SARAU DE POESIA

 

SARAU DE POESIA
Poucos dias antes de Adília Lopes morrer, José Tolentino de Mendonça, no podcastO poema ensina a cair”, estabelecia um certo paralelismo, uma inscrição em referências (do quotidiano) ou modos/capacidade de espanto com pontos de contacto entre aquela poeta e Adélia Prado. Um dia, seguramente, encontrar-se-iam – ao que o advérbio de modo “fisicamente” seria, aqui, redundante, dada o sensível, o sensual, o prosaico do dia-a-dia ser agarrado, com garbo, pelos colarinhos, por ambas as autoras. Não chegaram a abraçar-se, mas seguimos a sugestão da pegada, conjuntamente tomada, destas poetisas – a Adília “a quem foi dado pouco, e do pouco fez muito” – a desconcertante e muito espirituosa arte de no mais singelo iluminar o maior e de o (re)valorizar, ensinando-nos, desta sorte, a gratidão (e a dignificação do que só por erro de paralaxe valorativa julgamos ínfimo: no mesmo, cabe a música da antena2 e dos miúdos a correr cá fora e os cães a ladrar - como que integrando a mesma sinfonia vital); a Adélia que não abdica de nenhum dos sentidos para nos dar a medida de uma imersão experiencial e existencial completa e a quem, igualmente, não falta o amor à vida toda, e nada menos do que todas as estações que a atravessam, e o desarmante humor com que recebe o humano na edificação e nos seus baixios e, bem assim, desafia as minas e armadilhas que espreitam, também, o humano caminhar.
No mesmo espírito e sorriso que desafiam convenções, recusam formas esquemáticas de dizer, ou banais aproximações ao texto, que mais adequada mestre para nos inserir ao corpo poético hoje em louvor?, a professora, diseur, actriz Rosa Canelas conduziu-nos e contagiou poeticamente dezenas de jovens que escutaram, disseram, gravaram Adélia, Adília, a que juntaram Ruy Belo, Sophia, Fernando Echevarría, entre outros. Ouvimo-los pelas vozes de António Moutinho, Bárbara Guerra, João Casimiro, João Augusto, Mariana Lopes, Matilde Lopes, Ana Carvalho, Beatriz Gonçalves, Maria Vilaverde, Sara Germano.
Sempre acompanhados, na Biblioteca da Escola Básica e Secundária de Murça, do requintado som da harpa que Matilde Parra, aristocrata do espírito com dúzia de anos de Conservatório e inexcedível na generosidade do compromisso e da responsabilidade, emprestou à sessão, principiando com uma composição dedicada ao rouxinol e outra ao Sísifo de Torga. Embora, por vezes, o mundo pareça oferecer momentos vários de embrutecimento, há, ainda, a possibilidade de enclaves para cultivar o "gosto das coisas belas".








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