EMÍLIO RUI VILAR, MEMÓRIAS DE DOIS REGIMES - NA CASA DE MATEUS

 

ONTEM, NA CASA DE MATEUS, APRESENTAÇÃO DE “MEMÓRIAS DE DOIS REGIMES”, LIVRO SOBRE A VIDA E OBRA DE EMÍLIO RUI VILAR, ENTREVISTADO POR ANTÓNIO ARAÚJO, PEDRO MAGALHÃES E MARIA INÁCIA REZOLA

- Da importância de levar a sério uma “história do presente”, de não perder a oportunidade de recolher testemunhos na primeira pessoa do que foram os seis/sete decénios anteriores na vida pública portuguesa, da relevância de livros como o agora dado à estampa com e sobre Emílio Rui Vilar e ainda acerca da precariedade das mais conhecidas enciclopédias online: “O Engenheiro Carlos Ribeiro foi, durante 10 anos, Ministro das Comunicações em Portugal, e a Wikipédia não tem uma linha sobre ele” (António Araújo, Historiador);

- Ramón Villares, Historiador e membro da Real Academia Galega que acompanhou de perto o processo de transição democrática em Portugal, a propósito do livro em apresentação, sublinhou dois enigmas, que na obra se encontram patentes, que prosseguem por responder na nossa história recente: a) “como pôde ser tão rápida a passagem/transição de Salazar para Caetano?” (dado, até e sobretudo, o conjunto de pretendentes, no seio do regime do Estado Novo, a ocupar a Presidência do Conselho); b) “a relação/omissão da PIDE relativamente à Revolução do 25 de Abril de 1974. A PIDE estava concentrada nos comunistas, nos operários, nos refractários à tropa e descuidou os militares?” (será essa a principal explicação?). Claro que “toda a revolução esperada, não sai do lugar” (Montesquieu).
E pode passar-se (bem) de uma ditadura para uma democracia, sendo que, esta última reclama “uma nova moralidade política”?

[Rui Vilar dirá: foi a “descompressão pacífica”, na transição Salazar/Caetano que permitiu o surgimento da SEDES. Todavia, Marcello Caetano esperava que a SEDES “fosse mais pacífica, mais cooperante”. Nas reuniões desta, “havia Pides a assistir”. Da SEDES, vários quadros transitaram para os partidos – PS, PSD, CDS e, até, PCP – e Rui Vilar, estando, agora, a ler o romance “Democracia”, de Alexandre Andrade, teve, a partir dele, a reminiscência da vozearia, dos gritos, da barulheira que sempre acompanhava cada discussão política nos idos de 70: “na SEDES, pelo menos as pessoas ouviam-se umas às outras” [no romance de Andrade, 12+1 em tertúlia, com a condição de cada um só principiar a falar quando o outro concluísse a sua alocução]. Emídio Rui Vilar evocou o local deste encontro de 11 de Maio de 2024 para tocar o ano de 1978 em Mateus: para o colóquio “Repensar Portugal”, ali acudiram, visitando, também e concomitantemente, São Leonardo de Galafura e Panóias, o Padre Manuel Antunes, Eduardo Lourenço, Miguel Torga, Sophia, Vasco Graça Moura, o melhor da “nata pensante”, então, do país [nesse ano, saem “Repensar Portugal”, do Padre Manuel Antunes e “O labirinto da saudade”, de Eduardo Lourenço]. A propósito de enigmas: sabe-se que a PIDE, desde 1973, deixou de fazer escutas a militares. Mas, exatamente, porque é que tal sucedeu? No dia 25 de Abril, o diretor da PIDE foi autorizado, por Spínola, a regressar, tranquilamente, a casa.

