O SÁBIO ANCIÃO MARTIN SCORSESE

 

O sábio ancião Martin Scorsese


1.Ficara a matutar na comparação que Scorsese estabelecera entre Kichijiro (de O silêncio, romance, de Shusaku Endo, publicado em 1966, feito cinema em 2019) e Jesus Cristo (em “Silêncio. Entrevista com o realizador do filme, Martin Scorsese”, de Antonio Spadaro, Paulinas, 2017), mas a releitura dos diálogos, agora ampliados (Conversas sobre a fé, Casa das Letras, 2024), do jesuíta e ensaísta italiano com o realizador de A última tentação de Cristo, tornara-a bastante legível, senão evidente. Se a exortação, pelos séculos, a ver Cristo nos outros, em especial nos últimos e nos marginalizados, quer dizer alguma coisa, se é para ser levada minimamente a sério para hoje e aqui, então ao homem a quem a palavra do Evangelho tocara, que se dedicara a estudar o contexto histórico e cultural daqueles textos, a ampliar nos romances de Graham Green ou em Endo a (sua) imaginação cristã, e a buscar traduzir, então, neste tempo e nesta cultura, o fundamental daquele tesouro, estava bom de ver que o filme a realizar sobre Jesus deveria incidir sobre os “prédios degradados” e as ruas do centro de Nova Iorque - que lhe calhara, de resto, viver nos idos da sua infância e adolescência - e ser capaz de perscrutar e de se abeirar, neles, dos perigosos rejeitados, os Kichijiro desta vida (“naquela altura queria fazer a história de Jesus: 16 mm, a preto e branco, nos dias de hoje, filmado no Lower East Side, nos prédios degradados e em Bowery, culminando na crucificação nas docas do rio Hudson”). Contudo, “esse filme”, em boa medida, fora, já, feito, por Pasolini (em O Evangelho Segundo São Mateus), ao dar-nos rostos e paisagens que significavam uma profunda e real encarnação de um Cristo bem vivo e, aliás, até “colérico” a dado momento - mesmo sem referir o episódio dos “vendilhões do Templo”, Scorsese aponta a impetuosidade do “sermão da Montanha”: “o filme de Pasolini era uma grande poesia – uma poesia nova e moderna (…) O cenário era de época, mas o estilo era novo e imediato: fazia-te sentir como se estivesses lá. Havia uma enorme beleza crua e poder naquelas imagens. Pasolini deu à presença de Jesus um grande imediatismo, e o seu Jesus não era uma estrela de cinema. Deus abençoe as estrelas de cinema, mas elas tiveram dificuldade em desempenhar esse papel (…) O filme de Pasolini era como um planeta diferente. O rosto de Jesus era um rosto que nunca tínhamos visto antes, tal como todos os outros rostos do filme. Nunca tínhamos visto o cenário, a cidade de Matera; com a extraordinária mistura de música – Odetta, Bach, Leadbelly, Prokofiev, a Missa Luba – isso era completamente novo. E também a força de Jesus, a cólera de Jesus. Era uma grande obra de arte (…) Os outros filmes sobre Jesus que tinham sido feitos até essa altura era muito, muito piedosos, e sempre que Jesus aparece é o centro das atenções em todos os sentidos. É destacado do resto da humanidade na sua maneira de falar, na sua maneira de se mover, na sua perfeição física e no enquadramento, na encenação, na iluminação. Mantém uma grande tradição de representar Jesus na pintura de forma absolutamente idealizada, muitas vezes com uma auréola. Mas o que Pasolini fez foi tornar Jesus um ser humano, uma pessoa, alguém que se pudesse conhecer e com quem se pudesse falar. Penso que esta é a chave. Para mim, o imediatismo de Jesus está, em última análise, na nossa própria vida. São as pessoas que nos rodeiam, os testes nas nossas vidas e o que Jesus nos dá para nos ultrapassarmos a nós próprios e lidarmos com os outros”. 
Zaqueu bem pode, assim, continuar a atravessar uma obra cinematográfica, a de quem permanece, eternamente, em diálogo com o coração pulsante do cristianismo: “li muitas traduções dos Evangelhos e estudei a história daquele tempo e daquele lugar, os publicanos, os cobradores de impostos e o que isso significava, as prostitutas, o Sinédrio, etc…E, portanto, temos os fariseus e os escribas a dizer que aquele homem [Jesus de Nazaré] anda a beber vinho com prostitutas e cobradores de impostos. Atualmente, pensamos nos cobradores de impostos como tipos com canetas nos bolsos, contabilistas. Mas estes cobradores de impostos eram rufias, extorsionários e bandidos. Por outras palavras, ele andava com gente da pior espécie e foi condenado por isso (…) Com A última tentação de Cristo quis fazer um filme para as pessoas que dizem: ‘sou um bêbado, um drogado, uma prostituta, sou mau, não tenho coração, não tenho nada na minha vida nem nada para oferecer, não mereço ser amado, Jesus não me podia amar’. Era esse o Jesus que eu queria para eles”.

