POLARIZAÇÃO E VIOLÊNCIA POLÍTICA NOS EUA
A violência política nos EUA
1.A tentativa de homicídio a Donald Trump durante a pré-campanha eleitoral, voltou a colocar a questão da violência política nos EUA no centro das atenções. E, compulsando-se os registos históricos e estatísticos, o reconhecimento de que a forma preferencial que aquela adquire é a do assassinato presidencial. Um dado ilustra, com contundência, o perigo em que consiste o exercício do cargo de Presidente dos EUA: a probabilidade de se ser assassinado (pelos seus concidadãos) enquanto se é presidente é de 1 em 11. Dezassete presidentes norte-americanos sobreviveram a atentados contra as suas vidas – o que compara com um único PM britânico, Spencer Perceval, a ser assassinado, em 1812; duas tentativas de assassinato na história da Austrália, uma na história do Canadá. A presidência dos EUA é, de tal modo, o trabalho mais perigoso naquele país que na segunda ocupação de maior risco para a vida daqueles que a exercem, a pesca industrial, o rácio de morte em “acidentes laborais” é de 1 em 1000 – e, acrescente-se, a taxa de mortalidade das tropas americanas é de 82 por cem mil. Os EUA gastam nada menos do que um milhão de dólares por dia para manter vivo o seu Presidente (cf. Stephen Marche, “A próxima guerra civil”, Zigurate, 2024, p.75).
Curiosamente, republicanos e democratas que sempre encontramos sentindo-se sitiados na América: “os adolescentes negros em Baltimore e St. Louis sentem-se sob ocupação policial. Os rancheiros no Texas e no Oregon sentem-se ocupados pelo Governo federal” (p.174).
Bem se compreende, pois, face a esta realidade, o tom de sarcasmo irado, dorido patente no poema[23] de Hilton Obenzinger, incluído em Witness: 2017-2020:
Embora ir ao cinema e disparar
Embora ir ao festival de música
Embora ir ao supermercado
Embora ir à escola
Embora ir ao aquário e alvejar o vidro
E que as pessoas se afoguem enquanto as alvejamos
E não esqueçamos de alvejar os peixes
Embora ir ao museu e atirar à Arte
E depois alvejar as pessoas que olham para o Picasso
Embora alvejar o Picasso
Está morto, por isso embora ir ao cemitério alvejar
os mortos.
Embora ir aos Palácios de Justiça alvejar todos os juízes
Embora ir ao QG da NRA e alvejar toda a gente
Embora ir à Lua e alvejar a Terra
Embora embebedar-se e disparar
Embora ir ao hospital e alvejar os doentes
Embora tirar a roupa e disparar
Embora alvejar os que estão nus
Embora arranjar uma AR-15 e alvejar as pessoas
que odiamos.
Embora atirar sobre quem amamos
Embora nunca ficar sem balas
Embora nunca ficar sem espingardas metralhadoras
automáticas.
Embora arranjar um camião de lança-granadas
Oxalá tivéssemos tanques e mísseis
Embora disparar enquanto o tiroteio dura
Tanto que alvejar e tão pouco tempo
Alvejemos o leve vento calmo
Que atravessa os nossos corações
E matemo-lo de vez
Embora ir à Igreja e disparar.
O reforço do poder executivo, a imunidade presidencial por atos no exercício do cargo, um poder judicial que põe travão à devida punição a um ataque brutal à democracia como o assalto ao Capitólio de 6 de Janeiro de 2021 [inquéritos de opinião demonstraram que 45% dos republicanos se reviram naquele ataque] – passando a mensagem de que a violência é um meio legítimo para se alcançar o poder e, no pior de dois mundos, que não há nada a fazer em termos institucionais para travar a barbárie, sendo necessário agir por próprias mãos (Rachel Kleinfeld, ElPaís, 20-07-2024) - são elementos outros que favorecem a conflitualidade civil nos EUA (que, nas palavras de Marche, “estão a acabar” e “já não funcionam como nação”), levando alguns a pensar, inclusivamente, em tempo de separatismos, que a secessão poderia ser o menor dos males (ainda que para que tal se efectivasse necessário seja sempre responder a incómodas questões como de que forma se partilharia a dívida nacional (?), se a dupla nacionalidade seria permitida (?), o que aconteceria às Forças Armadas (?), etc).
A desigualdade económica, a seca e a vulnerabilidade da propriedade são constrangimentos muito consideráveis nos EUA, mas, em qualquer dos casos, seria, ainda, possível, estes, hoje, através dos seus dirigentes, “porem em prática um sistema eleitoral moderno, restaurarem a legitimidade dos tribunais, reformarem as forças policiais, extirparem o terrorismo doméstico, alterarem o Código Fiscal de modo a atacar a desigualdade, prepararem as suas cidades e a sua agricultura para os efeitos das alterações climáticas, regularem e controlarem os mecanismos da violência”. Sendo missão que se afigura muito delicada e não demasiado provável de efectivar como se vem de observar - mas “a extrema generosidade do Plano Marshall na Europa não tinha precedentes: para qualquer outro povo, em qualquer outra época, a ideia de reconstruir a economia de um inimigo [ou de alguns países não Aliados] que o tinha tentado aniquilar seria considerada insana”, p.212 -, seria agenda por certo muito mobilizadora para a próxima presidência[24].
