"A SALA DE PROFESSORES", DE ILKER ÇATAK

 

A Sala de Professores”, de Ilker Çatak

Dir-se-ia que ancorada numa longa tradição do cinema que convoca o professor idealista, mas, ainda assim e de um modo outro (não já a última inovação e quinta essência do impensado/inexperimentado em sala de aula), há muito que não via na tela uma personagem, como a professora Carla Nowak (Leonie Benesch), tão obstinada na sua auto-exigência ética, tão capaz de defender, na sua prática quotidiana, aquilo em que acredita mesmo tal lhe causando sério prejuízo [tão sublinhado o imperativo categórico] - o jornal escolar, feito, em exclusivo, por alunos, que traem o combinado de enviar a entrevista, à entrevistada, antes daquela ser impressa, e que escreverão um artigo tabloide a colocá-la, e sua dignidade, seriamente, em causa, ademais respondendo-lhe com total falta de empatia, o problema é seu, se não consegue lidar, não temos nada a ver com isso, e, ainda assim, contra a decisão maioritária da Direcção, a sustentação, pela própria, de que o jornal deve poder continuar a ser vendido nas imediações da escola; o aluno Oskar (Leonard Stettnisch), o nerd da turma, que a agride com violência, quase a cegando no modo como lhe atira com o PC (roubando-o para tentar “salvar” a mãe), agressão que Nowak, em reunião com a Direcção da escola, negará, como que indo para lá de “o limite da compaixão é a verdade”, ou, pelo menos, incluindo uma tal compreensão da verdade das circunstâncias de Oskar – dividido entre a vinculação materna, mãe administrativa da escola sob acusação de furto, e suspensa, ou encontrando-se em férias obrigatórias até ao completo apuramento dos factos já com a polícia envolvida no assunto -, e o espaço escolar no qual todo o seu potencial é exponenciado e acolhido (por uma docente completamente entregue, e a ele especialmente devotada), num dilacerar com que a intriga se concluirá sem uma resolução (definitiva), Carla Nowak tão coerente e consequente mesmo perante os seus erros, tão resistente aos reveses de um quotidiano ao qual se doa tanto – e abdicaria, mesmo, do seu lugar na escola pela manutenção de Oskar nesta, quando a saída do aluno de tal estabelecimento de ensino é equacionada pelas autoridades escolares – e que, pelas astúcias do imprevisto (mau), lhe devolve não sem uma considerável dose de injustiça, cai e levanta-se como os fortes de Agostinho da Silva, ou retoma a pedra de Sísifo que caíra, imagem na qual muitos se detêm e crêem assumir a configuração do humano caminhar. A envolvência pedagógica – o grito estridente, em sala de aula, mas em conjunto com os alunos, como que a expulsar os demónios que parecem rondar -, a crença na escola, e numa escola democrática, tolerante, de primazia do outro, de respeito densificado pelos direitos dos alunos, permite-lhe a superação do desespero (leio no grito envolto em pedagogia, como libertação antes da aula começar, imagem transposta para os cartazes publicitários do filme, esse mesmo superar).

