COMPLEXIDADE DA VIDA HUMANA, PRESENTE NAS SUAS METAMORFOSES (DE MARIA LUÍSA PEDROSO LIMA A ANTÓNIO DAMÁSIO)
Complexidade da vida humana, presente
nas suas metamorfoses
O que dizemos quando dizemos “eu”? A
questão demanda tanto uma resposta filosófica, quanto psicológica: poderíamos
afirmar, com Maria
Luísa Pedroso de Lima (em Nós e os outros. O poder dos laços sociais, FFMS,
Lisboa, 2018, p.19), que as identidades pessoais (o “eu”) podem ser vistas como
as histórias que construímos e contamos acerca de nós e que definem
quem somos para nós e para os outros. E são histórias, porque têm muito de
ilusório, de inventado e de reconstruído a posteriori (este “inventado”,
“ilusório”, “reconstruído” não significa mentir deliberadamente; significa que
as histórias por que passámos são interiormente interpretadas e configuradas de
certo jeito, a que chamamos nosso; é o modo como vemos, como pensamos que as
coisas foram; Kant distinguia, de resto, entre númeno – as coisas em si,
a que não temos acesso – e fenómeno – as coisas como elas se apresentam
para nós, como as percepcionamos. Nós pretendemos uma coerência
existencial e identitária, quando, na verdade, todos os dias somos, também,
diferentes. Então, “eu” sou o (mesmo) Eduardo
de há 10 anos? Sim, seria imediatamente tentado a responder, porque passei por
um conjunto de experiências que posso apresentar – e para as quais tenho
testemunhas qualificadas, a família, os amigos, os colegas – e que a meus olhos
se afiguram como um continuum (uma
continuidade sem quebra). Mas responderia não, se olhar as fotografias e vir um
Eduardo bem mais baixo do que hoje (aos 6 anos), infantil, que via o mundo todo
em função de si (tudo a girar à minha volta), que fazia brincadeiras a olhar o
canal Panda. Não, ainda, porque, com
a idade, mudei face a algumas ideias, ganhei novas convicções, passei a ver o
mundo com outras lentes, noto que houve uma transformação. Metamorfose. Assim,
porventura quase ousando contrariar os princípios da não contradição – uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao
mesmo tempo – ou do terceiro excluído
– toda a proposição ou é verdadeira ou é falsa, não existindo um terceiro caso –
diria que a complexidade da vida humana se manifesta de modo eloquente na
metamorfose diária: a cada dia que passa, em realidade, porventura, somos e não
somos a pessoa que éramos ontem. Ao que acresceria uma noção que o cientista
António Damásio nos dá acerca de como somos que contraria, eventualmente, as
nossas intuições que tudo e todos dividam entre bons e maus, num marcado preto
e branco, que contraria uma abordagem mais complexificada e exigente sobre o
humano, sem cair, em todo o caso na perspectiva de que em todos se manifestam,
de modo igual, tendências e comportamentos de sinal contrário: “a maioria dos
seres humanos consegue, na verdade, ser brutal, selvagem, dissimulada, interesseira,
nobre, tola, inocente e adorável. Ninguém consegue ser tudo ao mesmo tempo,
embora haja quem tente. As visões sombrias ou soalheiras da Humanidade
continuam intactas na erudição contemporânea” (A estranha ordem das coisas,
Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017, p.308).