Pedro Miranda
[1] Luís Miller, no Prólogo à edição espanhola de “Por que estamos polarizados” (Capitán Swing, 2021), de Ezra Klein, distingue, no multifacetado fenómeno da polarização – aumento da tensão entre os dois extremos do espectro político -, três dimensões naquela presentes: uma polarização afectiva (partidarismo ou sectarismo, com crescente afeição para com o partido e líderes co que o cidadão se identifica e crescente hostilidade para com aqueles em que não se reconhece), uma polarização social (segregação ideológica social) e uma polarização territorial (segregação ideológica espacial). Nestes últimos dois pólos, regista-se que questões como os gostos/interesses (o café latte seria próprio de progressistas, por exemplo; eleitores republicanos preferem casas grandes e com a Escola a alguma distância de casa, os democratas optam por casas mais pequenas e Escola mais perto de casa), estilos de vida (ouvir música country e andar num SUV seria típico de conservadores; andar de bicicleta e ter uma alimentação ecológica reservado a progressistas) e os lugares de residência (áreas rurais a votarem nos conservadores, áreas urbanas a sufragarem progressistas) tendem a separar eleitores de um lado e do outro, respectivamente. Ao concentrarem-se no mesmo espaço, eleitores, comungando das mesmas afeições, gostos, interesses, estilos de vida tendem, também, a reforçar opiniões/posições sobre cidadãos com vínculos diversos dos seus e a distorcer e caricaturar esses mesmos seus compatriotas. Até a liga de futebol americano quando, em homenagem a George Floyd, um conjunto de jogadores ajoelharam, antes do início dos respectivos jogos, se tornou politizada e partidarizada (desde então, Trump e os republicanos denegriram aquele campeonato, passando os democratas a tê-lo por interpretado por pessoas-jogadores com espírito crítico e consciência bastantes). Tais processos são, adicionalmente, acelerados pela crescente individualização introduzida pela digitalização da vida quotidiana. O espaço público reduz-se e corrobora-se o distanciamento e hostilidade entre grupos sociais. Um ponto relevante, e muito discutido neste âmbito, é o de saber se os grandes partidos norte-americanos estão simetricamente polarizados. Aqui, Ezra Klein fala em uma “polarização assimétrica”, assacando especiais responsabilidades, ainda que sem o exclusivo das mesmas, ao partido republicano. A questão é que, por definição, a polarização implica diferentes pólos e, uma vez desencadeada, parece não fornecer demasiados estímulos para nenhum dos partidos a travarem. Da polarização, todavia, não se segue necessariamente o extremismo ideológico (a importância do partido é tal que candidatos por este podem ter incentivo a não dizer coisas demasiado disruptivas – embora, acrescentamos aqui, Trump não seja um bom exemplo disso - e a tentativa de assassinato deste a completa exemplificação extremista). Klein chama a atenção para o facto de a “política do consenso” - portanto, não polarizada - que vigorou até aos anos 60 estribava-se em acordos como os de votar contra leis anti-linchamento, ou deixar fora da Segurança Social a maioria dos afro-americanos, ou seja, era, então (até meados de 60), afinal, muito mais extremista ideologicamente o sistema do que hoje. De resto, uma era com Joseph McCarthy e a questão do Vietname, os assassinatos políticos, nunca poderia ser evocada como exemplo de moderação. E a alternativa à polarização não é, muitas vezes, o consenso, mas a repressão.
[2] Cf. Ezra Klein, o.c., p.43.
[3] Quem nos garante que, ainda que alerta para o enviesamento, nos consigamos eximir de um cognitivismo (politicamente) motivado? Será tal desiderato, furtar-se ao cognitivismo motivado, possível de alcançar? Em realidade, a filósofa francesa Myriam Revault d’Allones convoca-nos a repensar a natureza da política para, no limite, superar a distinção doxa/epistéme (Platão), recuperando (de algum modo, com Aristóteles, a opinião) a inevitabilidade de a verdade em política não ser de tipo científico e, mau grado a necessidade e o bem fundado da escuta de especialistas, de conhecimento dos factos, de aturada atenção aos argumentos trata-se, no limite, na deliberação e na escolha de cada cidadão de uma dada opção entre diferentes entendimentos sobre o/do que é melhor para a cidade (cf. A verdade frágil, Edições 70, 2020). Com a proliferação, nas últimas décadas, de canais por cabo e, nestes, de canais de notícias e dedicados à vida política, julgaram, alguns, por outro prisma, que mais pessoas se encontrariam informadas/conhecedoras e politizadas (sensíveis à vida da polis). Sucedeu, contudo, que a miríade de canais se estendeu às mais variadas áreas de atividade ou interesse humanos, do que resultou uma fragmentação de públicos/audiências, pelo que os que queriam saber mais da polis ficaram a conhecer mais e os que não queriam ficaram, em realidade, a saber menos (do que no tempo dos telejornais sem concorrência do entretenimento. Quando o modelo de negócio mediático-televisivo passou a ser o da concorrência tendencialmente infinita, os canais de notícias, por sua vez, para conseguirem sobreviver/aceder a (parte da) economia da atenção (do público) sobrelevam o mais bizarro, promovendo, assim, personalidades e plataformas políticas que se destacam pela extravagância (em afirmações e comportamentos que procurem chocar, nomeadamente).
[4] Para uma biografia de Mitch McConnell e a questão do Supremo Tribunal, veja-se, de Michael Kirk, McConnel, o Partido Republicano e o Tribunal, in https://www.rtp.pt/play/p13782/e789791/mcconnell-o-partido-republicano-e-o-tribunal.
