SISTEMA DE DÍVIDAS DE VIOLÊNCIA

 

SISTEMA DE DÍVIDAS DE VIOLÊNCIA
“Por vezes, em relação aos acontecimentos, em vez da proximidade que grita, podemos encontrar uma distância que tenta pensar. Gritar é necessário, claro, mas pensar também. Pensar é necessário, claro, mas gritar também. Não se trata de optar pelo grito ou pelo pensamento, mas de tentar que uma ação não faça esquecer a outra.
1.O ódio é a força que mantém o inimigo debaixo de olho, numa necessidade de proximidade, pelo menos psicológica, que só encontra paralelo no seu oposto, na afetividade. O ódio coloca os motores do corpo individual e do corpo de uma sociedade em funcionamento; ligado e pronto a acelerar; ou seja, a vingar-se. O ódio impede o sono. Provoca uma insónia infinita, individual e coletiva. Um humano, após sucessivas insónias, fica instável, agressivo, violento. Um povo, após sucessivas insónias, fica instável, agressivo, violento. Por vezes, a insónia dura dias, semanas, meses, outras vezes dura séculos. Há povos que não dormem bem há muitos séculos. Os seus olhos estão esbugalhados, abertos demais.
2.O “ódio atualiza todas as coisas”, escreve Agustina. E no ódio está essa energia da besta que não pára a força, mesmo que a sua força seja autodestrutiva.
3.Toda a destruição do outro-que-se-odeia é, em parte, autodestruição diferida porque no sistema das vinganças, o tempo e a História nunca terminam num massacre. Há sempre o dia seguinte e o outro dia seguinte. Os familiares e os próximos do que foi destruído, depois dos rituais de morte e despedida, começam a subir para os cavalos modernos com as mais modernas armas. Só a vingança não muda, em séculos mantém-se em modo de alerta constante. O ódio não muda, as armas sim. Avançam os ódios com novas armas, mas com a velha vingança.
4. A produção do ódio é hoje uma das mais rápidas e funcionais atividades. É um fazer já não artesanal, mas industrial. No século XXI já não se produz ódio à mão. Já não se produz um ódio individual. O ódio já não passa de boca a orelha, não passa do brilhante orador à multidão de bons ouvidos. Hoje uma palavra já não corre, nem vai a galope, nem sequer de avião. A informação, a verdadeira e a fake, avança de imediato, sem nada no meio, sem obstáculo; sem contra-argumentação. Em tempos técnicos de informação instantânea, em que não há separação temporal entre emissor e recetor, poucas semanas bastam para fazer da indiferença um ódio novo.
5. Os ódios antigos são quase impossíveis de eliminar. E a produção de ódios novos aí está, em franco desenvolvimento. A intensidade do ódio em circulação numa determinada época não é fácil de determinar. Podemos fazer contagens macabras de mortos, mas o ódio que está na sua base é impossível de medir; não há ainda instrumento que contabilize a raiva antes de ela ser expressa em atos.
6. As fábricas de ódio poderiam também ser alvo de ataques ecologistas. Por que não pensar a violência como uma forma, a mais destruidora, de poluir o planeta? Pensar neste paradoxo dantesco: o óleo polui o solo, mas os mortos de um massacre não.
7. Escrevi sobre isto no romance “Jerusalém”. O mais terrível sistema de dívidas é o da violência. Devo-te a violência que de ti recebi, diz um povo a outro. Os povos, ao longo dos séculos, vão atualizando este sistema das dívidas da violência. Guerras, massacres, atentados vão somando dívidas macabras, apontadas em duas colunas como numa mercearia da morte. É um sistema interminável, infinito. Porque os nossos mortos doem-nos sempre mais. No ódio e no processo amoroso, as balanças não funcionam: desaparecem, avariam, colapsam ou ficam dementes.
8. Quando muito supor no sistema da pontuação da vingança, gerada pelo ódio, um ponto e vírgula, uma pausa ligeiramente maior. Mas a violência nunca tem ponto final, a não ser no apocalipse.
9.O sistema das dívidas da violência gerada pelo ódio só dará resto zero, contas macabramente certas, no apocalipse.
10. Tudo sempre novo, tudo sempre igual — escrevia Kafka no “Processo”.
11. Porém, a morte de quem se ama — de um pai, de um filho, de um irmão, de um amigo — é sempre absolutamente nova. Morte sempre nova, morte sempre diferente. O que é repetição para a História, é uma tragédia para uma família. A História é desprovida de coração e o seu sistema amoroso não está em funcionamento. Mas cada humano nasce de novo com um sistema respiratório, digestivo e com essa invulgar potência afetiva e amorosa que caracteriza este estranho animal que somos.
12. Como ninguém quer o apocalipse, o sistema de dívidas da violência continua em 2023; e não vai terminar. Continuaremos a pensar, mas nunca seremos capazes de esquecer o horror que gera o grito.
13. O Homo sapiens é também a espécie animal que ainda não parou de gritar.”

Gonçalo M.Tavares, “Ensaio sobre o sistema de dívidas da violência”, E-Revista do Expresso, 20-10-2023, p.44.

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