POLARIZAÇÃO E VIOLÊNCIA POLÍTICA NOS EUA

 
A violência política nos EUA

1.A tentativa de homicídio a Donald Trump durante a pré-campanha eleitoral, voltou a colocar a questão da violência política nos EUA no centro das atenções. E, compulsando-se os registos históricos e estatísticos, o reconhecimento de que a forma preferencial que aquela adquire é a do assassinato presidencial. Um dado ilustra, com contundência, o perigo em que consiste o exercício do cargo de Presidente dos EUA: a probabilidade de se ser assassinado (pelos seus concidadãos) enquanto se é presidente é de 1 em 11. Dezassete presidentes norte-americanos sobreviveram a atentados contra as suas vidas – o que compara com um único PM britânico, Spencer Perceval, a ser assassinado, em 1812; duas tentativas de assassinato na história da Austrália, uma na história do Canadá. A presidência dos EUA é, de tal modo, o trabalho mais perigoso naquele país que na segunda ocupação de maior risco para a vida daqueles que a exercem, a pesca industrial, o rácio de morte em “acidentes laborais” é de 1 em 1000 – e, acrescente-se, a taxa de mortalidade das tropas americanas é de 82 por cem mil. Os EUA gastam nada menos do que um milhão de dólares por dia para manter vivo o seu Presidente (cf. Stephen Marche, “A próxima guerra civil”, Zigurate, 2024, p.75).

2.Em se constatando tal realidade, importa, agora, indagar porque tal sucede. Porque é que o cargo de Presidente dos EUA tem sido um alvo (com finalidade de eliminar quem o exerce) tão recorrente por parte dos seus concidadãos? “A razão para tão elevado número de presidentes dos Estados Unidos assassinados é serem símbolos vivos de unidade nacional que mais nenhum país possuí – ícones com poderes executivos (…) O presidente dos Estados Unidos tem uma aura que mais nenhum servidor do Estado ou monarca possui ou pode possuir. Quando se assassina um presidente, assassina-se uma América que deveria ter existido (…) ‘É a maneira mais rápida de mudar a história’ [agente dos serviços secretos reformado, em declarações a Stephen Marche]”.

3.Se olhada a motivação do atentado centrada no destinatário do mesmo, invertamos, ainda, o ângulo (de análise) e fixemo-nos no perfil/características do agente do crime. Ramón Spaaij, sociólogo que estuda o fenómeno do extremismo político, atem-se ao estado de espírito de quem perpetra (tem perpetrado) atentados desta natureza para notar, naquele(s), uma dimensão pessoal – “uma crise de ligação afectiva aos outros” – e uma, outra, política – “uma crise histórica” como detonadores do seu agir (criminoso), para concluir: “a haver um traço comum [entre os que tentaram colocar termo à vida de diferentes presidentes norte-americanos] será a vontade de pertença, o desejo de transcendência”, isto é, “sentimentos de grandeza e de agravo compõem a mistura tóxica. O assassino sente profundamente que não teve o que merecia, «vendo-se a si mesmo como personagem histórica»”.

4.Muitas vezes se alude a uma “grande polarização”[1] política (e de “valores”) entre os (hodiernos) cidadãos norte-americanos (apenas 7% dos quais são considerados “independentes”, por considerarem votar em partido diverso do qual habitualmente votam, sendo que, de acordo com um estudo do politólogo Corwin Smidt, os que se declaravam independentes entre 2000 e 2004 eram mais estáveis no apoio a um dos partidos do que aqueles que se consideravam partidários convictos entre 1972 e 1976[2]), mas há concretizações, poucas vezes evocadas, que ajudam a ilustrar, de forma impressiva, do que se trata. Um grupo de economistas da Universidade de Washington, por exemplo, na sequência das eleições de 2016, concluiu que os jantares (familiares) do Dia de Acção de Graças nos quais participavam eleitores de partidos diferentes duravam 30 a 50 minutos menos do que aqueles em que os convivas tinham a mesma filiação partidária. Na contabilização destes investigadores de economia, perderam-se, neste âmbito, 34 milhões de horas de diálogo entre pessoas de partidos diferentes. Se, em 1960, 5% dos republicanos e 4% dos democratas afirmavam não quererem que os seus filhos se casassem com um membro de outro partido, em 2010 já eram metade dos republicanos e um terço dos democratas que assim o desejavam. Segundo o Pew Research, 58% dos republicanos têm uma opinião «muito desfavorável» dos democratas – quando eram só 21% em 1994 -, e 55% dos democratas têm uma opinião «muito desfavorável» dos republicanos - contra 17% no mesmo ano (da década de 90 do século passado). Um estudo de 2015 no American Journal of Political Science concluiu que “apoiantes de um partido discriminam apoiantes do partido oposto com uma intensidade que excede a da discriminação racial” (p.87). Não há, já, democratas conservadores, nem, tão pouco, republicanos moderados. O tribalismo não é uma metáfora: “democratas e republicanos agem realmente como tribos, aplicando códigos de pureza aos seus e reservando o ódio para os de fora. Este tribalismo afecta a sociedade como um todo. Insinuou-se na vida económica e na religião tanto quanto nas instituições da justiça e na governação”. O partidarismo como macroidentidade, subsumível e assimilável em um conjunto de micro-identidades. O hiperpartidarismo – consequência, mas, assim, também causa de acentuadas divisões entre norte-americanos; Dan Kahan, Professor de Direito de Yale, supõe, em resposta a Jason Brennan [Contra a democracia, Gradiva, 2017], que (a aposta/preparação de) mais (cidadãos) republicanos e democratas (tornados) epistocratas resultaria, apenas, em cidadãos melhor equipados para defender o seu próprio bando e não em um maior número de pessoas em demanda da verdade e capaz de mudar, potencialmente, a sua posição de partida (tantas vez maior empenho em ter razão do que em buscar a verdade)[3] - como identidade máxima coloca a democracia em causa quando rasura a existência, ou confiança na existência, de árbitros imparciais (a confiança na dimensão liberal da democracia, se quisermos, dado que aquela não é apenas eleitoral e incluiu o Estado de Direito, o respeito pelas regras e vive, também, e muito, de órgãos não eleitos para poder vicejar). Stephen Marche aponta a decisão do Supremo Tribunal de Justiça no caso Bush vs Gore como um elemento detonador e definidor dessa perda de confiança (já em 2018, Mitch McConnell, líder da maioria republicana no Senado, por sua vez, fez da nomeação de um juiz do Supremo Tribunal, um tópico eleitoral[4]) e, no caso de atitudes mais extremadas e reforço da identidade como partidarismo (indica que tal foi) originado nos idos de 2008 (Grande Recessão). Temos, pois, um crescente sectarismo, com partidos cada vez mais homogéneos no seu interior e cada vez mais diferenciados entre si[5]. Além destes factores, Marche aponta a “uma cultura primitiva que encoraja o entusiasmo em detrimento da razão” (sendo que o facto de os eleitores nas primárias serem mais ‘ideológicos’/quase fanatizados, em círculo vicioso, transforma os líderes em produtores de discursos insusceptíveis de qualquer possibilidade de consenso bipartidista…o que inflama, ainda mais, os seus eleitores[6]; e, sublinhe-se de novo, agora com Joe Mathews, aquilo que Vicente Valentim igualmente registara em “O fim da vergonha” [Gradiva, 2024]: “muitos estudos demonstram que as palavras dos políticos fomentam a violência política” [ElPaís, 18-07-2024; aliás, notar-se-ia, aqui, essas palavras são, já, elas mesmas, violência política dado o carácter performativo da linguagem]; no interior dessa cultura em que vivemos, poderemos, hoje, encontrar os algoritmos de redes sociais que estimulam o exacerbamento emocional), à “espectacularidade” como modo de fazer política e ao “ódio como motor da política” nos EUA. Um caldo de cultura que, em definitivo, põe em cheque o institucionalismo: “já não há instituições acima da política – nem o Supremo Tribunal de Justiça[7], nem o FBI, nem o Departamento de Justiça nem os Centros para o Controlo de Doenças (CDC), nem a Presidência. Está em declínio a confiança nas instituições, quaisquer que sejam: chefes religiosos, polícias, empresários, funcionários eleitos, jornalistas[8], professores universitários” (p.100).