[5] Até metade do século XX, os Partidos Republicano e Democrata, respectivamente, apresentavam-se como plataformas eleitorais não demasiado ideologizadas, procurando, com tal postura, evitar a radicalização – a política não como modo de dar expressão às fracturas existentes na sociedade, mas visando acalmá-las - e enfrentamento que culminaram na guerra da secessão (Ezra Klein escreve, mesmo, que, até aos anos 60, ser republicano era ser republicano. Uma tautologia isenta de princípios, significados e perspectivas. Um republicano não era, necessariamente, um conservador e um democrata não era, necessariamente, um progressista. O republicano Nixon, por exemplo, propôs, em 1959, ainda na qualidade de vice-presidente, um rendimento mínimo e um plano sanitário mais ambicioso do que, várias décadas volvidas, e com os democratas no poder executivo, o denominado Obamacare. Na eleição entre Ford e Carter apenas 54% dos eleitores consideravam o Partido Republicano mais conservador do que o Democrata). Seria a partir dos anos 60 que a homogeneidade nos partidos se irá reforçando e blocos de eleitores como negros e hispânicos, liberais culturais e urbanos passam a tender a votar nos Democratas e evangélicos e pessoas que vivem em zonas rurais propendem para o sufrágio republicano. Quando a separação entre eleitores é tão marcada, a possibilidade de persuasão uma miragem e, por consequência, a estratégia (passa a ser a) de emocionar e/para mobilizar o próprio eleitorado (a ir votar) torna-se nuclear. Sem embargo, e em outro ângulo de análise, publicações recentes como American Affective Polarization in Comparative Perspective, de Noam Gidron, James Adams e Will Horne, tendem a procurar evidenciar como a maioria dos estudos sobre polarização política, a nível internacional, indicam que esta é maior no sul e leste europeus – que foram objecto de transformações políticas mais profundas e recentes – do que nos EUA (ao contrário do que a aceleração desta, na América, parece sugerir em termos globais) (cf. Luís Miller, Prólogo a Por que estamos polarizados, de Ezra Klein).
[6] Como explicaram Daniel Ziblatt e Steven Levitsky, em Como morrem as democracias [Vogais, 2018], quando os principais partidos norte-americanos decidiam quem eram os seus candidatos através de Convenção, os delegados eleitos conheciam os que pretendiam alçar-se à Presidência como Mayor, no Congresso ou em outros fóruns de índole próxima, pelo que aquela experiência servia de filtro que evitaria a eleição de arrivistas ou figuras excêntricas à adesão a uma inscrição numa tradição. Em 2016, menos de 30% dos potenciais eleitores em primárias foi depositar o seu voto e, ainda assim, tratou-se de uma participação eleitoral acima da média.
[7] Nos anos 50 e 60, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, que são nomeados vitaliciamente, tinham “preconceitos ideológicos relativamente moderados” e inclusive nos anos 90 votavam regularmente “de formas ideologicamente imprevisíveis” (Ezra Klein, o.c., p.249). Agora é muito menos assim.
[8] De entre um conjunto de 37 media norte-americanos (ou em língua inglesa), os eleitores republicanos, em estudos sobre a matéria, referem acreditar e seguir apenas sete destes (quase todos, muito pouco seguidores das melhores práticas jornalísticas e muito facciosos em termos partidários. Entre os eleitores democratas, atribui-se credibilidade e segue-se um conjunto muito mais plural de media, da The Economist ao The New York Times, da CNN ao The Wall Sreet Journal. Este último periódico apresenta-se como um dos raros, de entre os preferidos, pelos eleitores republicanos que procuram respeitar as melhore práticas jornalísticas (independentemente do seu ponto de partida de visão do mundo). O peso desproporcional, no Colégio Eleitoral, de Estados rurais – sendo uma das propostas de Klein o fim do Colégio eleitoral, sem o qual crê que os EUA não são uma democracia; ao nível do voto popular, o Partido Republicano perdeu 6 das últimas 7 eleições, mas não no que isso resultou de Presidentes eleitos -, leva a uma proposta para um eleitorado muito mais homogéneo no Partido Republicano do que no Democrata. E, desta forma, uma ausência de necessidade/vontade de chegar a outros públicos. Por exemplo, grupos sociais nos quais, tradicionalmente, a ancestralidade, o respeito pelas hierarquias é muito marcante são alienados pelos Republicanos com um discurso que os toma por estrangeiros e fora da cultura que diz representar, embora, á partida, se pudessem postular como afins de um ideário de tipo conservador.
[9] É neste sentido e contexto que, na perspectiva de Ezra Klein, ninguém, nos EUA, se encontra ao abrigo da “política de identidade” – que, assim, é tida, pelo autor, não, exclusivamente, como a defesa de causas de grupos (historicamente) marginalizados, mas como a vinculação emocional forte, exacerbada, sectária, do cidadão a plataformas políticas nas quais considera sustentados os seus valores/interesses/visão de mundo/modo de viver (sendo que a identidade ou identidades também contribuem, elas mesmas, para forjar uma visão de mundo). O “ato de escolher um partido é o ato de eleger em quem confiamos para transformar os nossos valores em juízos políticos” [Ezra Klein]. Uma das principais lutas durante as campanhas eleitorais consiste, de resto, em procurar induzir à priorização, em um cidadão, de um dos múltiplos vínculos da sua identidade plural – por exemplo, James irá votar na sua condição de trabalhador não bem remunerado nem bem tratado no seu emprego, ou como habitante do interior negligenciado pela elite liberal? A prioridade que James, consciente ou inconscientemente, der a um destes vínculos poderá determinar o voto (em diferentes partidos). Quanto mais implicados na política, quanto mais politizados, menos nos questionamos ‘o que ganho com cada programa partidário?’ e mais ‘o que é que a minha escolha eleitoral diz acerca de quem sou?’ - anotam alguns estudiosos do fenómeno político.
