Diferença entre economia de mercado e sociedade de mercado

 

"Actualmente, quase tudo está à venda.
(...)

Uma cela de prisão mais cómoda: 82 dólares por noite. Em Santa Ana, na Califórnia, e noutras cidades, os delinquentes não violentos podem pagar por melhores instalações: uma cela limpa e sossegada, afastada das ocupadas pelos reclusos não pagantes.

Se és aluno do segundo ano de escolaridade numa escola de Dallas com uma taxa de sucesso reduzida, lê um livro: dois dólares. Por forma a incentivar o hábito de leitura, as escolas pagam aos miúdos por cada livro que lêem.

Michael SandelO que o dinheiro não pode comprar. Os limites morais dos mercados, Presença, Lisboa, 2015, p.13.



Porque é errado que (quase) tudo possa ser vendido e comprado? Michael Sandel encontra, sobretudo, duas razões para considerar aquela realidade como nefasta: desigualdade e corrupção. Se tudo estiver no âmbito de uma possível compra/venda, se tudo for mercantilizável, então a importância da riqueza passa a ser ainda maior (e quem tem menos recursos económicos passa a sofrer ainda mais); por outro lado, se ler um livro passa a ser uma tarefa (paga) em vez de um bem intrínseco (a desfrutar) então estou a corro(mp)er esse acto (de leitura). Do que se trata, em última instância, é de sabermos distinguir entre economia de mercado - "uma ferramenta valiosa e eficaz para organizar a actividade produtiva"(p.20) - de sociedade de mercado - "uma forma de vida em que os valores de mercado se infiltram em todos os aspectos da actividade humana. É um lugar onde as relações sociais são moldadas à imagem do mercado" (p.20).
Contrariando os que pensam que o principal problema da crise por que passamos assentou/assenta na ganância/falta de ética - um ponto em que, por exemplo, Adela Cortina insistiu, em Para que serve realmente a ética? -, Sandel pretende que discutamos e delimitemos até onde podem ir os mercados: "A mudança mais fatídica que se produziu durante as últimas três décadas não foi um aumento da ganância - foi a expansão dos mercados, e dos valores de mercado, para esferas da vida onde não pertencem. Para lidar com esta situação, não nos basta protestar contra a ganância; precisamos de repensar o papel que os mercados devem desempenhar na nossa sociedade (...) A invasão dos mercados, e do pensamento orientado para o mercado, em aspectos da vida tradicionalmente regidos por normas não mercantis é um dos desenvolvimentos mais significativos dos nossos tempos (...) Este uso dos mercados para reger saúde, educação, segurança pública, segurança nacional, justiça penal, protecção ambiental, recreação, procriação e outros bens sociais era praticamente inaudito há 30 anos. Mas hoje aceitamo-lo quase como um dado adquirido" (pp.17-18).
Não podemos, pois, calar as questões fundamentais e evitar discuti-las em sociedade: "que papel devem ter os mercados na vida pública e nas relações pessoais? Como podemos decidir que bens devem ser comprados e vendidos e quais devem ser regidos por valores não mercantis? Que domínios da vida o imperativo do dinheiro não deve reger?" (p.20). Suprimir tais indagações é contribuir para "o vazio moral da política contemporânea"(p.23): uma das causas para que este ocorresse passou pela "tentativa de banir as noções de qualidade de vida do discurso público" (a ideia de suprimir do debate público as convicções morais e espirituais de cada um, por melhor intencionada que fosse, desaguou no fundamentalismo de mercado, diz Sandel). Demasiada argumentação moral, excesso de convicção moral nos nossos debates, gritam muitos. Justamente o contrário se passa, garante o filósofo político de Harvard: "O problema da política não reside no excesso mas sim na carência de argumentação moral. A nossa política é inflamada porque é essencialmente vaga, vazia de conteúdo moral e espiritual. Não abarca as grandes questões que preocupam as pessoas" (p.23). As consequências do vazio estão à vista: "a relutância em nos envolvermos em discussões morais e espirituais (...) custou-nos um preço elevado: esvaziou o discurso público de energia moral e cívica e contribuiu para a política tecnocrática, de mera gestão administrativa, que hoje aflige muitas sociedades" (p.23/24). 
E se voltássemos a conversar a sério?

Publicado, originalmente, no "reparo do dia", da universidadefm, em 2015



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