5.Quando (o livro) “A próxima guerra civil” saiu, nos EUA, em 2022, o escritor articulista da Esquire, da The New Yorker, do The New York Times ou do The Guardian que o assina, que viajara pelos EUA de lés a lés, a entrevistar dezenas de norte-americanos, empresários e agricultores, agentes de polícia e de justiça, professores e sociólogos, um homem que se define politicamente como centrista (mas que nos EUA, de acordo com o seu testemunho, seria tomado por liberal) colocou um cenário – com que as autoridades estão a lidar e ao qual teve acesso, e cujo desenho, portanto, integra os cálculos dos agentes/dirigentes políticos e policiais; isto é, note-se, cenários ficcionais servem para algumas das mais relevantes previsões para a nossa vida colectiva – de passagem de um conflito civil – que, em termos técnicos, existe, já, nos EUA – a uma guerra civil (“segundo o Centro para o Estudo da Guerra Civil do Peace Research Institute Oslo (PRIO), o critério técnico para definir uma guerra como civil são mil combatentes mortos no decurso de um ano. Na definição de conflito civil, a contagem começa em 25. Nos Estados Unidos, os extremistas antigovernamentais mataram 42 pessoas em 2019, 53 em 2018, 37 em 2017, 72 em 2016, e 70 em 2015. De acordo com esta definição, a América já vive um conflito civil, no limiar de uma guerra civil”, p.13). E, nessa paisagem cujos contornos esboçou, Stephen Marche incluiu um atirador sobre o presidente dos EUA. Ora, esse homicida seria homem, jovem, encontrar-se-ia à margem dos colegas de/na escola, desenquadrado e desadaptado da vida em sociedade (e face ao “inêxito” a partir de critérios sociais ou de uma maioria sociológica, com “pouco a perder”), cuja disciplina favorita seria História (“embora não acreditasse” no que esta dizia). Lê-se a descrição do tipo (ideal) (sobre o qual recaem as suspeitas de um futuro ataque) e parece estarmos a lidar, precisamente, com muitos dos elementos que nos foram dados a quando da caracterização da pessoa (morta pelo FBI) que, há escassos meses, procurou alvejar Donald Trump. E, mais, difícil é discordar do autor quando este profetizava – em realidade, projectava com base no que a ciência e a história permitiam, de algum modo, antecipar – que em chegando o dito atentado, pese palavras de circunstância sobre a necessidade de “cicatrizar feridas”, por banda de dirigentes políticos de topo, de imediato o discurso voltaria à agressividade habitual, e o criminoso – de um atentado a um presidente americano futuro – seria, em rigor, considerado por metade da população “um herói”, enquanto outra metade veria, inversamente, no comandante-em-chefe “um mártir”. O Presidente dos EUA deixou, pois, de ser sinónimo de unidade, antes encarnação de uma determinada América (América, essa, que para metade da população norte-americana é necessário, absolutamente, salvar e, para a outra metade, carece, por tudo, de ser destruída). Nestas batalhas sangrentas, a luta é, com efeito, pelo significado[9]. Um significado que pode detetar-se no contraponto entre um partido democrata que se tornou mais multicultural e um partido republicano mais branco, com as “atitudes raciais” de brancos[10] de ambos os lados do espectro partidário dos Estados Unidos a mudarem relativamente a um passado recente: no dizer de Steven Webster, “durante os anos Reagan-Bush, não havia grande diferença entre as atitudes raciais dos brancos de ambos os partidos. Ao longo das últimas três décadas, o Partido Republicano tornou-se o partido do ressentimento racial, o do «sentimento moral de que os negros violam valores americanos tradicionais como o individualismo e a autonomia» (…) Os republicanos brancos tornaram-se mais intolerantes em relação à crescente diversidade do país. Com os democratas não sucedeu o mesmo. Foi essa a grande mudança” (p.85). Um significado, uma fractura que passa, sim, pela dicotomia cidade-campo (densidade populacional) – “na eleição [intercalar] de 2018, a densidade populacional foi o principal determinante do voto. Nas zonas com menos de 300 pessoas por quilómetro quadrado, 66% votaram no Partido Republicano. Nas regiões onde a densidade era maior, 66% votaram no Partido Democrata. Em 2018, a divisão urbano-rural tornou-se absoluta[11]: já não há distritos congregacionais urbanos nas mãos dos republicanos” (p.173) -, mas, também, e essencialmente, pela promessa de duas (diferentes) utopias: “a América vermelha [republicana] promete um país em que o Governo dá prioridade aos direitos individuais, em que a família tradicional é a pedra basilar da sociedade, em que as pessoas comuns vivem pela fé. A América Azul [democrata] promete um país de ideias arejadas, em que as pessoas podem viver de acordo com os valores que escolhem, sejam eles quais forem, e em que comunidades distintas unem esforços para assegurar um futuro mais racional” (pp.173-174)[12].
Muito interessantemente, em 2013, um grupo de psicólogos britânicos dividiu os Estados Unidos em três “regiões psicológicas” após análises psicométricas em grande escala: Costa Oeste “relaxada e criativa”, com “baixa Extroversão e Afabilidade, muito baixo Neuroticismo e grande Abertura”; parte atlântica central e Nordeste, “temperamental e desinibida”, com “baixa Extroversão, muito pouca Afabilidade e Escrupulosidade, elevado Neuroticismo e Abertura Moderada” e um Sul e Centro “amigável e convencional”, com “níveis relativamente elevados de Extroversão, Afabilidade e Escrupulosidade, Neuroticismo relativamente baixo e muito pouca Abertura”. Poderá ser um contributo adicional – a juntar a factores como educação, riqueza, diversidade racial e religião – para explicar as divisões políticas americanas[13]. No Sul e Centro-Oeste “a posse de armas é muito mais provável” do que no Nordeste ou na costa do Pacífico. Nos primeiros, é muito limitado o acesso a locais onde se pratica o aborto. Os castigos corporais ainda são legais em muitas das escolas daquelas regiões. As igrejas são, ali, muito frequentadas. A percentagem de casamentos homossexuais diminuta. Diferenças que separaram estados onde se votou maioritariamente republicano ou democrata.
Curiosamente, republicanos e democratas que sempre encontramos sentindo-se sitiados na América: “os adolescentes negros em Baltimore e St. Louis sentem-se sob ocupação policial. Os rancheiros no Texas e no Oregon sentem-se ocupados pelo Governo federal” (p.174).
 
6.Nas últimas décadas, nos EUA, assistimos a rebeldes a tentar raptar governadores, a confrontos entre manifestantes e milícias, ao desvanecimento da solidariedade, à paralisia no sistema político (com um sistema de governo do século XVIII) e incapacidade de elaborar políticas públicas, a um grande aumento da desigualdade económica (“todas as sociedades na história da humanidade cujos níveis de desigualdade eram semelhantes aos dos Estados Unidos no século XXI se afundaram em guerras, revoluções ou epidemias. Sem excepções. Não há qualquer precedente histórico de sociedades que tenham evitado a destruição” [p.113]; a redistribuição, quando existe, “mais não consegue do que desacelerar o crescimento da desigualdade”; em sendo eleito, Donald Trump promete tornar definitiva a reforma fiscal que introduziu enquanto presidente e que beneficiou de forma desproporcional e completamente regressiva, sem grande incremento económico, os mais favorecidos, como bem evidenciou Martin Wolf, em “A crise do capitalismo democrático”, Gradiva, 2023) e, com ele, o deslaçamento social, à militarização das forças policiais, à deterioração infra-estrutural (das 616087 pontes dos Estados Unidos, quase 40% delas têm 50 ou mais anos: “o país construiu infra-estruturas que eram verdadeiros milagres e depois não se preocupou com a sua manutenção (…) O custo das obras de reabilitação de pontes ainda por executar ascende a 171 milhares de milhões de dólares. Em 2016, quase 10% das pontes americanas apresentavam deficiências estruturais”, p.29; ora, como sublinhou Fareed Zakaria, no GPS da CNN, e no Washington Post, Biden, ainda com uma presidência por concluir e um completo balanço, pois, por estabelecer, com a aposta em investimentos estatais de grande vulto nas infra-estruturas, na energia, na produção, nos cuidados infantis colocou termo a um absentismo estatal – assente, aliás, em políticas em que o baixar impostos foi a norma -, política(s) prevalecente durante 50 anos, em especial com as reformas fiscais de Reagan, W.Bush e Trump, beneficiando os mais ricos e transformando os EUA num país “de casas de 100 milhões de dólares, de estradas esburacadas e de mais alta taxa de mortalidade infantil de entre os países industrializados”, tendendo, pois, a ser um turning point quanto a esta narrativa também do que dela pode verter para o específico domínio infra-estrutural a que se aludia – vide https://cnnportugal.iol.pt/videos/gps-fareed-zakaria-4-de-agosto-de-2024/66aee9ef0cf28c51602df500; Zakaria criticaria, a propósito da inflação[14], o lançamento excessivo de dinheiro na economia durante a Administração Biden, mas registaria o record de 2 anos com um desemprego abaixo dos 4% ou os 15 milhões de empregos criados (pela economia) durante os mandatos Biden para, apoiando-se, ainda, em Larry Summers, antigo Secretário do Tesouro, que afiançou que “o registo é notável. Acho que nenhuma Administração superou tanto as previsões económicas face ao dia em que chegou ao Governo”; por