MARCO MARTINS EM MATEUS
MARCO MARTINS
Esta tarde, em Mateus, a escutar Marco Martins, realizador de dois dos filmes portugueses de que mais gosto, “Alice” (2005) e “São Jorge” (2016) (sem esquecer “Great Yarmouth – Provisional Figures”, 2022).
Ficando a saber, desde logo, que em “Alice” o autor pretendeu (também) “falar de uma cidade [Lisboa] que estava a transformar-se em mais anónima e não tão humana”. Mário, personagem central da trama, pai desesperado de uma filha que desaparecera – em época na qual, na realidade, em Portugal, Zé Pedro era criança que desaparecera e o país passara a conhecer; sua mãe ‘via’ Zé Pedro em cada criança de 9 anos que passava na rua…mesmo quando Zé Pedro teria já bem mais idade…assim Mário face a Alice… – distribui folhetos junto ao metro e em outros pontos da cidade (coloca câmaras por toda a urbe), tentando que alguém possa fornecer uma pista preciosa acerca do paradeiro da descendente. “Quero filmar na rua sem qualquer restrição”, dirá, então, Marco Martins ao produtor Paulo Branco. “Desde que não vire a câmara para ninguém [em especial”, pode ser – responde-lhe este. O realizador, também cidadão, julgava que as pessoas iriam parar, querer, de algum modo, conhecer a história, ajudar…Nada. As pessoas seguiam, passavam à frente, não olhavam – “ninguém parava”.
Em “Alice” (prémio Quinzena de Realizadores, de Cannes), naquela entrada em que durante largo tempo não há palavra alguma - só imagens -, observamos, já, uma estética que será marca da casa: “não é preciso falar para se fazer cinema. Se eu puder mostrar, em vez de dizer, prefiro que a história seja contada pela imagem”. A ligação à música, à poesia, às artes plásticas será outro dos elementos nucleares para quem adere, como o faz Marco Martins, a uma concepção do cinema enquanto “arte total”. Perspectiva, esta, que muito bebeu em Wim Wenders, com que estagiou e de quem se diz devedor (“foi muito importante para mim. Era um cineasta em que me revia muito. Era um cineasta a quem era permitido quase tudo. Eu queria pensar o cinema de forma muito livre. Além de, como pessoa, Wim Wenders ser extraordinário”). Para além de Wenders, Manuel de Oliveira ou Bertrand Tavernier foram outros realizadores com os quais estagiaria. Por esta altura, pôde, igualmente, muito aprender com Tonino Guerra, um “grande contador de histórias. Nos últimos anos de vida, não escrevia; contava”.
Quem “adorou” o filme “Alice” foi Jorge Salavisa, diretor, naquela primeira década de 2000, do S. Luíz, que, de imediato, convidou Marco Martins, que não era, sequer, um grande espectador de Teatro para encenar uma peça. Teve, por aquela altura, a possibilidade de estar/ensaiar actores durante 6 meses – hoje, 2 meses seria um luxo, regra económica do teatro em acção – Durante esse período, esteve com Luís Miguel Cintra e foi a Wuppertal encontrar-se com Pina Bausch.
O gosto por brincar com imagens, o ter tido acesso às primeiras câmaras de filmar (para famílias), o apreciar divertir-se sozinho, o desfrutar de escrever guiões muito cedo sem saber que isso era profissão, talvez o facto, ainda, de a mãe, uma vez por semana, o ir buscar à escola e o levar ao cinema terão sido factores que concorreram para que este homem nascido em 1972 se venha a dedicar à sétima arte. A vontade de aprender a escrever (para) cinema, o querer descobrir “como se fazia algum do Teatro de que eu gostava” levaram-no à Escola de Cinema – naquele ínterim, “muito técnica. Hoje, não é assim”. Agora, na pele de docente de cinema, o que Marco Martins diz aos seus alunos é: “faz o teu filme quando tiveres alguma coisa a dizer”.
Autor de peça marcante sobre os estaleiros navais de Viana do Castelo (“Estaleiros”, 2010) e seus trabalhadores, o encenador/realizador encontrou ali pessoas que recebiam, sem trabalhar, há 2 anos – o que levaria muitos a baixas psiquiátricas.
Quando o seu labor incide sobre os estaleiros, ou quando se atém à produção industrial de comida em grande escala (no Reino Unido), Marco Martins não quer intelectualizar acerca das situações/assuntos/condições sobre as quais se debruça - ele vai viver para os estaleiros, fala com os soldadores, vai trabalhar para a fábrica e vê cortar-se o pescoço a perus de 40 kg (“não sabia que havia perus de 40 kg!”) - e, por si só, “o corpo conta uma história”. Os soldadores que conhecem todo o passado dos estaleiros, ou os emigrantes portugueses que se encontram esgotados, a noroeste de Londres, naquele sistema industrial desumanizante e duro (retratado em “Great Yarmouth”), trabalhos que nunca contam (que realizam) à família (que ficou em Portugal e que os imagina em outros ofícios). [De que modo a experiência estética muda a vida das pessoas?, pergunta-se ao realizador] Neste processo criativo – do filme/peça -, em que conta com 1 pessoa só para o trabalho com o corpo; 1 pessoa exclusivamente afecta à parte musical e 1 pessoa adstrita, apenas, ao texto; “durante um mês, não apareço, só assisto” -, para muitos dos trabalhadores dos estaleiros navais ou emigrantes, agora actores, dá-se a gestação de uma auto-estima que não é despicienda. A pessoa crê que a sua vida “não interessa nada” e “de repente percebe que a sua vida, como todas as vidas, tem momentos de epifania. Há, até, luto das pessoas; um antes e um depois de participar naquela experiência estética”.
Também
no extraordinário “São Jorge”,
depois de investigação, num “período muito duro” da vida nacional, Martins irá
para o ginásio onde o personagem que Nuno Lopes voltará, com que força (Prémio
Orizzonti), a encarnar - um funcionário de cobranças difíceis (o país
explode, então, de dívidas, as famílias perdem casa a esmo…) e a “optar” entre
um emprego que, no limite, o pode levar a acabar com a vida de outra pessoa e
ter comida para o filho (ou não ter emprego nenhum, nem comida no prato para o
herdeiro). Família que Marco Martins vê como “o núcleo mais forte que temos” e, portanto, que compreende
atravessar-lhe a cinematografia e o teatro. Atualmente em residência artística
na Casa
de Mateus, M. Martins adapta ao cinema – contrariando o pedido de
jornalista de ElPaís que escreveu, para o seu jornal, várias páginas sobre a
homónima peça de teatro – “A Colónia”,
sobre a experiência de uma colónia de férias inédita feita para presos
políticos, realizada em 1972, nas Caldas da Rainha.
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