NO CONGRESSO INTERNACIONAL MIGUEL TORGA

 

no CONGRESSO INTERNACIONAL MIGUEL TORGA

Se em pequeno, antes de se deitar, Miguel Torga se benzia, o seu “cigarro”, em adulto, passou a ser o de umas linhas escritas antes de dormir, os 'Diários' que se estendem por cerca de 70 anos, qual exame de consciência (coletiva também).

Foi sobre a diarística, ela mesma, e a de Torga em particular, que se deteve, na sessão “Miguel Torga – valores do Homem, pelo Homem, para a Humanidade”, Maria da Assunção Morais Monteiro (UTAD), exposição incluída no Colóquio Internacional Miguel Torga, hoje a decorrer em São Martinho de Anta (Espaço Miguel Torga). Nesse contexto, problematizou-se, a partir de uma multiplicidade de 'Diários' de autores portugueses de referência (de literatos a diplomatas), o significado daqueles: a certa altura, os 'diaristas', “mais do que escreverem-se, escreveram com preocupações literárias” e na construção de uma persona. O que para Régio coloca em causa a essência dos 'Diários': “os diários não são obra literária, ou, se o são, não são diários”. Florbela Espanca, para ilustrar, plasmara em letra a mais profunda intimidade.

Torga, traduzido para dezenas de línguas – do chinês ao norueguês -, considera que escrever diários “com as tripas nas mãos” é mito romântico – Maria de Assunção Monteiro, em publicação para Oxford, sondou da autenticidade/auto-ficção nos 'Diários' de Torga – e a sua obra é, também, um “reflexo do mundo” e “memória cultural da Humanidade”: conquanto os 'diários', afinal, possam "incluir tudo quanto se queira", os temas da polis e da cultura povoam os seus apontamentos nocturnos: “nunca perdoarei” a “França socialista”, a “Inglaterra liberal” ou “os EUA democráticos” de terem assistido, sem intervirem, à guerra civil espanhola (1936-1939), como quem assiste de camarote a uma “tourada humana” - verbera.

Nas suas viagens pelo estrangeiro, Adolfo Rocha notaria, em Paris, que nunca poderia ser um escritor português fora de Portugal, pois, em tal suceder, faltar-lhe-ia a “gramática da paisagem” ou “o espírito santo do povo”. E, em plena segunda guerra mundial, registaria como Índios havia que davam conta dos mísseis (adversários) antes, inclusive, das máquinas os detectarem. Talhado na rocha, áspero, solidário dos pobres, dos simples e dos jovens, Miguel Torga (Miguel, porventura, por inspiração em Cervantes), no Diário XV, assinala pretender ser “um homem, um artista, um revolucionário”.

Por sua vez, Rafael Ángel Garcia-Lozano, professor da Católica de Ávila, espanhol de Zamora que contactou com a obra de Torga aos 20 anos e, desde então, por ela, e pelos seus passos portugueses, se apaixonou, investigaria ‘“Os Bichos” e a sua religiosidade segundo Trás-os-Montes’, inquirindo, nessa obra de Torga, (como ela lida com) i) a questão de Deus, ii) o religioso, iii) a religiosidade no âmbito da Cristandade, evidenciando como ela dá testemunho da forte presença de elementos culturais próprios da cosmovisão católica.

O modo de vida rural, de pobres, território abandonado, economia de subsistência, a centralidade da família, um catolicismo junto aos ritos da natureza são eixos em torno dos quais Torga cresce e a sua obra ressoa. A natureza aparece quase sacralizada e a animalidade do humano muito vincada. Em “Os bichos” podemos observar elementos de tipo religioso nas festas, na linguagem, na presença do Mal, nas celebrações, na moral, nas personagens, nos valores e objectos. Em cada um destes âmbitos Rafael Garcia-Lozano – cuja comunicação terá publicação, desenvolvida, em próxima edição da revista de Teologia, da UCP, “Ephata” – concretiza com um acervo de exemplos colhidos n’Os bichos [na linguagem “Deus nos dê bom dia”, “louvar a Deus”, “fazer a Deus que sacrifícios”, na identificação do mal, “essa excomungada leva-te à sepultura”, a presença do diabo, nos valores relacionados com o Evangelho, a censura da “gula pecadora”, nas personagens como o Padre Gonçalo ou Sanção; rede de expressões culturais impregnada da fé cristã, independentemente do carácter “crente” ou “não crente” dos personagens], enquanto, em jeito biográfico, conta como Torga frequentou os sacramentos, titubeou com a vocação sacerdotal, perderia a fé, mas nunca negaria Deus: (o livro) aponta a uma realidade maior, Transcendente, difusa, heterodoxa (face à ortodoxia católica), realidade pessoal, mas, porventura, de um modo muito particular.


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