sua vez, Niall Ferguson, historiador de Stanford, vê na plataforma protecionista e, portanto, avessa ao comércio livre [“com a qual os republicanos só se reconciliaram após a II Guerra Mundial”; mais, só “após a Guerra Fria” os republicanos se teriam tornado completamente favoráveis a liberdade de movimentos de pessoas, capital, comércio”], que Trump representa um regresso às raízes republicanas, à tradição republicana do século XIX [explicitamente, como o fez Trump em entrevista à Bloomberg – vide https://www.bloomberg.com/features/2024-trump-interview/ , após o atentado de que foi alvo, citando William McKinley, o que leva Ferguson a assumir que Trump “é mais do que ego[15], tem uma teoria económica”, ou seja, é proteccionista e vê taxas nas taxas elevadas para produtos importados uma fonte de receitas e um instrumento negocial com outros Estados][16], aquilo que, em parte, diferenciava, então, os republicanos dos democratas do sul, em que políticas desta jaez se manifestavam, assim obliterando posições favoráveis à imigração e mercados completamente livres desde o republicanismo de Reagan – como é que não á um partido contra a globalização, à direita ou à esquerda?, interrogava-se, em 2002, Ferguson, quando foi para os EUA, numa altura em que, dada a entrada, naquele início de século, da China na OMC, muitos empregos de produção se estavam a perder na América. Assim, a plataforma antiglobalização dar-se-á muito mais tarde do que o previsto e encarnada em alguém em que tal não seria expectável, como Trump; neste contexto, Miguel Monjardino, académico especialista em Relações Internacionais, chegará, mesmo, e pelo menos, cremos, de modo contra-intuitivo face à história do último meio século, a escrever [O gambito da dama, Expresso, 26-07-24, p.9] que o partido republicano assentará em uma “coligação populista” com “políticas públicas orientadas para a classe trabalhadora[17], favorável aos sindicatos e hostil às grandes empresas”, ainda que, face a tais proposições, sempre nos interroguemos, e entre muitas outras, como pode, sem embargo, a política fiscal prometida beneficiar tais classes; Viriato Soromenho Marques, embora com visão de mundo muito diversa da de Trump, a propósito da Guerra na Ucrânia e do confessado medo, do Professor de Filosofia, de que aquela alastre até à própria possibilidade de participação portuguesa na mesma [enquanto sua primeira prioridade…a evitar], preferindo, desta sorte, uma paz imperfeita à guerra mais justa, entende que a noção (que lhe parece justificada) de que com o candidato republicano, mesmo que por uma menor generosidade para com a posição ucraniana, o fim da guerra ficaria mais próximo poderia permitir um olhar menos pessimista face à eventual eleição daquele – em uma aproximação que o próprio diria “realista” deste problema, mas que a nós nos parece, mau grado o mérito, reitera-se, da posição de benevolência que assume por quem tem uma mundividência diversa da sua e, bem assim, a muito filosófica atitude de pensar de pernas para o ar, não suficientemente integradora daquela justiça para com aqueles que são vítimas de uma agressão brutal que nos parece necessária, para lá de divergências que poderíamos notar quanto à arguição atinente à genealogia desta guerra ou dos seus considerandos sobre a desigualdade económica e o corrosivo efeito sobre os EUA e como estes são compatíveis, uma vez mais se faz notar, com os planos fiscais a sufragar – cf. https://www.rtp.pt/play/p12659/e784120/grande-entrevista), à emergência das mais paranoicas teorias da conspiração (que “metastizam continuamente no interior do conservadorismo americano”, dos pactos intergalácticos de paz com nações alienígenas à ideia de que os EUA são governados por répteis extraterrestres até ao funcionamento em permanência de uma mão negra no deep state). Desde 2008, “os conservadores americanos preparam-se para uma guerra civil”, tanto intelectualmente como reunindo, literalmente, armas (o governador do Kentucky, em 2016, apelou, mesmo, a uma insurreição sangrenta). Sob a capa de um mesmo emblema partidário pode, com maior ou menor surpresa, descobrir-se o amontoado de grupúsculos mais ou menos sobrepostos, mais ou menos delirantes: “a direita radical é muito mais numerosa e muito mais violenta do que se pensa” (p.37) e, assim, temos “os que contestam os impostos porque acreditam na validade da 14ª Emenda à Constituição (…) O movimento alternativo de direita, a alt-right, exibe um racismo civilizado. O Ku Klux Klan não. Há absolutistas da Segunda Emenda; versões actuais dos milicianos da Guerra da Independência que estavam sempre a postos, os minutemen; rebeldes sagebrush que se opõem ao controlo federal das estepes no Oeste dos EUA; e vigilantes da fronteira. Mesmo entre os patriotas antigovernamentais que são apologistas do orgulho branco há supremacistas brancos, nacionalistas brancos, identitários brancos e neonazis que não são exatamente iguais nas suas motivações ou formas de agir. Muitas destas correntes ideológicas cruzam-se. Não é raro sobreporem-se. Mas nenhuma precisa das outras. (…) Mais do que abraçar uma ideologia coerente ou um conjunto de ideologias, a direita radical oferece um cardápio de sensibilidades à vontade do freguês: orgulho branco (…) inviolabilidade da Segunda Emenda, ódio aos impostos, crença na ilegitimidade do Governo Federal (…). Surgem novas facções mês sim, mês não. Existe um sentimento antigovernamental generalizado – pelo menos num terço do país – que é o esteio destas milícias [há 300 mil pessoas que não fazem a declaração anual de IRS, “por uma questão de princípio”, apesar de tal ser crime][18]. É deste que brotam os extremistas”. Só no que respeita à direita alt-right, existem 11 milhões de norte-americanos que partilham das suas atitudes políticas; o terrorismo de extrema direita é uma séria ameaça nos EUA: “o Center for Strategic and International Studies, uma organização bipartidária, concluiu em 2020 que «o terrorismo de extrema-direita ultrapassou largamente outros tipos de terrorismo, inclusive de redes de extrema-esquerda e de indivíduos inspirados pelo Estado Islâmico e pela Al-Qaeda (…) Os extremistas de direita foram responsáveis por dois terços dos ataques e planos de ataque em 2019 e por mais de 90% entre 1 de Janeiro e 8 de Maio de 2020 (…) Duas organizações neonazis, a divisão Atomwaffen (que pede emprestado o termo alemão para armas atómicas) e A Base, uma Al-Qaeda em versão orgulho branco, promovem o terrorismo enquanto parte de um plano para instituir um etno-Estado após um colapso sistémico dos Estados Unidos”). Neste momento, o grupo “cidadãos soberanos” são a maior preocupação das autoridades. Dando-se o paradoxo de que muitos membros de extrema-direita estarem infiltrados entre os agentes de segurança (entre outras instituições), com estes, a quem incumbe promover a ordem, a desenvolverem, por vezes, atos de terrorismo. Num estudo de 893 incidentes terroristas em solo americano, levado a cabo pelo Center for Strategic and International Studies (CSIS) entre Janeiro de 1994 e Maio de 2020, apenas 22 das 3086 mortes foram causadas por grupos de esquerda (p.52).
Problema especialmente grave, e recorrente, neste contexto, é o atinente à posse e uso de armas por muitos milhões de norte-americanos: “os insurrectos, quando chegarem [para eventual guerra civil], virão armados”. Só em 2020, 17 milhões de norte americanos compraram armas – 40% dos quais fê-lo pela primeira vez. O número de armas nos EUA ultrapassa, aliás, os 400 milhões. Os americanos adquirem 12 mil milhões de cartuchos por ano. Os tiroteios seguem-se com uma constância inaudita – nos últimos três anos, mais de 600 tiroteios de massas ao ano, dois por dia nos EUA. Em realidade, “há 57 vezes mais tiroteios nos EUA do que no conjunto dos restantes países industrializados (…) Em 2017, quase 40 mil americanos perderam a vida em tiroteios – 12 mortes por cada cem mil pessoas, em comparação com 0,3 no Reino Unido e 0,9 na Alemanha” (p.61)[19][e com armas, muitos milhares de norte-americanos suicidam-se, também, com cifras anuais impressionantes, na ordem das vinte mil pessoas, metade dos suicídios anuais nos EUA; somando-se os assassínios por armas de fogo, as mortes causadas por armas das forças policiais, as mortes por acidentes causados por armas de fogo,  a média que resulta é de mais de 100 americanos mortos por balas a cada dia que passa. Nesse mesmo dia, há mais de 200 feridos por armas de fogo – 80 mil por ano][20]. Paul Auster contextualiza estes dados em uma cultura, presente em algumas comunidades dos EUA, na qual as gerações passam o testemunho integrando, na educação da descendência, a dedicação ao tiro “como um dos imperativos fundamentais da virilidade”[21]. Além do mais, outras consequências gravosas, menos vezes elencadas, emergem de tiroteios: “raramente discutimos os feridos, os que sobrevivem às balas e continuam a viver, muitas vezes com devastadoras lesões permanentes: um cotovelo desfeito que torna o braço inútil, uma rótula pulverizada que transforma uma passada normal num coxeio doloroso ou uma cara desfeita remendada pela cirurgia plástica e com uma prótese a fazer de maxilar. Há ainda as vítimas cujos corpos nunca foram tocados pelos tiros, mas que continuam a sofrer as feridas interiores da sua perda – uma irmã estropiada, um irmão com lesões cerebrais, um pai morto”[22].