[10] Hoje, nos EUA, a idade mais comum de um branco é a de 58 anos, para um asiático é a de 29 anos, para os afroamericanos é a de 27 anos e para os hispânicos é a de onze anos [Jed Kolko, citado por Ezra Klein, 2021, p.146]. Na década de 70 do século XX, a população norte-americana nascida no estrangeiro era inferior a 5%; atualmente é de cerca de 14% e, em 2060, calcula-se que andará pelos 17%. De entre as mudanças na demografia e na estrutura da sociedade norte-americana, sublinha-se que 56% dos estudantes universitários são mulheres, tendo, estas, oito pontos percentuais mais de possibilidades do que os homens de possuírem um título académico aos 29 anos. Em 2018, pela primeira vez, os norte americanos que diziam não ter religião superavam os que se afirmavam católicos ou evangélicos. 7 em cada 10 anciãos norte-americanos afirmam-se cristãos, enquanto apenas 3 em 10 jovens adultos se postulam de tal forma. Para Eric Kaufmann [Whiteshift: Populism, Imigration, and the Future of White Majorities, 2019] são as mudanças demográficas e culturais, não as económicas e políticas, a chave para compreender o auge do populismo (nos EUA). Os norte-americanos brancos tem uma descida da esperança média de vida – a taxa de suicídio entre os norte-americanos de meia idade está a aumentar rapidamente -, com a diminuição do seu vínculo a um emprego (raros os que o conseguem manter durante longo tempo o compromisso com um dado empregador), com a ausência “do consolo que advinha da pertença a uma Igreja” (elemento em erosão), ou com a organização que uma vida junto de um sindicato permitia (estes, os sindicatos, em recuo há décadas, seja por via legislativa, quer por acção de poderes fácticos sociais, ou por abandono de trabalhadores, ainda em resultado de uma forte mudança nos sectores de atividade que acolhem um maior número de empregados ao longo das últimas décadas), fontes de sentido para a vida que se dissolvem (tal como o estatuto do trabalho, sobretudo para os não credenciados, que sentem, não raro, que não são respeitados e que o sistema está contra eles). O resultado passa por sobredoses de droga, doença hepática alcoólica e suicídios – as denominadas mortes por desespero (cf. Anne Case e Angus Deaton, Muertes por desesperación y el futuro del capitalismo, Deusto, 2024).
[11] Em 2016, os votantes brancos sem estudos superiores inclinaram-se, claramente, por Donald Trump, sendo que a sua sobrerrepresentação em estados-chave e em termos eleitorais foi determinante na vitória do candidato do Partido Republicano (cf. Ezra Klein, o.c., p.26). De acordo com Andrew Gelman e Pierre-Antoine Kremp “os brancos têm 16% mais de poder por votante do que os negros no Colégio Eleitoral, 28% mais de poder do que os latinos e 57% mais do que aqueles que pertencem à categoria de ‘outros’” (cf. https://www.vox.com/the-big-idea/2016/11/22/13713148/electoral-college-democracy-race-white-voters).
[12] O Partido Democrata e o Partido Republicano dominam as eleições norte-americanas desde 1864. Apesar das cores mencionadas (vermelho e azul), relativas a Partido Republicano e Partido Democrata, respetivamente, os seus símbolos, o elefante, no primeiro dos partidos, e o (pequeno) burro, no segundo dos partidos, são cinzentos, como sublinha Peter Sloterdijk, em Cinzento (Gris, Siruela, 2024). Um investigador em Relações Internacionais como Carlos Poggio entende que, em rigor, atualmente, o Partido Democrata continua a ser, atualmente, um partido, enquanto um movimento político – em torno de Trump – teria capturado o Partido Republicano (procurando ilustrar com a presença dos ex-presidentes Democratas vivos e outras figuras cimeiras na Convenção Democrata e a ausência do único ex-presidente Republicano e dos notáveis da Convenção Republicana). Em realidade, se a estabilidade de uma percentagem esmagadora de Republicanos se constata na sua não mudança de voto pelo facto de o candidato presidencial pelo seu partido ser Donald Trump, também se averba que, este, aceitou quase tudo o que o Partido pretendia no Congresso durante a sua Presidência (Ezra Klein, o.c., p.28). Thomas E. Mann e Norman J. Ornstein [apud. Ezra Klein, p.272], dois dos mais conceituados analistas da vida política norte-americana, consideram que não existe nenhuma ruptura de Trump com o republicanismo (Ornstein argumentou, em 2016, quando a opinião consensualizada era a de que Trump não teria hipóteses, que aquele poderia ganhar o Partido e, depois, o país eleitoral) tal qual ele, desde há décadas, vem sendo praticado (“Trump não representou uma ruptura com este Partido Republicano. Foi a expressão mais autêntica da sua psicologia moderna”, E.Klein, p.274), sendo, ao invés, o corolário do mesmo [“O Partido Republicano tornou-se ideologicamente extremista; desdenhoso do compromisso; imune à persuasão através da compreensão convencional dos factos, à evidência e à ciência; e desdenha da legitimidade do seu adversário político”, Thomas E. Mann e Norman J. Ornstein, in “It’s even…”, 2012]. O Partido Democrata, na leitura de Ezra Klein, moveu-se para a esquerda em relação ao seu posicionamento no tempo de Bill Clinton como Presidente norte-americano, mas manteve-se atado às instituições e aos comportamentos tradicionais”). Note-se, adicionalmente, que três quartos dos republicanos se definem como conservadores e metade dos democratas se representam como progressistas (sendo, aliás, em menor número os que assim se dizem, entre os democratas, dos que se apresentam como moderados). O partidarismo, nos EUA, exprime-se, ainda, sob a forma de a motivação para o voto ser tanto ou mais a ameaça adversária do que o amor próprio partidários (nas eleições de 2016, entre os eleitores que disseram ter votado motivados por um “forte apoio”, Hillary Clinton obteve 53% dos votos; entre aqueles que afirmaram ter votado motivados pela rejeição do candidato do partido oposto, Trump venceu com uma diferença de 11 pontos percentuais). O sectarismo pode ser interpretado da seguinte forma, ainda: dado que o outro lado do espectro partidário é muito/tão mau, não importa muito quem seja o nosso candidato, porque o essencial é o opositor não chegar à Presidência.
