'NOVOS FANATISMOS NA ERA DO HIPERINDIVIDUALISMO'
‘NOVOS FANATISMOS NA ERA
DO HIPERINDIVIDUALISMO’
Hoje, em Viseu, no Solar do Dão, em encontro promovido por “BEIRA – Observatório de Ideias Contemporâneas Azeredo Perdigão”, a escutar a conferência inaugural de Gilles Lipovetsky – ‘Figuras do Extremismo Contemporâneo’ – e as exposições de José Pacheco Pereira – ‘Quando a ‘história’ anda para trás’ -, Maria João Marques – ‘Tempos de tribalismo político’ – e Manuel Maria Carrilho – ‘A banalização do fanatismo: o wokismo’. Ficam, desde já, algumas das notas da intervenção de Lipovetsky.
O i) fanatismo de mercado – sob a forma de neoliberalismo e de libertarismo
e, neste, de ciberlibertarismo -, ii)
a força social e eleitoral da
extrema-direita – da virulência anti-imigração, alimentada do medo e,
ainda, de desconfiança face aos partidos; iii) o conspiracionismo – como modo maior de extremismo epistémico e iv) o islamismo
integrista – ameaça tanto interna à Europa e seu modo de vida, como
exemplificado, ainda, nos países em que é adoptado de modo universal, com o
paroxismo do tratamento das mulheres no Afeganistão ou no Irão – são, no
entender de Gilles Lipovetsky, as quatro figuras
(modalidades) mais relevantes (perigosas) do extremismo contemporâneo.
A aparência cool do fim da inscrição apaixonada em ideologias
quais “religiões seculares”, no final da II Guerra Mundial e, em definitivo,
chegou a crer-se (ingenuamente), após a queda do muro de Berlim, deixou por
explorar a possibilidade, que marca uma possível interpretação do nosso tempo, face
a um pragmatismo (dito asséptico) (então) reinante, de que as pessoas/cidadãos,
nesse quadro, pensaram que ‘como (já) não há grandes escolhas ideológicas,
porque não experimentar propostas políticas extremistas?’. Eis uma das causas
do extremismo contemporâneo, assinala o filósofo francês.
A hiperdesconfiança, o espírito
de rejeição de tudo o que nos é apresentado, a reivindicação de um direito a colocar tudo em causa (tribunais,
polícia, ciência, políticos), a recusa
das instituições e aquele espírito de
superioridade, tão pueril quanto soberbo, do “vocês são ovelhas, manadas
que seguem o que vos servem; não colocam em causa, ao contrário de nós, as
verdades oficiais” como o radical do conspiracionismo
(as redes sociais são importantes
neste âmbito, mas não explicam tudo), lá onde a ilusão de que mais educação, maior aposta na ciência impediriam o irracionalismo, o obscurantismo, a superstição
e o extremismo epistémico (1/3 dos
norte-americanos pensa que as autoridades federais participaram no 11 de
Setembro ou não fizeram nada para o evitar; 32% acreditam que o AIDS foi criado
em laboratório para contaminar África; 16% têm a certeza de que o Homem não foi
à lua e 9% estão convencidos de que a Terra é plana). 44% dos norte-americanos
identificam no Facebook a sua
principal fonte de informação.
O ciberlibertarismo defende uma indústria digital livre de intervenção
estatal; liberdade individual total no espaço sem regulação dos Estados. A Google, o Facebook, o X, empresas
privadas, serão, pois, os árbitros.
Atente-se, uma história do nosso tempo, no caso do Telegram: por um lado, e pela positiva, ele foi criado para elidir
a censura estatal digital, na Rússia. Plataforma ao dispor de todos os opositores
do regime de Putin, bem como, no caso do Irão, susceptível de juntar todos os
militares contrários ao regime integrista que vigora naquele país. De outra sorte,
o próprio estado russo, leviatã a que o Telegram
pretendeu furtar, serve-se, também, desta plataforma digital para divulgar a
sua propaganda. Traficantes de droga e de
pessoas, redes de prostituição, ligação
a sites conspiracionistas, transações ilegais de todo o tipo – pelo
Telegram tudo passa sem moderação,
sem regulação, em nome de uma liberdade individual total. Blockchain, IA serão
sistemas mais eficazes de gerir o transe social crêem Peter Thiel ou Elon Musk.
Cidades flutuantes utópicas, ilhas
artificiais na Polinésia não reguladas pelo Estado (afastar a política, até um
dia, porventura, o colapso do Estado Social, e afirmação de confederações
independentes de cidades-estados na alquimia dos nossos aprendizes de feiticeiro)
…admiráveis mundos novos dos golden boys de Sillicon
Valley.
A subsunção de todas as
esferas da vida (económica, social) ao mercado tem curiosas ilustrações
gráficas: até a conquista do espaço pela qual o Estado era responsável, hoje
parece entregue a Elon Musk (vide a questão da “conquista da lua” e de blocos
políticos rivais, nesse contexto; mas pense-se, ainda, neste ponto do filósofo
francês acerca do fundamentalismo de mercado como são, hoje, reguladas, em
diversas geografias, a questão da fecundação
in vitro). A paixão ideológica e as suas “paixões negativas” continuam,
afinal, a conviver connosco (quando a tecnocracia e o pragmatismo se erigiam em
actores hegemónicos).
Não é, apenas, o facto de
grandes executivos ganharem, hoje, 500 a 1000 vezes mais do que funcionários da
mesma empresa (quando a proporção, no início dos anos 50 era de 1/50), sendo
que, no limite, tais trabalhadores teriam que trabalhar mil anos para
alcançarem o mesmo rendimento do que um CEO. A explosão do financismo, o aprofundamento
das desigualdades, a desindustrialização,
o desemprego empurraram-nos para um
ponto em que 1% das pessoas no mundo detêm 43% da riqueza deste.
Em qualquer caso, segundo
o pensador francês, não nos encontramos como a quando dos anos 30, nem, tão
pouco, no período entre as duas guerras mundiais, a extrema-direita de hoje não
o é nos mesmos termos da de há 100 anos e, apesar do hiperindividualismo, as
democracias, crê, irão resistir aos inimigos da tolerância.
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