Bem se compreende, pois, face a esta realidade, o tom de sarcasmo irado, dorido patente no poema[23] de Hilton Obenzinger, incluído em Witness: 2017-2020:
 
Embora [,] ir à igreja e disparar
Embora ir ao cinema e disparar
Embora ir ao festival de música
Embora ir ao supermercado
Embora ir à escola
Embora ir ao aquário e alvejar o vidro
E que as pessoas se afoguem enquanto as alvejamos
E não esqueçamos de alvejar os peixes
Embora ir ao museu e atirar à Arte
E depois alvejar as pessoas que olham para o Picasso
Embora alvejar o Picasso
Está morto, por isso embora ir ao cemitério alvejar
os mortos.
Embora ir aos Palácios de Justiça alvejar todos os juízes
Embora ir ao QG da NRA e alvejar toda a gente
Embora ir à Lua e alvejar a Terra
Embora embebedar-se e disparar
Embora ir ao hospital e alvejar os doentes
Embora tirar a roupa e disparar
Embora alvejar os que estão nus
Embora arranjar uma AR-15 e alvejar as pessoas
que odiamos.
Embora atirar sobre quem amamos
Embora nunca ficar sem balas
Embora nunca ficar sem espingardas metralhadoras
automáticas.
Embora arranjar um camião de lança-granadas
Oxalá tivéssemos tanques e mísseis
Embora disparar enquanto o tiroteio dura
Tanto que alvejar e tão pouco tempo
Alvejemos o leve vento calmo
Que atravessa os nossos corações
E matemo-lo de vez
Embora ir à Igreja e disparar.
 
Mais de 20% do país, mais de 60 milhões de norte-americanos, acreditam que a violência pode ser necessária para se atingirem (determinados) objectivos políticos (ainda que as ferramentas mais habituais de violência política sejam o assédio e as ameaças).  
O reforço do poder executivo, a imunidade presidencial por atos no exercício do cargo, um poder judicial que põe travão à devida punição a um ataque brutal à democracia como o assalto ao Capitólio de 6 de Janeiro de 2021 [inquéritos de opinião demonstraram que 45% dos republicanos se reviram naquele ataque] – passando a mensagem de que a violência é um meio legítimo para se alcançar o poder e, no pior de dois mundos, que não há nada a fazer em termos institucionais para travar a barbárie, sendo necessário agir por próprias mãos (Rachel Kleinfeld, ElPaís, 20-07-2024) - são elementos outros que favorecem a conflitualidade civil nos EUA (que, nas palavras de Marche, “estão a acabar” e “já não funcionam como nação”), levando alguns a pensar, inclusivamente, em tempo de separatismos, que a secessão poderia ser o menor dos males (ainda que para que tal se efectivasse necessário seja sempre responder a incómodas questões como de que forma se partilharia a dívida nacional (?), se a dupla nacionalidade seria permitida (?), o que aconteceria às Forças Armadas (?), etc).
A desigualdade económica, a seca e a vulnerabilidade da propriedade são constrangimentos muito consideráveis nos EUA, mas, em qualquer dos casos, seria, ainda, possível, estes, hoje, através dos seus dirigentes, “porem em prática um sistema eleitoral moderno, restaurarem a legitimidade dos tribunais, reformarem as forças policiais, extirparem o terrorismo doméstico, alterarem o Código Fiscal de modo a atacar a desigualdade, prepararem as suas cidades e a sua agricultura para os efeitos das alterações climáticas, regularem e controlarem os mecanismos da violência”. Sendo missão que se afigura muito delicada e não demasiado provável de efectivar como se vem de observar - mas “a extrema generosidade do Plano Marshall na Europa não tinha precedentes: para qualquer outro povo, em qualquer outra época, a ideia de reconstruir a economia de um inimigo [ou de alguns países não Aliados] que o tinha tentado aniquilar seria considerada insana”, p.212 -, seria agenda por certo muito mobilizadora para a próxima presidência[24].

Pedro Miranda
 
 
[1] Luís Miller, no Prólogo à edição espanhola de “Por que estamos polarizados” (Capitán Swing, 2021), de Ezra Klein, distingue, no multifacetado fenómeno da polarização – aumento da tensão entre os dois extremos do espectro político -, três dimensões naquela presentes: uma polarização afectiva (partidarismo ou sectarismo, com crescente afeição para com o partido e líderes co que o cidadão se identifica e crescente hostilidade para com aqueles em que não se reconhece), uma polarização social (segregação ideológica social) e uma polarização territorial (segregação ideológica espacial). Nestes últimos dois pólos, regista-se que questões como os gostos/interesses (o café latte seria próprio de progressistas, por exemplo; eleitores republicanos preferem casas grandes e com a Escola a alguma distância de casa, os democratas optam por casas mais pequenas e Escola mais perto de casa), estilos de vida (ouvir música country e andar num SUV seria típico de conservadores; andar de bicicleta e ter uma alimentação ecológica reservado a progressistas) e os lugares de residência (áreas rurais a votarem nos conservadores, áreas urbanas a sufragarem progressistas) tendem a separar eleitores de um lado e do outro, respectivamente. Ao concentrarem-se no mesmo espaço, eleitores, comungando das mesmas afeições, gostos, interesses, estilos de vida tendem, também, a reforçar opiniões/posições sobre cidadãos com vínculos diversos dos seus e a distorcer e caricaturar esses mesmos seus compatriotas. Até a liga de futebol americano quando, em homenagem a George Floyd, um conjunto de jogadores ajoelharam, antes do início dos respectivos jogos, se tornou politizada e partidarizada (desde então, Trump e os republicanos denegriram aquele campeonato, passando os democratas a tê-lo por interpretado por pessoas-jogadores com espírito crítico e consciência bastantes). Tais processos são, adicionalmente, acelerados pela crescente individualização introduzida pela digitalização da vida quotidiana. O espaço público reduz-se e corrobora-se o distanciamento e hostilidade entre grupos sociais. Um ponto relevante, e muito discutido neste âmbito, é o de saber se os grandes partidos norte-americanos estão simetricamente polarizados. Aqui, Ezra Klein fala em uma “polarização assimétrica”, assacando especiais responsabilidades, ainda que sem o exclusivo das mesmas, ao partido republicano. A questão é que, por definição, a polarização implica diferentes pólos e, uma vez desencadeada, parece não fornecer demasiados estímulos para nenhum dos partidos a travarem. Da polarização, todavia, não se segue necessariamente o extremismo ideológico (a importância do partido é tal que candidatos por este podem ter incentivo a não dizer coisas demasiado disruptivas – embora, acrescentamos aqui, Trump não seja um bom exemplo disso - e a tentativa de assassinato deste a completa exemplificação extremista). Klein chama a atenção para o facto de a “política do consenso” - portanto, não polarizada - que vigorou até aos anos 60 estribava-se em acordos como os de votar contra leis anti-linchamento, ou deixar fora da Segurança Social a maioria dos afro-americanos, ou seja, era, então (até meados de 60), afinal, muito mais extremista ideologicamente o sistema do que hoje. De resto, uma era com Joseph McCarthy e a questão do Vietname, os assassinatos políticos, nunca poderia ser evocada como exemplo de moderação. E a alternativa à polarização não é, muitas vezes, o consenso, mas a repressão.
[2] Cf. Ezra Klein, o.c., p.43.
[3] Quem nos garante que, ainda que alerta para o enviesamento, nos consigamos eximir de um cognitivismo (politicamente) motivado? Será tal desiderato, furtar-se ao cognitivismo motivado, possível de alcançar? Em realidade, a filósofa francesa Myriam Revault d’Allones convoca-nos a repensar a natureza da política para, no limite, superar a distinção doxa/epistéme (Platão), recuperando (de algum modo, com Aristóteles, a opinião) a inevitabilidade de a verdade em política não ser de tipo científico e, mau grado a necessidade e o bem fundado da escuta de especialistas, de conhecimento dos factos, de aturada atenção aos argumentos trata-se, no limite, na deliberação e na escolha de cada cidadão de uma dada opção entre diferentes entendimentos sobre o/do que é melhor para a cidade (cf. A verdade frágil, Edições 70, 2020). Com a proliferação, nas últimas décadas, de canais por cabo e, nestes, de canais de notícias e dedicados à vida política, julgaram, alguns, por outro prisma, que mais pessoas se encontrariam informadas/conhecedoras e politizadas (sensíveis à vida da polis). Sucedeu, contudo, que a miríade de canais se estendeu às mais variadas áreas de atividade ou interesse humanos, do que resultou uma fragmentação de públicos/audiências, pelo que os que queriam saber mais da polis ficaram a conhecer mais e os que não queriam ficaram, em realidade, a saber menos (do que no tempo dos telejornais sem concorrência do entretenimento. Quando o modelo de negócio mediático-televisivo passou a ser o da concorrência tendencialmente infinita, os canais de notícias, por sua vez, para conseguirem sobreviver/aceder a (parte da) economia da atenção (do público) sobrelevam o mais bizarro, promovendo, assim, personalidades e plataformas políticas que se destacam pela extravagância (em afirmações e comportamentos que procurem chocar, nomeadamente).
[4] Para uma biografia de Mitch McConnell e a questão do Supremo Tribunal, veja-se, de Michael Kirk, McConnel, o Partido Republicano e o Tribunal, in https://www.rtp.pt/play/p13782/e789791/mcconnell-o-partido-republicano-e-o-tribunal.