Então, qual o comportamento de Álvaro Cunhal, no Conselho de Ministros, pergunta o historiador Ramón Villares a Rui Vilar? Resposta: “até ao 5 de Outubro [1974], muito tranquilo, respeitador e a favor das tradições de Natal nos Ministérios, tudo…”. Quando, a 13 de Dezembro, se dão as prisões de Administradores de Bancos, etc., sem mandato judicial, já, diferentemente, terá dito, no testemunho de Vilar: “se esta prisão desagrada a alguns, agrada a muitos em Portugal”. Emídio Rui Vilar vê a Revolução portuguesa no contexto da “Guerra Fria”: “Portugal era um tabuleiro do xadrez da Guerra Fria – [que se jogava, pois] em Portugal e, sobretudo, em Angola”. No 25 de Novembro, “havia dois partidos com armas distribuídas, o PS e o PCP, e ninguém se movimentou”. Um outro “enigma” foi Otelo ir para casa, nessa altura. Em realidade, “o PCP estava a sentir-se ultrapassado pelos movimentos da outra esquerda. O PCP odiava os movimentos anarquistas, assumindo [por contraponto] um papel conservador” [na mesma linha desta perspectiva de um PCP mais “conservador” face aos partidos mais na extremidade da esquerda, vide José Miguel Júdice na entrevista a Maria João Avillez pelos 20 anos do 25 de Abril, em livro agora reeditado pelo Público].

- António Araújo apresentou Rui Vilar – fundador e primeiro presidente da SEDES, ministro nos três primeiros Governos depois da Revolução de Abril de 1974, banqueiro, Presidente do Conselho de Administração da Gulbenkian entre 2002 e 2012 – como um homem de “descrição” – “num tempo de grandes ambições, protagonismos, vaidades”, um jurista que foi governante, gestor, banqueiro, pensador do país, “é um esteta”, alguém com “um apurado sentido cultural” -, dado à “moderação” -  numa “época de radicalismos”, há em Emídio Rui Vilar “uma prudência, uma “suavidade no discurso” que o distinguem -, “profundo europeísmo” e “cosmopolitismo”. Rui Vilar é, sobretudo, aos olhos deste historiador, um “homem do Norte, do Porto, da burguesia e seus valores, os do trabalho, da honra, das contas certas”. Emídio Rui Vilar fez, ao longo da sua vida, um trajecto que o levou do Porto aos estudos em Coimbra; dali, ao serviço militar em Angola; sendo ministro em Lisboa e com responsabilidades, múltiplas, na Europa. Portugal tem uma “grande dívida de gratidão” a homens como Rui Vilar pelo seu papel decisivo para a existência de uma democracia pluralista (pela sua visão e inteligência; ele que foi o homem do “Plano Económico Social”, também chamado “Plano Melo Antunes”). A “Revolução nas ruas foi antecedida por uma revolução nos espíritos” e, para esta, a SEDES desempenharia um papel de relevo: “uma instituição decisiva” na criação/formação e treino de quadros”.

- Pedro Magalhães deu nota como, no decurso dos diálogos, realizados em 2022, na Gulbenkian, filmados, para o livro agora editado, os entrevistadores se deram conta de um vasto conjunto de autores, personalidades que eram mencionadas no mesmo e de que não se havia feito um trabalho de recolha de testemunhos, de memórias, de algo que pudesse ficar para os historiadores trabalharem (foram identificadas mais de 30 personalidades cujo contributo/papel nestes sete últimos decénios foi relevante e cuja “voz” não fica fixada para futuro): “que pena já não podermos entrevistar estas pessoas!...”. Na origem do livro, um jantar – “os jantares em Portugal são passados a falar de comida, da que está, da que se jantou e da que se irá jantar”, mas, desta feita, ideia súbita e troca de sms com António Araújo a colocar em marcha o livro – e uma hesitação inicial, em Emídio Rui Vilar, com o natural questionamento sobre se as memórias interessam a alguém (“alguém quererá ler isto? Que importância isto tem?” No entanto, o livro tem tido boa adesão dos leitores).

- Uma curiosidade final: Ramón Villares contou como alguns sectores espanhóis acompanhavam a revista “O tempo e o modo”, dirigida por Alçada Baptista e Benárd da Costa, e, em particular, como Dionísio Ridruejo Jimenez, uma espécie de (homólogo de) António Ferro (para o regime franquista, ainda que tenha tido uma profundíssima evolução ideológica que o levou a posições de tipo social-democrata), enviou para a revista um ensaio que nela quis ver publicado (mas que “O tempo e o modo” nunca veio a publicar).

 

[Presentes na sessão de apresentação de “Memórias de Dois Regimes” o atual presidente da SEDES Álvaro Beleza e a antiga ministra da Educação Isabel Alçada, em encontro com cerca de 25 cidadãos, entre os quais neto do homenageado]






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