[13] Em 1994, 63% dos republicanos e 44% dos democratas tinham o entendimento de que as pessoas em situação de pobreza tinham a vida facilitada, porque podiam obter ajuda estatal sem a prestação de uma contrapartida. Em 2017, 65% dos republicanos continuavam a sufragar tal perspectiva, sendo que esta era, então, subscrita por apenas 18% dos democratas. Nas mesmas respectivas datas vindas de estabelecer como eixos de comparação, no primeiro momento, 32% dos democratas e 30% dos republicanos concordavam que os imigrantes fortaleciam os EUA, enquanto no segundo dos registos 42% dos republicanos e 84% dos democratas aderiam ao postulado vindo de mencionar (Ezra Klein, o.c., p.49). Nota, aqui, para o facto de que a liberalização em matéria imigratória contou, sempre, com uma fracção do Partido Democrata contrária à mesma, entendendo que tal era atentatório dos salários – competição por baixo – dos trabalhadores norte-americanos (nas célebres palavras de Bernie Sanders, uma política de portas abertas favoreceria “os irmãos Koch” – isto é, grandes empresários. Da mesma sorte, um investigador das questões migratórias como Hein de Haas, pontua como, apesar do ruído e coreografia em torno de restrições à imigração, incluindo a ilegal, muitos governos conservadores ou populistas de direita, acabam, na prática, por fechar os olhos a essa realidade, impulsionados por solicitações de grandes empresas/empresários que beneficiam com tal mão de obra - cf. Como funciona realmente a imigração, Temas e Debates, 2024). A mudança na composição demográfica do eleitorado dos partidos democrata e republicano, respectivamente, implica uma mudança na abordagem mais favorável hoje do que há trinta anos, no primeiro dos casos (por exemplo, a importância do sufrágio hispânico na economia do voto democrata), e mais renitente no segundo dos casos (acentuação de uma mensagem de defesa de um passado de completo poder branco que se faz menção de poder restaurar – com o muro, voltaremos ao que sempre fomos). Em 2000, 50% dos republicanos e 52% dos democratas concordavam com a asserção de que não é necessário acreditar em Deus para ser boa pessoa. Em 2017, eram 47% e 64%, respetivamente. Biden votou emenda constitucional para permitir aos estados ignorar Roe vs Wade, em 1982. Isto, depois do programa republicano, em 1976, qualificar o problema do aborto como “uma das questões mais difíceis e controvertidas do nosso tempo”, assumindo a divisão sobre aquele drama no interior do partido. O mesmo número de republicanos e democratas votaria contra o aborto no Congresso. A mesma percentagem, em ambos os partidos, firmava que o aborto devia ser interdito em todos os casos – ou, inversamente também, que devia ser legal em todas as circunstâncias. Reagan chegaria a aumentar impostos, enquanto Clinton combateria o défice orçamental mesmo à custa de despesas sociais e anunciaria o fim de um Estado grande – note-se que constatar tais realidades não é produzir um juízo de valor acerca das mesmas. A exclusão legal de eleitores, tentativa/prática hoje observada no Partido Republicano em diferentes estados, ocorreu, no século XX, também, no Sul dos EUA, por impulso do Partido Democrata do sul (que dominou, no Partido Democrata, no Congresso, entre 1896 e 1932, de modo contundente), com negros espancados ou assassinados para não votarem (discriminação legal combinada com terrorismo racial), lá (sul dos EUA), onde, então, uma real autocracia se impôs. Os democratas, sendo desde sempre a favor da redistribuição de rendimento, não encontravam no sul correligionários que os acompanhassem no que isso significasse de afluência económica aos negros. Só o idealismo de algumas das suas lideranças, por um lado, bem como a desconfiança no Estado, a crença na desregulação, a recusa da redistribuição por parte do Partido Republicano, por outro, levaria, a partir de 1948, o Partido Democrata a ser instrumento na luta pelos direitos civis (afinal, corolário da defesa, de décadas, da redistribuição – empoderamento, por consequência necessária, dos negros, foi, pois, finalmente assumido). Ainda assim, a Lei de Direitos Civis, de 1964, foi aprovada por 80% dos republicanos (mas não o seu presumível, e extremado, candidato presidencial, Barry Goldwater, o que influiu na reputação futura do Partido Republicano neste domínio, vindo aquele a opor-se, nessa viragem política, a tal legislação) e 60% dos democratas na Câmara dos Representantes e Senado, sendo que, em ambas, os Democratas tinham maioria – daí os créditos desta aprovação serem-lhe atribuídos, sendo o maior mérito o rompimento com os democratas do sul, o que custou, de resto, durante anos, eleições em localidades daquela geografia norte-americana. Na perspectiva de Paul Auster, em Banho de sangue americano [Asa, 2024], o sul, última ratio, venceu a batalha de ideias: “não só ganhou a batalha de ideias sobre quem somos e quem devemos ser como nação, como também ganhou a maior parte das eleições presidenciais desde 1968, e mesmo quando os Democratas ganharam (pense-se em Jimmy Carter e Bill Clinton), seguiram o desvio para a direita do país e não fizeram grande pressão em prol do género de reformas promovidas por Roosevelt e Johnson” (p.130).
[14] A inflação pareceu, de facto, ser o elefante na sala (económica) dos Democratas. Até porque, não raro, o valor médio daquela não capta os aumentos em produtos essenciais como ovos, leite e seus derivados. Os preços dos arrendamentos de casa ou o preço das hipotecas subiram acima de dois dígitos. A subida do preço da gasolina foi, igualmente, relevante. Os salários cresceram abaixo da inflação em 2021 e 2022 - mas acima desta em 2023 e 2024. Sem embargo, o antigo vice-presidente da Reserva Federal, Alan Blinder, sustentou que, usando-se rigorosas métricas, os EUA só conseguiram uma recuperação tão suave uma vez nos últimos 60 anos. No início de Setembro, os EUA apresentavam baixa inflação, baixo desemprego, uma indústria em expansão, encontrando-se na vanguarda das tecnologias do futuro com a IA e a edição de genes e com a desigualdade, inclusive, a registar uma pequena diminuição entre 2020 e 2022 (cf. Fareed Zakaria, GPS, 15 de Setembro de 2024, in https://cnnportugal.iol.pt/videos/gps-fareed-zakaria-15-de-setembro-de-2024/66e63b560cf23e044af723cc).