[5] Até metade do século XX, os Partidos Republicano e Democrata, respectivamente, apresentavam-se como plataformas eleitorais não demasiado ideologizadas, procurando, com tal postura, evitar a radicalização – a política não como modo de dar expressão às fracturas existentes na sociedade, mas visando acalmá-las - e enfrentamento que culminaram na guerra da secessão (Ezra Klein escreve, mesmo, que, até aos anos 60, ser republicano era ser republicano. Uma tautologia isenta de princípios, significados e perspectivas. Um republicano não era, necessariamente, um conservador e um democrata não era, necessariamente, um progressista. O republicano Nixon, por exemplo, propôs, em 1959, ainda na qualidade de vice-presidente, um rendimento mínimo e um plano sanitário mais ambicioso do que, várias décadas volvidas, e com os democratas no poder executivo, o denominado Obamacare. Na eleição entre Ford e Carter apenas 54% dos eleitores consideravam o Partido Republicano mais conservador do que o Democrata). Seria a partir dos anos 60 que a homogeneidade nos partidos se irá reforçando e blocos de eleitores como negros e hispânicos, liberais culturais e urbanos passam a tender a votar nos Democratas e evangélicos e pessoas que vivem em zonas rurais propendem para o sufrágio republicano. Quando a separação entre eleitores é tão marcada, a possibilidade de persuasão uma miragem e, por consequência, a estratégia (passa a ser a) de emocionar e/para mobilizar o próprio eleitorado (a ir votar) torna-se nuclear. Sem embargo, e em outro ângulo de análise, publicações recentes como American Affective Polarization in Comparative Perspective, de Noam Gidron, James Adams e Will Horne, tendem a procurar evidenciar como a maioria dos estudos sobre polarização política, a nível internacional, indicam que esta é maior no sul e leste europeus – que foram objecto de transformações políticas mais profundas e recentes – do que nos EUA (ao contrário do que a aceleração desta, na América, parece sugerir em termos globais) (cf. Luís Miller, Prólogo a Por que estamos polarizados, de Ezra Klein).
[6] Como explicaram Daniel Ziblatt e Steven Levitsky, em Como morrem as democracias [Vogais, 2018], quando os principais partidos norte-americanos decidiam quem eram os seus candidatos através de Convenção, os delegados eleitos conheciam os que pretendiam alçar-se à Presidência como Mayor, no Congresso ou em outros fóruns de índole próxima, pelo que aquela experiência servia de filtro que evitaria a eleição de arrivistas ou figuras excêntricas à adesão a uma inscrição numa tradição. Em 2016, menos de 30% dos potenciais eleitores em primárias foi depositar o seu voto e, ainda assim, tratou-se de uma participação eleitoral acima da média.
[7] Nos anos 50 e 60, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, que são nomeados vitaliciamente, tinham “preconceitos ideológicos relativamente moderados” e inclusive nos anos 90 votavam regularmente “de formas ideologicamente imprevisíveis” (Ezra Klein, o.c., p.249). Agora é muito menos assim.
[8] De entre um conjunto de 37 media norte-americanos (ou em língua inglesa), os eleitores republicanos, em estudos sobre a matéria, referem acreditar e seguir apenas sete destes (quase todos, muito pouco seguidores das melhores práticas jornalísticas e muito facciosos em termos partidários. Entre os eleitores democratas, atribui-se credibilidade e segue-se um conjunto muito mais plural de media, da The Economist ao The New York Times, da CNN ao The Wall Sreet Journal. Este último periódico apresenta-se como um dos raros, de entre os preferidos, pelos eleitores republicanos que procuram respeitar as melhore práticas jornalísticas (independentemente do seu ponto de partida de visão do mundo). O peso desproporcional, no Colégio Eleitoral, de Estados rurais – sendo uma das propostas de Klein o fim do Colégio eleitoral, sem o qual crê que os EUA não são uma democracia; ao nível do voto popular, o Partido Republicano perdeu 6 das últimas 7 eleições, mas não no que isso resultou de Presidentes eleitos -, leva a uma proposta para um eleitorado muito mais homogéneo no Partido Republicano do que no Democrata. E, desta forma, uma ausência de necessidade/vontade de chegar a outros públicos. Por exemplo, grupos sociais nos quais, tradicionalmente, a ancestralidade, o respeito pelas hierarquias é muito marcante são alienados pelos Republicanos com um discurso que os toma por estrangeiros e fora da cultura que diz representar, embora, á partida, se pudessem postular como afins de um ideário de tipo conservador.
[9] É neste sentido e contexto que, na perspectiva de Ezra Klein, ninguém, nos EUA, se encontra ao abrigo da “política de identidade” – que, assim, é tida, pelo autor, não, exclusivamente, como a defesa de causas de grupos (historicamente) marginalizados, mas como a vinculação emocional forte, exacerbada, sectária, do cidadão a plataformas políticas nas quais considera sustentados os seus valores/interesses/visão de mundo/modo de viver (sendo que a identidade ou identidades também contribuem, elas mesmas, para forjar uma visão de mundo). O “ato de escolher um partido é o ato de eleger em quem confiamos para transformar os nossos valores em juízos políticos” [Ezra Klein]. Uma das principais lutas durante as campanhas eleitorais consiste, de resto, em procurar induzir à priorização, em um cidadão, de um dos múltiplos vínculos da sua identidade plural – por exemplo, James irá votar na sua condição de trabalhador não bem remunerado nem bem tratado no seu emprego, ou como habitante do interior negligenciado pela elite liberal? A prioridade que James, consciente ou inconscientemente, der a um destes vínculos poderá determinar o voto (em diferentes partidos). Quanto mais implicados na política, quanto mais politizados, menos nos questionamos ‘o que ganho com cada programa partidário?’ e mais ‘o que é que a minha escolha eleitoral diz acerca de quem sou?’ - anotam alguns estudiosos do fenómeno político.
[10] Hoje, nos EUA, a idade mais comum de um branco é a de 58 anos, para um asiático é a de 29 anos, para os afroamericanos é a de 27 anos e para os hispânicos é a de onze anos [Jed Kolko, citado por Ezra Klein, 2021, p.146]. Na década de 70 do século XX, a população norte-americana nascida no estrangeiro era inferior a 5%; atualmente é de cerca de 14% e, em 2060, calcula-se que andará pelos 17%. De entre as mudanças na demografia e na estrutura da sociedade norte-americana, sublinha-se que 56% dos estudantes universitários são mulheres, tendo, estas, oito pontos percentuais mais de possibilidades do que os homens de possuírem um título académico aos 29 anos. Em 2018, pela primeira vez, os norte americanos que diziam não ter religião superavam os que se afirmavam católicos ou evangélicos. 7 em cada 10 anciãos norte-americanos afirmam-se cristãos, enquanto apenas 3 em 10 jovens adultos se postulam de tal forma. Para Eric Kaufmann [Whiteshift: Populism, Imigration, and the Future of White Majorities, 2019] são as mudanças demográficas e culturais, não as económicas e políticas, a chave para compreender o auge do populismo (nos EUA). Os norte-americanos brancos tem uma descida da esperança média de vida – a taxa de suicídio entre os norte-americanos de meia idade está a aumentar rapidamente -, com a diminuição do seu vínculo a um emprego (raros os que o conseguem manter durante longo tempo o compromisso com um dado empregador), com a ausência “do consolo que advinha da pertença a uma Igreja” (elemento em erosão), ou com a organização que uma vida junto de um sindicato permitia (estes, os sindicatos, em recuo há décadas, seja por via legislativa, quer por acção de poderes fácticos sociais, ou por abandono de trabalhadores, ainda em resultado de uma forte mudança nos sectores de atividade que acolhem um maior número de empregados ao longo das últimas décadas), fontes de sentido para a vida que se dissolvem (tal como o estatuto do trabalho, sobretudo para os não credenciados, que sentem, não raro, que não são respeitados e que o sistema está contra eles). O resultado passa por sobredoses de droga, doença hepática alcoólica e suicídios – as denominadas mortes por desespero (cf. Anne Case e Angus Deaton, Muertes por desesperación y el futuro del capitalismo, Deusto, 2024).
[11] Em 2016, os votantes brancos sem estudos superiores inclinaram-se, claramente, por Donald Trump, sendo que a sua sobrerrepresentação em estados-chave e em termos eleitorais foi determinante na vitória do candidato do Partido Republicano (cf. Ezra Klein, o.c., p.26). De acordo com Andrew Gelman e Pierre-Antoine Kremp “os brancos têm 16% mais de poder por votante do que os negros no Colégio Eleitoral, 28% mais de poder do que os latinos e 57% mais do que aqueles que pertencem à categoria de ‘outros’” (cf. https://www.vox.com/the-big-idea/2016/11/22/13713148/electoral-college-democracy-race-white-voters).