A Sala de Professores (Das Lehrerzimmer), de Ilker Çatak, se é certo que, como já se escreveu, nos “metralha”, sem cessar, com dilemas éticos – tendo sido furtada uma carteira numa comunidade escolar, porque é que seria, necessariamente, um aluno autor do furto (porque teria de ser um aluno o primeiro dos suspeitos, ou com tal exclusivo)? Que legitimidade há em chamar dois alunos à Direcção e colocar-lhe à frente uma lista de nomes para apontarem/denunciarem os potenciais responsáveis por tal censurável conduta? Como, já em sala de aula, por um lado, são mandadas, pela mesma Direcção, sair as raparigas da turma e, depois, se faz uma intrusiva revista dos alunos? Terá sido ao acaso apontado o aluno imigrante, de origem em cultura islâmica, como o (maior) potencial interveniente na série de furtos na escola? E como reagir à resposta do pai de Ali, chamado, juntamente com a mãe, à escola, pela Direcção, e que, confrontado com as suspeitas (nunca apuradas) de que o filho teria furtado, negaria, perentoriamente, tal hipótese, pelo simples motivo de que se tal sucedesse, ele, progenitor, “lhe cortaria [literalmente] as pernas” (uma forma de punição seguramente não conforme aos valores constitucionais alemães; mas faria mesmo isso aquele pai?, a resposta da mãe de que dava bastante dinheiro ao filho, e isso justificava as notas na carteira daquele, seria razoável?, o filme insiste, em permanência, no enigma)? Como aceitar que para se encontrar aquele que cometeu o delito, se ligue uma câmara de computador à socapa, que acaba por gravar várias imagens, na sala dos professores, em violação da privacidade de professores, funcionários e até alunos que por ali passam? Como, ademais, foi a professora, que tão bem estivera contra o modo invasivo como a direcção buscara o potencial culpado, (a) ter a ideia e executá-la, de uma câmara às escondidas para apanhar o/a delinquente? E se parece claro, quanto ao resultado desta iniciativa, que a câmara capta um momento em que alguém vestido com uma camisa peculiar (?) faz abanar o interior do casaco do qual desaparecerão, naquele ínterim, algumas notas, como, sem uma ponderação mais detida, seguir, imediatamente o impulso de, ao ver ao alguém com camisa com os efeitos acabados de visualizar nas imagens do PC, a acusar de furto? (Não haveria ninguém, aqui na escola, a usar uma camisa igual a esta? O casaco abana, é certo, durante aquele frame que vemos e revemos, mas corresponderá, ele, ao exato momento em que o furto se consumou?) Quando é que podemos dizer que possuímos conhecimento (?), interroga, muito filosoficamente, então o filme. E que dizer do boicote – digamos, uma espécie de greve de zelo - da turma às aulas da professora quando, por um lado, a turma, não raro, continha elementos que, com crueldade, assumiam, dirigindo-se a Oskar, que a sua mãe roubava e, por outro, parecem agora achar-se em solidariedade com Oskar (estaria a mãe do colega a ser acusada de tão infamante delito, a perder o emprego, a passar por um bocado tão mau com base numa alegação infundada e injusta da professora, que, aliás, se arrepende minutos depois, que fica atolada em remorso e dúvida, que vê a escola, em dada cena (alucinada, real?), como que preenchida por alunos com idênticas camisas à da suposta mão que “limpou” a carteira?). Ou há, sobretudo, pela turma, uma busca voyeur de devorar todos os pormenores da intriga em curso, à maneira da equipa do jornal escolar e da sua inscrição no método e conteúdo tabloide? O que pode e deve ser revelado, o que tem direito de saber a turma, afinal? E de onde vem aquele desprezo, aquela falta de total compreensão para com a situação em que se encontra a professora, sempre tão disponível e atenciosa, preocupada com os seus alunos e os seus direitos? E que dizer da reunião de pais com a professora na escola e do que publicam no whattsapp, de que vemos uma referência indireta? E que solidariedade interpares na Sala dos Professores, o que se partilha e o que se esconde (o que é legítimo partilhar e esconder), em virtude de diferentes mundividências, sobre como actuar em casos-limite como aqueles que ali se lhes afiguram? Até que ponto pode e deve ir a busca de proteger, e a ligação emocional, a um aluno (lembra-te que tens, e também és responsável, pelos outros alunos!, atiram os colegas à professora Novak)? Mas não é a evitar que a ovelha, por sinal a mais desenvolvida cognitivamente da turma, no caso em apreço, se perca que se age verdadeiramente bem? – coloca-nos, igualmente, perante uma mulher/professora – no caso, a dar aulas a alunos do 7º ano, com 12 anos, tanto a leccionar Matemática, como a dar aulas de Educação Física, conforme ao modelo de ensino em que se inscreve e no qual vemos pequenas dicas de estratégias ali usadas para obstar, mitigar, impedir a prossecução do ruído em sala de aula, como, batendo uma palma, a turma, na íntegra, de imediato, acompanhar o gesto e, em um instante, voltando ao silêncio, tipo de compromisso que registamos em leituras acerca de escolas no Norte da Europa (certamente usadas um pouco por toda a parte, incluindo aqui a realidade que nos é mais próxima, mesmo que não de forma generalizada); um aluno interrompe sistematicamente e a turma dá duas voltas à sala até os níveis de respeito e de silêncio permitirem continuar a lição – que acredita profundamente na sua profissão, e no que ela representa para cada um dos seus alunos, numa dada forma de a conceber – profundamente democrática, tolerante, respeitadora dos alunos e seus direitos, reitera-se – e, não sem tropeços, é certo, dará corpo inteiro, sem vitória derradeira nem derrota completa, a esse núcleo de valores vividos que nos dão a forma de uma força que permanece, apesar de tudo.

Pedro Miranda





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