[15] Não são poucos, porém, os testemunhos, incluindo, múltiplos, de diversos antigos membros da Administração Trump que se referem a Donald Trump como um homem narcísico, completamente auto-centrado (Marc Rubio, Ted Cruz, Paul Ryan apenas alguns dos notáveis republicanos que o afirmaram), incapaz de atenção aos dossiers, sem nunca os estudar, jamais escutando os briefings antes perorando, ele, interminavelmente, durante os mesmos, manipulável, através de bajulação, pelos “homens fortes” de autocracias com interesses contrastantes com os dos EUA, confundindo o seu interesse pessoal e empresarial como cargo de Presidente dos EUA, com uma linguagem e uma acção imunes à empatia, mudando, sucessivamente, membros da sua Administração, sem programa (em 2016) e com um processo de decisão caótico, capaz, no limite, de atentar contra a democracia, o Estado de Direito e a Constituição, tornando seguramente dúbia a alegação de que os “checks and balances” são tão fortes nos EUA que nunca permitiriam a emergência de um regime autoritário, como se viu a 6 de Janeiro de 2021, na instigação do assalto ao Capitólio, durante o qual a vida do vice presidente, Mike Pence, entre muitos outros servidores públicos, e um novo Executivo, ficaram em causa – vide, entre muitos outros, os livros de Bob Woodward [Medo, D.Quixote, 2018], Gideon Rachman [A era do homem forte, Vogais, 2022], John Bolton [La habitación donde sucedió, Espasa, 2020] ou Michael Wolf [Fogo e Fúria, Atual, 2018]. Ao nível do documentário, merece atenção o recente trabalho de Mark Wallacy, da ABC, com Retribution: The battle for democracy [o qual, em duas partes, se encontra disponível aqui: https://www.abc.net.au/news/2024-07-15/retribution-%E2%80%94-the-battle-for-democracy/104100874 e https://www.abc.net.au/news/2024-07-23/retribution-%E2%80%94-the-battlegrounds/104128870 ; o documentário foi também emitido, entre nós, pela SicNotícias]. Neste último documentário, convoca-se a atenção para o Projecto 2025, tutelado pela Heritage Foundation, mas agregando mais de 100 instituições de pendor político conservador, como “a sala de máquinas” – como lhe chama o seu diretor e ex-chefe de gabinete de Trump – da futura Administração, seja (desta vez) dotando-a de um programa e uma agenda claras, quer agregando pessoas para uma possível futura (nova) Administração Trump. Sem prejuízo de não ser o programa oficial dessa candidatura, como o não é, a previsão, nas mais de 900 páginas que o compõem, de concentração de mais poder na presidência, de exigência de alinhamento absoluto com o Presidente por parte de futuros servidores públicos ou a eliminação de cerca de um milhão de postos de trabalho públicos fizeram soar alarmes democráticos. Declarações de Trump como a que deu por boa a mera afirmação de Putin de que não interferiu nas eleições de 2016, a de que os imigrantes “não são humanos, são animais”, e que “vêm contaminar o sangue” dos norte-americanos, o seu absoluto conhecimento de que tinha perdido as eleições de 2020 e a tentativa de fazer com que dirigentes do seu partido, em estados decisivos e nos quais a vitória democrata foi por escassa margem, adulterassem os resultados, voltam, aqui, a vibrar como registo muito negativamente impressivo. Fazendo com que as suas ameaças de que vencendo agora, não mais será necessário os seus eleitores voltarem às urnas, de que dará perdões a vários dos assaltantes do Capitólio ou que será “ditador por um dia”, que incentivará a Rússia a invadir países da NATO caso estes não assumam a despesa com a Defesa que lhes compete à luz das regras daquela organização, bem como a alegação de que perseguirá os seus adversários sejam levadas, por muitos, bem a sério. A decisão do Supremo Tribunal sobre acções de Trump como Presidente acresceram aos receios de um “rei acima” do regime democrático. Por todo o simbolismo e poder real de que os EUA se nutrem, uma (potencial) queda, ali, em um regime autocrático, teria, certamente, um efeito de pressão (negativa) sobre as democracias um pouco por todo o mundo. Dito o que o documentário evidencia, igualmente, como o lado “desbocado” de Trump agrada a uma parte do eleitorado norte-americano que percepciona essa “fala” como a do “não político”, mais próximo, pois, do “povo” contra a habitual “artificialidade” do linguajar “de Washington” (das “elites”). Não por acaso, do lado democrata, o candidato a vice-presidente, Tim Walz, provindo de uma localidade rural, pequena, é apresentado como um ex-treinador de futebol, com as suas camisas de flanela genuínas, como “um de nós”, alguém que provém e fala a linguagem do homem comum. Na peça da ABC há, ainda, inclusive por parte de membros de grupos sociais que costumam votar democrata, quem sublinhe que votará, agora, Trump porque a memória económica do tempo daquela presidência (2016-2020) lhe é mais propícia (inflação vs salários, mas, também, a questão das [diferenças entre] realidades e percepções). E nessa peça de mais de 100 minutos documentam-se, ademais, diferenças irredutíveis em matérias como imigração ou aborto, por parte de diferentes norte-americanos e a triste convergência final, entre dois eleitores de diferentes partidos, de que uma guerra civil pode, mesmo, suceder.