[12] O Partido Democrata e o Partido Republicano dominam as eleições norte-americanas desde 1864. Apesar das cores mencionadas (vermelho e azul), relativas a Partido Republicano e Partido Democrata, respetivamente, os seus símbolos, o elefante, no primeiro dos partidos, e o (pequeno) burro, no segundo dos partidos, são cinzentos, como sublinha Peter Sloterdijk, em Cinzento (Gris, Siruela, 2024). Um investigador em Relações Internacionais como Carlos Poggio entende que, em rigor, atualmente, o Partido Democrata continua a ser, atualmente, um partido, enquanto um movimento político – em torno de Trump –  teria capturado o Partido Republicano (procurando ilustrar com a presença dos ex-presidentes Democratas vivos e outras figuras cimeiras na Convenção Democrata e a ausência do único ex-presidente Republicano e dos notáveis da Convenção Republicana). Em realidade, se a estabilidade de uma percentagem esmagadora de Republicanos se constata na sua não mudança de voto pelo facto de o candidato presidencial pelo seu partido ser Donald Trump, também se averba que, este, aceitou quase tudo o que o Partido pretendia no Congresso durante a sua Presidência (Ezra Klein, o.c., p.28). Thomas E. Mann e Norman J. Ornstein [apud. Ezra Klein, p.272], dois dos mais conceituados analistas da vida política norte-americana, consideram que não existe nenhuma ruptura de Trump com o republicanismo (Ornstein argumentou, em 2016, quando a opinião consensualizada era a de que Trump não teria hipóteses, que aquele poderia ganhar o Partido e, depois, o país eleitoral) tal qual ele, desde há décadas, vem sendo praticado (“Trump não representou uma ruptura com este Partido Republicano. Foi a expressão mais autêntica da sua psicologia moderna”, E.Klein, p.274), sendo, ao invés, o corolário do mesmo [“O Partido Republicano tornou-se ideologicamente extremista; desdenhoso do compromisso; imune à persuasão através da compreensão convencional dos factos, à evidência e à ciência; e desdenha da legitimidade do seu adversário político”, Thomas E. Mann e Norman J. Ornstein, in “It’s even…”, 2012]. O Partido Democrata, na leitura de Ezra Klein, moveu-se para a esquerda em relação ao seu posicionamento no tempo de Bill Clinton como Presidente norte-americano, mas manteve-se atado às instituições e aos comportamentos tradicionais”). Note-se, adicionalmente, que três quartos dos republicanos se definem como conservadores e metade dos democratas se representam como progressistas (sendo, aliás, em menor número os que assim se dizem, entre os democratas, dos que se apresentam como moderados).  O partidarismo, nos EUA, exprime-se, ainda, sob a forma de a motivação para o voto ser tanto ou mais a ameaça adversária do que o amor próprio partidários (nas eleições de 2016, entre os eleitores que disseram ter votado motivados por um “forte apoio”, Hillary Clinton obteve 53% dos votos; entre aqueles que afirmaram ter votado motivados pela rejeição do candidato do partido oposto, Trump venceu com uma diferença de 11 pontos percentuais). O sectarismo pode ser interpretado da seguinte forma, ainda: dado que o outro lado do espectro partidário é muito/tão mau, não importa muito quem seja o nosso candidato, porque o essencial é o opositor não chegar à Presidência.
[13] Em 1994, 63% dos republicanos e 44% dos democratas tinham o entendimento de que as pessoas em situação de pobreza tinham a vida facilitada, porque podiam obter ajuda estatal sem a prestação de uma contrapartida. Em 2017, 65% dos republicanos continuavam a sufragar tal perspectiva, sendo que esta era, então, subscrita por apenas 18% dos democratas. Nas mesmas respectivas datas vindas de estabelecer como eixos de comparação, no primeiro momento, 32% dos democratas e 30% dos republicanos concordavam que os imigrantes fortaleciam os EUA, enquanto no segundo dos registos 42% dos republicanos e 84% dos democratas aderiam ao postulado vindo de mencionar (Ezra Klein, o.c., p.49). Nota, aqui, para o facto de que a liberalização em matéria imigratória contou, sempre, com uma fracção do Partido Democrata contrária à mesma, entendendo que tal era atentatório dos salários – competição por baixo – dos trabalhadores norte-americanos (nas célebres palavras de Bernie Sanders, uma política de portas abertas favoreceria “os irmãos Koch” – isto é, grandes empresários. Da mesma sorte, um investigador das questões migratórias como Hein de Haas, pontua como, apesar do ruído e coreografia em torno de restrições à imigração, incluindo a ilegal, muitos governos conservadores ou populistas de direita, acabam, na prática, por fechar os olhos a essa realidade, impulsionados por solicitações de grandes empresas/empresários que beneficiam com tal mão de obra - cf. Como funciona realmente a imigração, Temas e Debates, 2024). A mudança na composição demográfica do eleitorado dos partidos democrata e republicano, respectivamente, implica uma mudança na abordagem mais favorável hoje do que há trinta anos, no primeiro dos casos (por exemplo, a importância do sufrágio hispânico na economia do voto democrata), e mais renitente no segundo dos casos (acentuação de uma mensagem de defesa de um passado de completo poder branco que se faz menção de poder restaurar – com o muro, voltaremos ao que sempre fomos). Em 2000, 50% dos republicanos e 52% dos democratas concordavam com a asserção de que não é necessário acreditar em Deus para ser boa pessoa. Em 2017, eram 47% e 64%, respetivamente. Biden votou emenda constitucional para permitir aos estados ignorar Roe vs Wade, em 1982. Isto, depois do programa republicano, em 1976, qualificar o problema do aborto como “uma das questões mais difíceis e controvertidas do nosso tempo”, assumindo a divisão sobre aquele drama no interior do partido. O mesmo número de republicanos e democratas votaria contra o aborto no Congresso. A mesma percentagem, em ambos os partidos, firmava que o aborto devia ser interdito em todos os casos – ou, inversamente também, que devia ser legal em todas as circunstâncias. Reagan chegaria a aumentar impostos, enquanto Clinton combateria o défice orçamental mesmo à custa de despesas sociais e anunciaria o fim de um Estado grande – note-se que constatar tais realidades não é produzir um juízo de valor acerca das mesmas. A exclusão legal de eleitores, tentativa/prática hoje observada no Partido Republicano em diferentes estados, ocorreu, no século XX, também, no Sul dos EUA, por impulso do Partido Democrata do sul (que dominou, no Partido Democrata, no Congresso, entre 1896 e 1932, de modo contundente), com negros espancados ou assassinados para não votarem (discriminação legal combinada com terrorismo racial), lá (sul dos EUA), onde, então, uma real autocracia se impôs. Os democratas, sendo desde sempre a favor da redistribuição de rendimento, não encontravam no sul correligionários que os acompanhassem no que isso significasse de afluência económica aos negros. Só o idealismo de algumas das suas lideranças, por um lado, bem como a desconfiança no Estado, a crença na desregulação, a recusa da redistribuição por parte do Partido Republicano, por outro, levaria, a partir de 1948, o Partido Democrata a ser instrumento na luta pelos direitos civis (afinal, corolário da defesa, de décadas, da redistribuição – empoderamento, por consequência necessária, dos negros, foi, pois, finalmente assumido). Ainda assim, a Lei de Direitos Civis, de 1964, foi aprovada por 80% dos republicanos (mas não o seu presumível, e extremado, candidato presidencial, Barry Goldwater, o que influiu na reputação futura do Partido Republicano neste domínio, vindo aquele a opor-se, nessa viragem política, a tal legislação) e 60% dos democratas na Câmara dos Representantes e Senado, sendo que, em ambas, os Democratas tinham maioria – daí os créditos desta aprovação serem-lhe atribuídos, sendo o maior mérito o rompimento com os democratas do sul, o que custou, de resto, durante anos, eleições em localidades daquela geografia norte-americana. Na perspectiva de Paul Auster, em Banho de sangue americano [Asa, 2024], o sul, última ratio, venceu a batalha de ideias: “não só ganhou a batalha de ideias sobre quem somos e quem devemos ser como nação, como também ganhou a maior parte das eleições presidenciais desde 1968, e mesmo quando os Democratas ganharam (pense-se em Jimmy Carter e Bill Clinton), seguiram o desvio para a direita do país e não fizeram grande pressão em prol do género de reformas promovidas por Roosevelt e Johnson” (p.130).
[14] A inflação pareceu, de facto, ser o elefante na sala (económica) dos Democratas. Até porque, não raro, o valor médio daquela não capta os aumentos em produtos essenciais como ovos, leite e seus derivados. Os preços dos arrendamentos de casa ou o preço das hipotecas subiram acima de dois dígitos. A subida do preço da gasolina foi, igualmente, relevante. Os salários cresceram abaixo da inflação em 2021 e 2022 - mas acima desta em 2023 e 2024. Sem embargo, o antigo vice-presidente da Reserva Federal, Alan Blinder, sustentou que, usando-se rigorosas métricas, os EUA só conseguiram uma recuperação tão suave uma vez nos últimos 60 anos. No início de Setembro, os EUA apresentavam baixa inflação, baixo desemprego, uma indústria em expansão, encontrando-se na vanguarda das tecnologias do futuro com a IA e a edição de genes e com a desigualdade, inclusive, a registar uma pequena diminuição entre 2020 e 2022 (cf. Fareed Zakaria, GPS, 15 de Setembro de 2024, in https://cnnportugal.iol.pt/videos/gps-fareed-zakaria-15-de-setembro-de-2024/66e63b560cf23e044af723cc).
