FILME DA SEMANA: "PÁRA-ME DE REPENTE O PENSAMENTO" (DE JORGE PELICANO, 2014)

 

FILME DA SEMANA: "PÁRA-ME DE REPENTE O PENSAMENTO" (DE JORGE PELICANO, 2014)


Jorge Pelicano vai à procura, nos seus filmes, "do desconhecido", dir-se-ia dos invisíveis a quem dá rosto ("não é como na televisão, em que as pessoas aparecem desfocadas...e acho que não são respeitadas"), cumprindo, num gesto poético, o respeito pela dignidade da pessoa. Do alto, filma os muros do Conde Ferreira, juntando-os, na mesma imagem, à subida para as Antas, com um amontoado de carros em fila, colocando-nos perante o binómio dentro/fora, sendo que, ao longo do documentário, percebemos que somos os mesmos. Lá dentro e cá fora. O traço de humanização da pessoa com doença mental é deliberado: o que encontrara, na história do cinema, na abordagem do tema, levara o realizador a considerar um olhar outro que não o do perigoso doente mental, felino, incontrolável, "babado".
No Conde Ferreira, houve um par de pessoas que se apaixonou, a Rosa e o Carvalho são o par de namorados que aceitam falar sobre si, a família, os médicos (desumanos...ou nem tanto..."não sejas injusto", diz Rosa), projectos do passado e do futuro, sonhos por cumprir. 8 semanas de trabalho, num hospital devolvido, pelo Estado, à Santa Casa da Misericórdia pelo ano 2000, com melhorias a promover no edificado, na arquitectura - e todo o cuidado é pouco no tacto com que cada segmento é escolhido para passar a imagem do local filmado. Foram seis meses, três montagens diferentes - "a primeira era muito pesada", concede o realizador -, a final concordância da Administração, o sim dos utentes que aceitaram participar no filme, a sua assinatura com o médico ao lado ("também as questões éticas são muito delicadas e tornam difícil fazer um filme destes").
Enquanto o realizador sai todas as noites do hospital, "porque precisava de criar uma narrativa sobre aquilo", o actor Miguel Borges, nele permanecendo mesmo de noite, vai interagindo com aqueles que vêm a ser os personagens do documentário, conhecer os cantos à casa, até, em definitivo, com eles ensaiar uma peça de teatro e dar às palavras do doente com esquizofrenia Ângelo de Lima o sentido vivido de quem as ouve pela primeira vez. Estes utentes que aceitam participar, diga-se, "são os melhorzinhos" - nas palavras do responsável pelo departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de Vila Real, em linguagem para todos entenderem -, quer dizer, são aqueles, ainda assim, que conseguem falar, que estão dispostos a participar, que são capazes de rir do mundo: "aquele muro está ali, para que os malucos lá de fora não saltem cá para dentro". Jorge Pelicano assume, plenamente, o particular "ponto de vista": do que se trata, não é, em realidade, de registar uma amostra científica, uma média ou mediana, e mostrar o Conde Ferreira como ele é (como, de resto, se fosse possível aceder a uma essência dele; mas, em todo o caso, sempre seleccionando, cortando, mostrando umas coisas e escondendo outras, negociando, reconheça-se, ainda, o passível de ser mostrado).
No início da pesquisa, basicamente as primeiras quatro semanas, as tiradas destes utentes pareceram ao realizador da Figueira da Foz, que desde pequenino ouvira o papão de "se te portas mal, vais para a casa dos malucos", verdadeiras pérolas filosóficas, uma ironia - "se Deus que foi Deus não agradou a todos...; há remédios para o frio, há remédios para o calor, há remédios para comer, há remédios à noite...." - que os torna especiais, mas sempre próximos de nós: "são pessoas". Pelicano prossegue esse labor ético de dar nome às pessoas. Falta, muito, ali, naquele espaço, naquele hospital, a família. Algumas famílias, só vêm, mesmo, no dia da morte, procurando a última migalha ("a reforma..."); outras, nem isso. Há utentes que reconhecem que o máximo que conseguem é chegar ao Marquês, à Areosa; depois, o sentimento de desprotecção, de medo, de ansiedade, de dependência do hospital é tremendo. Há quem viva no Conde Ferreira há mais de 25 anos. Chegar a essa etapa de dependência é já estar num caminho muito complicado. Há muitos casos de esquizofrenia, ali expostos, mas a ansiedade e depressão, que encontramos mais quotidianamente, tenderão a ser as verdadeiras pragas do Egipto.
Na plateia, o filme prende desde o instante inicial - "valeu a pena ter vindo de Lisboa", dirá Pelicano -, o público não tem medo de rir, de rir muito, reconhecendo-se naquela humanidade, naqueles ironistas capazes de troçarem de si próprios, mas também faz um fecundo silêncio - "era capaz de se ouvir uma mosca", afirmará o Director do Departamento de Psiquiatria do Hospital Magalhães Lemos, dr.Dario Martins que certo dia deu com a Rosa e o Carvalho aos beijos num café do Porto, indo, de imediato, cumprimentá-los..."verdadeiras stars, verdadeiras stars" -, respeitando o sofrimento, a dor, o mistério e a intimidade do outro.
Há quem fique sentado pelo chão, "um ambiente mágico" (Dario Martins) percorre a sala do pequeno auditório do Teatro de Vila Real, perante um filme de uma grande "sensibilidade", que nos mostra "gente com sentimentos e pensamentos", personagens que são verdadeiras enciclopédias da doença mental, gente que encontra no hospital um porto de abrigo. Muitas perguntas, reflexões profissionais, parabéns dados ao realizador, por parte dos espectadores que são, essencialmente, médicos, enfermeiros, profissionais da área da saúde.
Excelente iniciativa do Departamento de Psiquiatria do Hospital de Vila Real, no âmbito, já, da celebração do dia mundial da pessoa com doença mental, numa noite elevada, sem fantasmas e com gente de corpo inteiro, no Teatro de Vila Real.

[escrito em 2015]




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