[16] Fareed Zakaria chama a atenção para o facto de já em 1987, e apenas na qualidade de promotor imobiliário, Donald Trump, pagando cerca de 100 mil dólares para o efeito, ter publicado, no The New York Times, uma carta aberta ao povo americano, na qual defendia que muitos países viviam, ao nível da Defesa, do esforço dos EUA, sem contribuírem, para tal, como deviam, sustentando, do mesmo passo, uma taxação relativamente às importações, incidindo, aqui, sobretudo, sobre o Japão (na época, como que representando o papel que agora a China comporta no imaginário de rivalidade norte-americano). Ou seja, a defesa de uma política económica proteccionista, por banda de Trump, tem cerca de, pelo menos, 4 décadas. Na actual campanha eleitoral, Trump anunciou que pretende impôr uma taxa de 10% a todos os produtos importados; 60%, no caso da China. Pelo critério do “défice comercial”, que Trump releva como prioritário, as taxas à China – que permaneceram com Biden – foram um falhanço. Desde a data de imposição das taxas, e até hoje, o “défice comercial” (norte-americano face à China) não diminuiu, mas aumentou. Estas medidas, segundo diversos estudos, custaram milhares de milhões de dólares aos consumidores norte-americanos, sem que hajam alterado medidas chinesas. Um estudo do Peterson Institute concluiu que as (novas) taxas, propostas agora por Trump, custariam aos consumidores dos EUA 500 mil milhões de dólares/ano. Ou seja, aumentariam, até, a inflação. Com o Plano Marshall, a seguir à II Guerra Mundial, os EUA perceberam que ao criarem uma zona de estabilidade e prosperidade, estavam, igualmente, a criar uma zona onde, eles mesmos, poderiam prosperar, no que poderia chamar-se de estratégia de “interesse próprio iluminado”, que contrasta com a visão puramente “negra, estreita, egoísta” que Trump propõe (cf. https://www.washingtonpost.com/opinions/2024/08/02/trump-trade-business-economy-ideology/). Sobre a coerência ideológica de Trump, há, contudo, que notar que foi apoiante do Partido Democrata e de programas como Medicare, Planned Parenthood ou uma Segurança Social (com robustez) (cf.Ezra Klein, o.c., p.25). A National Review, uma relevante publicação conservadora, considerava, em 2016, que Trump não era um conservador. Por sua vez, Markus Gabriel, filósofo alemão, considera que Trump se interessa apenas por “lucros, neoliberalismo sem doutrina, porque o neoliberalismo de Trump nem sequer é o de Milton Friedman ou Friedrich Hayek. Não há doutrina, há puros interesses, às vezes criminosos, no caso de Trump, cuja figura é um fenómeno estilo Soprano” (Markus Gabriel entrevistado para Ideas, ElPaís, 15-09-2024).
[17] No notável documentário de Errol Morris sobre o perfil de Steve Bannon, American Dharma (2018), estratega e conselheiro de Trump na sua primeira candidatura presidencial (e que, segundo vários observadores, assim, agora, regressa), Bannon afirma literalmente: “quero transformar os republicanos no partido dos trabalhadores”. Todavia, confrontado pelo realizador/entrevistador com a contradição em se afirmar um populista contra os grandes interesses e, em simultâneo, ser a favor da ausência de limites relativamente a empresas poluidoras (e, portanto, de uma política que beneficia, deliberadamente, corporações e os mais favorecidos), a imagem do seu dedo a passar, permanentemente, o seu lábio sem que haja conseguido responder aquela objecção é um dos registos impressivos de um filme no qual se percebe que Bannon se crê o Falstaff de Henrique V (do Falstaff de Orson Welles), ademais de afirmar que repete, vezes imensas, o célebre dito de Lúcifer no Paraíso Perdido de Milton: “é melhor reinar no Inferno, do que servir no paraíso”.
[18] Ricardo Ferreira Reis, diretor do Centro de Estudos Aplicados da Universidade Católica Portuguesa, tendo vivido durante vários anos nos EUA, chama a atenção para o facto de que em não existindo nos Estados Unidos uma Segurança Social tal quale na generalidade da Europa, os fundos de pensões estarem em Bolsa, e, por isso, aqueles que puderam garantir poupanças para a sua velhice, vêem, por exemplo, ao longo de um ano ou de uma legislatura, as poupanças subir 20, 30 ou 40% na bolsa – ou exatamente o contrário, descerem de forma significativa. Mesmo que um Presidente não tenha, diretamente, a ver com tais variações bolsistas, o facto de estas poderem ser positivas significará, para vários eleitores que a elas estão muito vinculados, uma avaliação positiva do presidente de turno (independentemente de outros items em avaliação; segundo o investigador, factor a ter em conta para se compreender alguma da popularidade de Trump e do seu mandato presidencial (2016-2020) – cf. https://www.youtube.com/watch?v=UnwacAezpUM&t=44s ).
[19] Em todo o caso, de acordo com os dados da Major Cities Chiefs Association, o crime violento (homicídios, violações, roubos, agressões com danos físicos graves) baixou, claramente, nas grandes cidades norte-americanas - das 69 analisadas, em 54 o crime violento baixou; em média, essa baixa foi de 6%, sendo que Colombus, Omaha, Miami e Washington DC experimentaram quedas muito significativas; as 8 com maior número de agressões são Los Angeles, Chicago, Houston, Oklahoma, Minneapolis, Detroit, Phoenix e Memphis) no primeiro semestre de 2024 face ao primeiro semestre de 2023 (cf. La Vanguardia, 18-08-24, p.7).
[20] Paul Auster, Banho de sangue americano, ASA, 2024, p.47.
[21] Ibidem, p.15. Aliás, “carros e armas de fogo são os pilares gémeos da nossa mitologia nacional mais profunda” (p.50). E “os americanos estão tão acostumados à matança diária que os rodeia, que já não lhe prestam atenção, mesmo que os números continuem a aumentar de ano para ano (…) Um novo ritual americano: derramamento de sangue e luto transformados numa série de entretenimentos mórbidos que uma e outra vez nos plantam em frente aos nossos aparelhos de televisão” (pp.87/88). A maioria dos assassínios em massa nos EUA são cometidos por jovens homens e solitários, ocasionalmente de meia idade, não raro mentalmente perturbados, quase nunca por mulheres. Nos últimos 10 anos (anteriores à conclusão da escrita do seu novo livro), Auster constatara a existência de 228 episódios de violência, 30 deles assassinatos em massa, com armas de fogo em escolas e universidades de todo o país. Neste contexto, e “se o problema é haver demasiados homens maus com armas, não seria mais sensato tirar-lhes as armas, em vez de armar os chamados homens bons – que em muitos casos, se não todos, são consideravelmente menos bons – e, por esse meio, eliminar totalmente o problema, pois se os homens maus não tivessem armas, para que precisariam delas os homens bons? (…) A minoria contra o controle de armas tem razão quando diz que a violência armada é causada pelas pessoas irresponsáveis ou destrambelhadas que usam armas, mas dizer que as armas não causam a violência com armas não é menos ridículo do que dizer (…) que os cigarros não causam cancro do pulmão (…) Nem todos os fumadores morrerão de cancro de pulmão e nem todos os detentores de armas de fogo as usarão para se mutilar ou matar, ou ferir ou matar outras pessoas. Mas as pessoas alvejam a tiro pessoas com as suas armas e as pessoas cometem suicídio com armas porque as têm, e quantas mais armas haja para ser compradas e quanto mais pessoas as comprarem, mais pessoas as usarão para se suicidarem ou matarem com elas. Isto não é uma proclamação moral ou política – é uma questão de pura matemática. Distribuam-se caixas de fósforos a vinte crianças pequenas numa festa de anos e há toda a probabilidade de a casa arder antes do fim da festa” (pp.119 e 143).