Com António Damásio, poderíamos, ainda notar, acerca da vida humana e
sua complexidade, que “a condição humana engloba dois mundos. Um dos mundos é composto pelas regras
naturais da regulação da vida, guiadas pelas mãos invisíveis da dor e do
prazer. Não temos consciência dessas regras, nem do que lhes está subjacente;
estamos apenas conscientes de determinados resultados a que chamamos «dor» ou
«prazer». Não tivemos nada a ver com a criação de regras - nem com
a existência das poderosas forças da dor e do prazer - e não as podemos
modificar, tal como somos incapazes de alterar o movimento das estrelas ou de
evitar terramotos (...) Todavia, existe ainda um outro mundo em que contornámos em parte as condições que nos foram
impostas, e inventámos meios culturais de gestão da vida para
complementar a variedade básica. Daqui resultaram descobertas sobre os nossos
próprios universos e sobre aqueles que nos rodeiam, e daí resultou a capacidade
extraordinária de acumular conhecimentos, tanto na nossa memória como em
arquivos exteriores. A situação neste segundo mundo é diferente. Podemos
reflectir sobre o conhecimento, analisá-lo, manipulá-lo de forma inteligente, e inventar toda uma série de respostas
às regras da natureza. (...) Culturas e civilizações são os nomes
que damos aos resultados cumulativos desses esforços. Tem sido tão difícil preencher o fosso que separa a regulação de vida
imposta naturalmente e as respostas que vamos inventando que a condição humana
se assemelha, frequentemente, a uma tragédia e, talvez menos frequentemente, a
uma comédia. A capacidade de inventar soluções é um privilégio imenso, embora
propenso a fracassos, e muito oneroso. Podemos chamar a isto «o fardo da
liberdade», ou, mais concretamente, «o fardo da consciência».
(...) Poderão as sociedades
finalmente conseguir introduzir, através de meios seculares ou religiosos, uma
forma de altruísmo inteligente e recompensadora que substitua o egocentrismo
reinante? (...) Está
aqui a grande novidade evolutiva das culturas humanas, a possibilidade de negar
a nossa herança genética e exercer o controlo firme sobre o nosso destino, pelo
menos temporariamente. [Temos, hoje em dia a]
possibilidade de planear uma
estratégia mais inteligente do que no passado. Esta abordagem veria como tolice
ou mesmo loucura a ideia da razão a dever assumir o controlo, uma ideia que
mais não é do que o resíduo dos piores excessos do racionalismo; mas esta
abordagem também rejeitaria a noção de que nos devemos limitar a promover as
recomendações das emoções - ser gentil, cheio de compaixão, irado ou repugnado
- sem que as filtrássemos pelo conhecimento e pela razão. A nova abordagem
promoveria a parceria produtiva entre sentimentos e razão, destacando as emoções
positivas e suprimindo as negativas. Por fim, rejeitaria a noção das mentes
humanas no molde das criações de inteligência artificial” (A estranha
ordem das coisas, Temas e Debates, 2017, p.298-314).
Finalmente, e para concluir,
a expressão metamorfose remete, imediatamente, de modo muito claro, para a
homónima obra/conto de Franz Kafka: o homem, transformado em monstro de um dia
para o outro, sofrendo, pois, uma brutal metamorfose, e que a família fecha a
sete chaves num quarto para ninguém ver. Esse monstro em que nos transformamos
de um dia para o outro poderia ser o toxicodependente, o alcoólico, o pilha
galinhas, o tuberculoso a que de bom grado viraríamos a cara. Mas quem nos
garante que o monstro não está, neste momento, a forjar-se no nosso interior?
Há um nosso lado mostrengo que recusamos ver – e que fechamos a sete chaves no
sótão, mas sem o iluminar, sem o reconhecer, dificilmente o domesticaremos e
lhe ganharemos a luta. E, por outro lado, confortável é pensarmos que monstros
são os outros, em especial os Hitlers, que imaginamos não pertencerem à mesma
espécie, só para não pensarmos na hybris
– desmesura – de que somos capazes. Mas sem a pensar inteira e integralmente
também não construiremos uma paideia
– uma educação, formação completa do humano – capaz de lhe resistir e de
cultivar a bondade, a compaixão e a nobreza a que somos chamados. De tudo isto
se faz a metamorfose da pessoa – que no seu etimológico, persona, significa
máscara.
Pedro Miranda
(publicado no jornal I)
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