[15] Não são poucos, porém, os testemunhos, incluindo, múltiplos, de diversos antigos membros da Administração Trump que se referem a Donald Trump como um homem narcísico, completamente auto-centrado (Marc Rubio, Ted Cruz, Paul Ryan apenas alguns dos notáveis republicanos que o afirmaram), incapaz de atenção aos dossiers, sem nunca os estudar, jamais escutando os briefings antes perorando, ele, interminavelmente, durante os mesmos, manipulável, através de bajulação, pelos “homens fortes” de autocracias com interesses contrastantes com os dos EUA, confundindo o seu interesse pessoal e empresarial como cargo de Presidente dos EUA, com uma linguagem e uma acção imunes à empatia, mudando, sucessivamente, membros da sua Administração, sem programa (em 2016) e com um processo de decisão caótico, capaz, no limite, de atentar contra a democracia, o Estado de Direito e a Constituição, tornando seguramente dúbia a alegação de que os “checks and balances” são tão fortes nos EUA que nunca permitiriam a emergência de um regime autoritário, como se viu a 6 de Janeiro de 2021, na instigação do assalto ao Capitólio, durante o qual a vida do vice presidente, Mike Pence, entre muitos outros servidores públicos, e um novo Executivo, ficaram em causa – vide, entre muitos outros, os livros de Bob Woodward [Medo, D.Quixote, 2018], Gideon Rachman [A era do homem forte, Vogais, 2022], John Bolton [La habitación donde sucedió, Espasa, 2020] ou Michael Wolf [Fogo e Fúria, Atual, 2018]. Ao nível do documentário, merece atenção o recente trabalho de Mark Wallacy, da ABC, com Retribution: The battle for democracy [o qual, em duas partes, se encontra disponível aqui: https://www.abc.net.au/news/2024-07-15/retribution-%E2%80%94-the-battle-for-democracy/104100874 e https://www.abc.net.au/news/2024-07-23/retribution-%E2%80%94-the-battlegrounds/104128870 ; o documentário foi também emitido, entre nós, pela SicNotícias]. Neste último documentário, convoca-se a atenção para o Projecto 2025, tutelado pela Heritage Foundation, mas agregando mais de 100 instituições de pendor político conservador, como “a sala de máquinas” – como lhe chama o seu diretor e ex-chefe de gabinete de Trump – da futura Administração, seja (desta vez) dotando-a de um programa e uma agenda claras, quer agregando pessoas para uma possível futura (nova) Administração Trump. Sem prejuízo de não ser o programa oficial dessa candidatura, como o não é, a previsão, nas mais de 900 páginas que o compõem, de concentração de mais poder na presidência, de exigência de alinhamento absoluto com o Presidente por parte de futuros servidores públicos ou a eliminação de cerca de um milhão de postos de trabalho públicos fizeram soar alarmes democráticos. Declarações de Trump como a que deu por boa a mera afirmação de Putin de que não interferiu nas eleições de 2016, a de que os imigrantes “não são humanos, são animais”, e que “vêm contaminar o sangue” dos norte-americanos, o seu absoluto conhecimento de que tinha perdido as eleições de 2020 e a tentativa de fazer com que dirigentes do seu partido, em estados decisivos e nos quais a vitória democrata foi por escassa margem, adulterassem os resultados, voltam, aqui, a vibrar como registo muito negativamente impressivo. Fazendo com que as suas ameaças de que vencendo agora, não mais será necessário os seus eleitores voltarem às urnas, de que dará perdões a vários dos assaltantes do Capitólio ou que será “ditador por um dia”, que incentivará a Rússia a invadir países da NATO caso estes não assumam a despesa com a Defesa que lhes compete à luz das regras daquela organização, bem como a alegação de que perseguirá os seus adversários sejam levadas, por muitos, bem a sério. A decisão do Supremo Tribunal sobre acções de Trump como Presidente acresceram aos receios de um “rei acima” do regime democrático. Por todo o simbolismo e poder real de que os EUA se nutrem, uma (potencial) queda, ali, em um regime autocrático, teria, certamente, um efeito de pressão (negativa) sobre as democracias um pouco por todo o mundo. Dito o que o documentário evidencia, igualmente, como o lado “desbocado” de Trump agrada a uma parte do eleitorado norte-americano que percepciona essa “fala” como a do “não político”, mais próximo, pois, do “povo” contra a habitual “artificialidade” do linguajar “de Washington” (das “elites”). Não por acaso, do lado democrata, o candidato a vice-presidente, Tim Walz, provindo de uma localidade rural, pequena, é apresentado como um ex-treinador de futebol, com as suas camisas de flanela genuínas, como “um de nós”, alguém que provém e fala a linguagem do homem comum. Na peça da ABC há, ainda, inclusive por parte de membros de grupos sociais que costumam votar democrata, quem sublinhe que votará, agora, Trump porque a memória económica do tempo daquela presidência (2016-2020) lhe é mais propícia (inflação vs salários, mas, também, a questão das [diferenças entre] realidades e percepções). E nessa peça de mais de 100 minutos documentam-se, ademais, diferenças irredutíveis em matérias como imigração ou aborto, por parte de diferentes norte-americanos e a triste convergência final, entre dois eleitores de diferentes partidos, de que uma guerra civil pode, mesmo, suceder.
[16] Fareed Zakaria chama a atenção para o facto de já em 1987, e apenas na qualidade de promotor imobiliário, Donald Trump, pagando cerca de 100 mil dólares para o efeito, ter publicado, no The New York Times, uma carta aberta ao povo americano, na qual defendia que muitos países viviam, ao nível da Defesa, do esforço dos EUA, sem contribuírem, para tal, como deviam, sustentando, do mesmo passo, uma taxação relativamente às importações, incidindo, aqui, sobretudo, sobre o Japão (na época, como que representando o papel que agora a China comporta no imaginário de rivalidade norte-americano). Ou seja, a defesa de uma política económica proteccionista, por banda de Trump, tem cerca de, pelo menos, 4 décadas. Na actual campanha eleitoral, Trump anunciou que pretende impôr uma taxa de 10% a todos os produtos importados; 60%, no caso da China. Pelo critério do “défice comercial”, que Trump releva como prioritário, as taxas à China – que permaneceram com Biden – foram um falhanço. Desde a data de imposição das taxas, e até hoje, o “défice comercial” (norte-americano face à China) não diminuiu, mas aumentou. Estas medidas, segundo diversos estudos, custaram milhares de milhões de dólares aos consumidores norte-americanos, sem que hajam alterado medidas chinesas. Um estudo do Peterson Institute concluiu que as (novas) taxas, propostas agora por Trump, custariam aos consumidores dos EUA 500 mil milhões de dólares/ano. Ou seja, aumentariam, até, a inflação. Com o Plano Marshall, a seguir à II Guerra Mundial, os EUA perceberam que ao criarem uma zona de estabilidade e prosperidade, estavam, igualmente, a criar uma zona onde, eles mesmos, poderiam prosperar, no que poderia chamar-se de estratégia de “interesse próprio iluminado”, que contrasta com a visão puramente “negra, estreita, egoísta” que Trump propõe (cf. https://www.washingtonpost.com/opinions/2024/08/02/trump-trade-business-economy-ideology/). Sobre a coerência ideológica de Trump, há, contudo, que notar que foi apoiante do Partido Democrata e de programas como Medicare, Planned Parenthood ou uma Segurança Social (com robustez) (cf.Ezra Klein, o.c., p.25). A National Review, uma relevante publicação conservadora, considerava, em 2016, que Trump não era um conservador. Por sua vez, Markus Gabriel, filósofo alemão, considera que Trump se interessa apenas por “lucros, neoliberalismo sem doutrina, porque o neoliberalismo de Trump nem sequer é o de Milton Friedman ou Friedrich Hayek. Não há doutrina, há puros interesses, às vezes criminosos, no caso de Trump, cuja figura é um fenómeno estilo Soprano” (Markus Gabriel entrevistado para Ideas, ElPaís, 15-09-2024).
[17] No notável documentário de Errol Morris sobre o perfil de Steve Bannon, American Dharma (2018), estratega e conselheiro de Trump na sua primeira candidatura presidencial (e que, segundo vários observadores, assim, agora, regressa), Bannon afirma literalmente: “quero transformar os republicanos no partido dos trabalhadores”. Todavia, confrontado pelo realizador/entrevistador com a contradição em se afirmar um populista contra os grandes interesses e, em simultâneo, ser a favor da ausência de limites relativamente a empresas poluidoras (e, portanto, de uma política que beneficia, deliberadamente, corporações e os mais favorecidos), a imagem do seu dedo a passar, permanentemente, o seu lábio sem que haja conseguido responder aquela objecção é um dos registos impressivos de um filme no qual se percebe que Bannon se crê o Falstaff de Henrique V (do Falstaff de Orson Welles), ademais de afirmar que repete, vezes imensas, o célebre dito de Lúcifer no Paraíso Perdido de Milton: “é melhor reinar no Inferno, do que servir no paraíso”.
