois de os nazis estarem derrotados, ou, de qualquer modo, verificarem que aquele experimento iria realmente existir (o que não era seguro à partida, pois, como o Professor escreve “foi uma das maiores façanhas da humanidade” e em escasso tempo, dois anos e meio), há ainda uma janela de liberdade para sair (o Professor diz que alguns cientistas se sublevaram quando perceberam que Truman ia aceder ao pedido dos militares para utilizar a bomba no Japão)? Em existindo essa margem, mesmo que estreita, quereria o cientista abdicar de ser o homem mais poderoso no mundo (naquele momento)?
 
5.Que história pode partilhar connosco dos testemunhos diretos dos grandes cientistas que trabalharam com Oppenheimer e, sobretudo, dos discípulos daqueles, com quem teve ocasião de trabalhar, no Instituto Niels Bohr, de Copenhaga, durante 18 anos? O Professor Manuel Lozano Leyva descreve aquela personalidade, em traços gerais, mas pedia-lhe agora uma história, algum episódio (que o filme não retrate, e do qual tenha tomado conhecimento e possa partilhar connosco).
 
6.No livro “O admirável horizonte da bioética”, a Professora Maria do Céu Patrão Neves, bioeticista portuguesa, destacada académica europeia neste domínio e ex-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida afirma que o cientista não pode ser ingénuo, depois de Nagasaki e Hiroxima: está obrigado a prever as consequências/implicações do que está/vai fazer/construir/colocar à disposição ("tornou-se evidente que a ciência não constitui um valor em si mesma, um valor absoluto, o que justificaria os meios implementados para a obtenção do conhecimento, mas deve antes manter-se como um instrumento de realização das finalidades humanas. Tornou-se evidente que todo o conhecimento tem uma aplicação prática, tendo-se esvaziado a ideia de um conhecimento teórico puro, pelo que o cientista deve assumir a responsabilidade de prever as consequências possíveis do saber que constrói e de prevenir as suas utilizações nefastas", p.18). Quando o Professor Manuel Lozano Leyva sustenta que diria sim a um convite para o Projecto Manhattan fá-lo projectando a situação (colocando-se nela) de 1942-1943 – altura em que os próprios cientistas não sabiam se seria bem-sucedida a procura de uma bomba atómica e as completas consequências da sua utilização –, ou assume-o como, ainda que tendo conhecimento destas consequências, a resposta necessária a um mundo ameaçado pelo nazismo (e, como diz no texto, se criada pela URSS, ainda que Aliada num primeiro momento, a prazo representando um modelo de sociedade indesejado também)? Mas quando este derrotado, e sem que a URSS tendo alcançado a bomba nuclear, em algum momento lhe pareceria dever, ou fazer sentido, sair do Projecto Manhattan?  

7.A 19 de Julho, quando publicou o seu texto sobre Oppenheimer em ElPaís, o Professor Leyva ainda não havia visto o filme de Christopher Nolan. Suponho que o tenha visto, entretanto. Que avaliação dele faz?

Muito obrigado.

Pedro Miranda


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