2.Se, para mim, à amizade encontra-se adstrita não apenas a lealdade, mas ainda a fidelidade, as quais, pressuponho, portanto, (esperadas) no amigo – e em cujos frutos, de tais características ou virtudes - a segunda das quais, faço notar, parece-me, não raro, expendable no salão de chá que contorna a cidade - acredito, aliás, em uma permanência quando nada mais, nem ao lado, permanece -, não já, necessariamente, de tal sorte para o Rodrigo, convicto, nestas discussões, da sua perspectiva do esgotamento que, em sucedendo, deve ser, maduramente, ratificado, com um (relativamente) soberano adiante! ou adeus!, minoritária posição em face dos que, à sua volta, se posicionam, de modo acalorado, quanto ao personagem que desempenha uma indecente e má figura na relação, agonizante a agoniante até, em Os espíritos de Inisherin (filme de Martin McDonagh, de 2022, sobre o qual escrevi aqui https://desinflacionar.blogspot.com/2023/02/ilha-densa-do-humano.html) – que serve, por conseguinte, de mote a estes diferendos (existenciais). Conquanto, todavia, aprecie, de sobremaneira, os santos de causas perdidas e os que ousam afirmar os seus considerandos menos populares – outra forma de depreciar, de facto, em simultâneo, o oportunismo como modo de vida – e, mais ainda, os que acrescentam, ainda que em dó menor, à não idealização e intangibilidade das coisas, e porque é, mesmo, possível apreciar o elaborar sobre modos de viver as mesmas realidades a partir de opções diversas das nossas (sim, continua-me a ser repulsiva a atitude de Doherty) , eis do alto – ou do baixo, como prefere, porque mais próximo à pessoa e suas vidas, e aquela sujidade…que é preciso sanar – dos seus mais de 80 anos a forma como Scorsese se aproxima mais da perspectiva do Rodrigo, ainda que uma conversão de compaixão associada à sua própria metanóia as habite: “com o passar do tempo, as pessoas que conheces muito bem e com quem trabalhas há muito tempo podem ter outras necessidades, outras coisas que se tornam importantes para elas, e tens de reconhecer isso e fazer as pazes. Aceitas quem elas são, aceitas como mudaram, tentas cultivar o que têm de melhor. E, por vezes, tens de reconhecer que eles têm de encontrar o seu próprio caminho. Houve uma altura em que considerei isso uma traição. Mas depois apercebi-me de que não era. Era apenas uma mudança”.

3.Muitas pessoas não gostam da violência presente nos meus filmes, nota Scorsese. Tiveram outras vidas, não viveram a infância e adolescência em que vivi, vizinhos assassinados, a facilidade de entrar no crime, o tráfico de droga, a sorte em não ser baleado pela polícia (“[Os meus avós] Eram pessoas decentes, que tentavam viver uma vida decente. Contudo, o crime organizado estava presente neste mundo, por isso as pessoas tinham de andar na corda bamba - não podias estar com eles, mas também não podias estar contra eles. O meu tio tinha tendência para estar com eles. Sempre foi um marginal, tal como o Johnny Boy - sempre metido em sarilhos, foi para a cadeia várias vezes, sempre a dever dinheiro a agiotas (…) Havia os sem-abrigo em Bowery, pessoas que estavam mesmo no fim da vida, muitos deles alcoólicos, os que estavam em baixo e completamente fora de si – chegámos a conhecer alguns deles, mas sempre nos assustaram. Por vezes, os miúdos provocavam-nos e eu vi como é fácil cair na desumanização sobre os outros, especialmente quando eles te assustam”). Para muitos, a violência, nestes meus filmes, é gratuita e/ou artificial. Só que não. Havia que lidar com ela, um certo lado catártico e de integração de um passado, com eles. Mas, última ratio, bem mais. Há no humano uma dimensão de violência que este deve trabalhar (de forma terapêutica); presença, esta, a da violência que a(s) pessoa(s) não ganha(m) em obliterar e fingir que não possui (possuem). Será da capacidade de operar sobre o violento em nós, o nosso violento, que poderemos ser menos destrutivos. É da recusa em olhar para esse abismo que também somos – e da necessidade de nos perdoarmos quando o prosseguimos – que advém o choque com que muita gente se cumula quando se descobre capaz de violência (“será que podemos cultivar o bem para que, num momento futuro da evolução da humanidade, a violência possa, possivelmente, deixar de existir? Mas, neste momento, a violência está cá. É algo que praticamos. É importante mostrar isso. Para que não se cometa o erro de pensar que a violência é algo que os outros fazem - que as «pessoas violentas» fazem. «Eu nunca faria isso, claro». Bem, na verdade, podias. Não o podes negar. Por isso, há pessoas que ficam chocadas com a sua própria violência ou emocionadas com ela. É uma verdadeira forma de expressão, em circunstâncias desesperadas, e não tem piada. (...) Muitas pessoas não compreendem a violência, porque vêm de culturas ou subculturas das quais ela está muito distante. Mas eu cresci num sítio onde ela fazia parte da vida e onde estava muito próxima de mim. (...) A violência é, para mim, uma parte do ser humano (...) A profanação e a obscenidade existem, o que significa que fazem parte da natureza humana. Não quer dizer que sejamos inerentemente obscenos e profanos - quer dizer que esta é uma forma possível de sermos humanos. Não é uma boa possibilidade, mas é uma possibilidade”), mas também da incapacidade de encontrar graça mesmo nos ambientes mais adversos (Scorsese quis, em boa medida, entrar para o Seminário, onde esteve cerca de um ano, pelo exemplo do padre Principe, alguém que lhe deu a ver outros filmes, livros, um mundo (outro) que, assim, ampliou, longamente, a sua experiência e o seu universo – outra possibilidade de habitar o mundo, outra forma de ser [“tinha vinte e três anos e trouxe-nos uma maneira nova e fresca de ver a vida (…) representava uma forma de pensar e uma forma de lidar com a vida que era muito, muito diferente do mundo cruel, duro e julgador que me rodeava. Olhava para nós e dizia: «não têm de viver assim». Deu-nos livros (…) deu-nos uma abertura para o mundo. Tocava música para nós. Adorava cinema e recomendava-nos filmes. E dava-nos razão (…) Dava-nos uma nova forma de pensar”]; outra motivação para a ida para o seminário, porém, reconhece, foi a fuga à vida, esconder-se desta e do mundo).

 

Boa semana.
Pedro Miranda






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