[22] Ibidem, p.20. No livro de Paul Auster pode colher-se, igualmente, uma síntese do debate jurídico-constitucional norte-americano acerca do porte de arma e, bem assim, uma genealogia do uso de armas - pelas milícias de colonos britânicos a expandirem o seu território, recorrendo à violência relativamente aos povos índios, presentes naqueles territórios há muitas gerações (tal como a formação das primeiras forças policiais nos EUA se fez com base naqueles que integravam patrulhas de escravos nos EUA). O medo atinente ao homicídio aleatório, sem uma causa de exacerbamento emocional e dirigido a alguém com quem não se tem, sequer, qualquer espécie de contencioso, mas preparado friamente, durante meses, matar seja quem for ou aparecer pela frente inculca um generalizado medo visceral, o mesmo sucedendo com a constatação de sempre haver quem pretenda bater recordes de pessoas assassinadas.
[23] Apud. Paul Auster, pp.104-105.
[24] Ezra Klein propõe a reflexão e deliberação a nível local, com maior participação dos cidadãos (de diferentes áreas políticas), assim em diálogo sobre temas tendencialmente com menor carga ideológica e de resolução de questões muito concretas da vida das suas cidades/vilas/aldeias como forma paliativa – porque estrutural identifica questões como emprego e desigualdade social como determinantes para baixar a polarização política - de superar ou mitigar a ausência de permeabilidade entre cidadãos de orientação partidária diversa (note-se como em domínios como financiar o défice fiscal com recurso a dívida como modo de estimular a economia, ou o recurso a seguro de saúde nos termos em que Romney aplicou no seu estado, quando sustentado pelos democratas, levou, de imediato, republicanos a oporem-se mesmo quando, pouco antes, defendiam tais políticas). Á semelhança de vários outros autores, sustenta, igualmente, uma forma diversa da comumente seguida nas nossas comunidades de gerar mandatos, com possibilidade do sorteio entre cidadãos para o desempenho de cargos políticos (cf. Por que estamos polarizados). Por outro prisma, durante o período de pré-campanha eleitoral norte-americana assinalou-se, do ponto de vista comunicacional, que Kamala Harris, mais do que uma grande propensão para o detalhe programático, trouxe uma tentativa de, por contraponto com uma mensagem e postura irada ou zangada de Trump, um tom de alegria e uma disposição de apresentar/passar uma imagem pela positiva/com esperança ao eleitorado [alguns crismaram tais posturas, de modo elogioso ou pejorativo, respectivamente, como a “política da alegria”]. Diversamente, ainda, Paul Krugman assinalaria que Harris é uma “sólida candidata de centro-esquerda”, destacando o desagravamento fiscal em função da natalidade, deduções que no mandato de Biden permitiram reduzir a pobreza infantil. O programa de Harris contempla, também, incentivos fiscais aos construtores e apoios para quem pretenda comprar a primeira casa (Krugman vê no planeamento urbanístico e normas não federais uma séria limitação ao que um Presidente pode alcançar neste âmbito). A candidata democrata propõe-se, ainda, evitar a manipulação de preços nos supermercados (falta o pormenor desta regulação contra os preços abusivos) (cf. https://www.nytimes.com/2024/08/19/opinion/kamala-harris-economic-agenda.html). Registou-se, igualmente, um discurso democrata sem uma mensagem positiva no que ao masculino diz respeito – com a reiteração do tópico da existência, como que exclusiva, de uma “masculinidade tóxica” -, podendo, e as sondagens sugerindo-o, perder muito voto, nomeadamente jovem, masculino (cf. https://cnnportugal.iol.pt/videos/gps-fareed-zakaria-18-de-agosto-de-2024/66c150860cf23ab65535e570 ). No que a diferenças estruturais entre republicanos e democratas diz respeito, porventura será de atentar no que é intentado por alguns de entre os primeiros, como William Barr, procurador-geral sob George W. Bush e Donald Trump, segundos os quais (vide discurso de Barr, em 2019, em Notre Dame) a vida democrática só sob pode prosperar debaixo de um chão religioso (cristão), o qual estaria, segundo aquele agente político, sob ataque dos liberais, há décadas. Um outro observador da vida política norte-americana, com redobrada atenção a quando da sua passagem pela presidência da Assembleia-Geral da ONU, Diogo Freitas do Amaral, deixaria registada, porém, no seu terceiro e último Volume de Memórias Políticas, que em julgando que o homólogo norte-americano do partido que ajudara a fundar era o Partido Republicano, ao assistir diariamente à vida política norte-americana deu-se conta do seu logro, pois o benefício dos mais afluentes e o corte sucessivo em programas para os mais necessitados, em diferentes estados dos EUA por banda de lideranças republicanas, mais não era do que a contradição mais cristalina da Doutrina Social da Igreja Católica, marco no qual vincava rever-se (cf. Mais 35 anos de democracia. Um percurso singular (Memórias Políticas III – 1982-2017), Bertrand, 2019).
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