[18] Ricardo Ferreira Reis, diretor do Centro de Estudos Aplicados da Universidade Católica Portuguesa, tendo vivido durante vários anos nos EUA, chama a atenção para o facto de que em não existindo nos Estados Unidos uma Segurança Social tal quale na generalidade da Europa, os fundos de pensões estarem em Bolsa, e, por isso, aqueles que puderam garantir poupanças para a sua velhice, vêem, por exemplo, ao longo de um ano ou de uma legislatura, as poupanças subir 20, 30 ou 40% na bolsa – ou exatamente o contrário, descerem de forma significativa. Mesmo que um Presidente não tenha, diretamente, a ver com tais variações bolsistas, o facto de estas poderem ser positivas significará, para vários eleitores que a elas estão muito vinculados, uma avaliação positiva do presidente de turno (independentemente de outros items em avaliação; segundo o investigador, factor a ter em conta para se compreender alguma da popularidade de Trump e do seu mandato presidencial (2016-2020) – cf. https://www.youtube.com/watch?v=UnwacAezpUM&t=44s ).
[19] Em todo o caso, de acordo com os dados da Major Cities Chiefs Association, o crime violento (homicídios, violações, roubos, agressões com danos físicos graves) baixou, claramente, nas grandes cidades norte-americanas - das 69 analisadas, em 54 o crime violento baixou; em média, essa baixa foi de 6%, sendo que Colombus, Omaha, Miami e Washington DC experimentaram quedas muito significativas; as 8 com maior número de agressões são Los Angeles, Chicago, Houston, Oklahoma, Minneapolis, Detroit, Phoenix e Memphis) no primeiro semestre de 2024 face ao primeiro semestre de 2023 (cf. La Vanguardia, 18-08-24, p.7).
[20] Paul Auster, Banho de sangue americano, ASA, 2024, p.47.
[21] Ibidem, p.15. Aliás, “carros e armas de fogo são os pilares gémeos da nossa mitologia nacional mais profunda” (p.50). E “os americanos estão tão acostumados à matança diária que os rodeia, que já não lhe prestam atenção, mesmo que os números continuem a aumentar de ano para ano (…) Um novo ritual americano: derramamento de sangue e luto transformados numa série de entretenimentos mórbidos que uma e outra vez nos plantam em frente aos nossos aparelhos de televisão” (pp.87/88). A maioria dos assassínios em massa nos EUA são cometidos por jovens homens e solitários, ocasionalmente de meia idade, não raro mentalmente perturbados, quase nunca por mulheres. Nos últimos 10 anos (anteriores à conclusão da escrita do seu novo livro), Auster constatara a existência de 228 episódios de violência, 30 deles assassinatos em massa, com armas de fogo em escolas e universidades de todo o país. Neste contexto, e “se o problema é haver demasiados homens maus com armas, não seria mais sensato tirar-lhes as armas, em vez de armar os chamados homens bons – que em muitos casos, se não todos, são consideravelmente menos bons – e, por esse meio, eliminar totalmente o problema, pois se os homens maus não tivessem armas, para que precisariam delas os homens bons? (…) A minoria contra o controle de armas tem razão quando diz que a violência armada é causada pelas pessoas irresponsáveis ou destrambelhadas que usam armas, mas dizer que as armas não causam a violência com armas não é menos ridículo do que dizer (…) que os cigarros não causam cancro do pulmão (…) Nem todos os fumadores morrerão de cancro de pulmão e nem todos os detentores de armas de fogo as usarão para se mutilar ou matar, ou ferir ou matar outras pessoas. Mas as pessoas alvejam a tiro pessoas com as suas armas e as pessoas cometem suicídio com armas porque as têm, e quantas mais armas haja para ser compradas e quanto mais pessoas as comprarem, mais pessoas as usarão para se suicidarem ou matarem com elas. Isto não é uma proclamação moral ou política – é uma questão de pura matemática. Distribuam-se caixas de fósforos a vinte crianças pequenas numa festa de anos e há toda a probabilidade de a casa arder antes do fim da festa” (pp.119 e 143).
[22] Ibidem, p.20. No livro de Paul Auster pode colher-se, igualmente, uma síntese do debate jurídico-constitucional norte-americano acerca do porte de arma e, bem assim, uma genealogia do uso de armas - pelas milícias de colonos britânicos a expandirem o seu território, recorrendo à violência relativamente aos povos índios, presentes naqueles territórios há muitas gerações (tal como a formação das primeiras forças policiais nos EUA se fez com base naqueles que integravam patrulhas de escravos nos EUA). O medo atinente ao homicídio aleatório, sem uma causa de exacerbamento emocional e dirigido a alguém com quem não se tem, sequer, qualquer espécie de contencioso, mas preparado friamente, durante meses, matar seja quem for ou aparecer pela frente inculca um generalizado medo visceral, o mesmo sucedendo com a constatação de sempre haver quem pretenda bater recordes de pessoas assassinadas.
[23] Apud. Paul Auster, pp.104-105.
[24] Ezra Klein propõe a reflexão e deliberação a nível local, com maior participação dos cidadãos (de diferentes áreas políticas), assim em diálogo sobre temas tendencialmente com menor carga ideológica e de resolução de questões muito concretas da vida das suas cidades/vilas/aldeias como forma paliativa – porque estrutural identifica questões como emprego e desigualdade social como determinantes para baixar a polarização política - de superar ou mitigar a ausência de permeabilidade entre cidadãos de orientação partidária diversa (note-se como em domínios como financiar o défice fiscal com recurso a dívida como modo de estimular a economia, ou o recurso a seguro de saúde nos termos em que Romney aplicou no seu estado, quando sustentado pelos democratas, levou, de imediato, republicanos a oporem-se mesmo quando, pouco antes, defendiam tais políticas). Á semelhança de vários outros autores, sustenta, igualmente, uma forma diversa da comumente seguida nas nossas comunidades de gerar mandatos, com possibilidade do sorteio entre cidadãos para o desempenho de cargos políticos (cf. Por que estamos polarizados). Por outro prisma, durante o período de pré-campanha eleitoral norte-americana assinalou-se, do ponto de vista comunicacional, que Kamala Harris, mais do que uma grande propensão para o detalhe programático, trouxe uma tentativa de, por contraponto com uma mensagem e postura irada ou zangada de Trump, um tom de alegria e uma disposição de apresentar/passar uma imagem pela positiva/com esperança ao eleitorado [alguns crismaram tais posturas, de modo elogioso ou pejorativo, respectivamente, como a “política da alegria”]. Diversamente, ainda, Paul Krugman assinalaria que Harris é uma “sólida candidata de centro-esquerda”, destacando o desagravamento fiscal em função da natalidade, deduções que no mandato de Biden permitiram reduzir a pobreza infantil. O programa de Harris contempla, também, incentivos fiscais aos construtores e apoios para quem pretenda comprar a primeira casa (Krugman vê no planeamento urbanístico e normas não federais uma séria limitação ao que um Presidente pode alcançar neste âmbito). A candidata democrata propõe-se, ainda, evitar a manipulação de preços nos supermercados (falta o pormenor desta regulação contra os preços abusivos) (cf. https://www.nytimes.com/2024/08/19/opinion/kamala-harris-economic-agenda.html). Registou-se, igualmente, um discurso democrata sem uma mensagem positiva no que ao masculino diz respeito – com a reiteração do tópico da existência, como que exclusiva, de uma “masculinidade tóxica” -, podendo, e as sondagens sugerindo-o, perder muito voto, nomeadamente jovem, masculino (cf. https://cnnportugal.iol.pt/videos/gps-fareed-zakaria-18-de-agosto-de-2024/66c150860cf23ab65535e570 ). No que a diferenças estruturais entre republicanos e democratas diz respeito, porventura será de atentar no que é intentado por alguns de entre os primeiros, como William Barr, procurador-geral sob George W. Bush e Donald Trump, segundos os quais (vide discurso de Barr, em 2019, em Notre Dame) a vida democrática só sob pode prosperar debaixo de um chão religioso (cristão), o qual estaria, segundo aquele agente político, sob ataque dos liberais, há décadas. Um outro observador da vida política norte-americana, com redobrada atenção a quando da sua passagem pela presidência da Assembleia-Geral da ONU, Diogo Freitas do Amaral, deixaria registada, porém, no seu terceiro e último Volume de Memórias Políticas, que em julgando que o homólogo norte-americano do partido que ajudara a fundar era o Partido Republicano, ao assistir diariamente à vida política norte-americana deu-se conta do seu logro, pois o benefício dos mais afluentes e o corte sucessivo em programas para os mais necessitados, em diferentes estados dos EUA por banda de lideranças republicanas, mais não era do que a contradição mais cristalina da Doutrina Social da Igreja Católica, marco no qual vincava rever-se (cf. Mais 35 anos de democracia. Um percurso singular (Memórias Políticas III – 1982-2017), Bertrand, 2019).  

 

      
Bertrand.pt - Por Que Estamos Polarizados 
     



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