HUMBERTO DELGADO - RETRATOS POLÍTICOS

 

HUMBERTO DELGADO - RETRATO POLÍTICO

1.Por curiosidade, embora tenha passado à posteridade como “obviamente, demito-o”, e embora as diferentes formulações que ao general, naquele contexto, são atribuídas, signifiquem exatamente o mesmo, a resposta de Humberto Delgado, à pergunta de um jornalista, em conferência de imprensa, no café “Chave d’Ouro”, em Lisboa, a 8 de Maio de 1958, pelas 10h da manhã, acerca do destino político a dar a António de Oliveira Salazar, em caso de vitória de Delgado nas presidenciais daquele ano, não se tem como absolutamente segura: as nuances “Demito-o, obviamente”, ou “Demito-o, como é óbvio” são, igualmente, admitidas como verbo exato do candidato presidencial.

2.A frase - qualquer das expressões vindas de mencionar se tenha revestido - reclama a leitura da Constituição de 1933: o Presidente da República tinha, com efeito, o poder de demitir o Presidente do Conselho. A afirmação não era, por isso, ilógica. Todavia, existindo esse poder “de jure”, nunca “de facto” era pensável o seu exercício (dirigido a quem era: Salazar). De aí o espanto pela afirmação. Mais, ainda: o espanto pela pergunta. Quem se atreveria a colocar a questão, em plena ditadura, sobre o destino a dar ao Presidente do Conselho? Nenhum jornalista de um órgão de informação português, em realidade. No dia seguinte – ou, no próprio dia nos jornais vespertinos então existentes -, de resto, a tirada não permeou qualquer manchete. Lindorf Pinto Basto estava na conferência de imprensa de Humberto Delgado pela agência France Press. Foi ele quem fez a pergunta.
No dia anterior ao evento, Delgado prometera no círculo político maís íntimo ser deferente com o Presidente do Conselho, caso perguntado sobre o mesmo.
 
3.António Araújo, em retrato biográfico de divulgação – mas sempre oferecendo um robusto aparato bibliográfico, como é seu timbre - sobre Humberto Delgado dado, agora, à estampa pela Medialivre, chama a atenção para que a resposta do general não foi, contudo, um repentismo: perante as 300 pessoas que assistiam à sua alocução (onde não se contava a RTP, apesar de convocada para o efeito), quis, logo no início da sua campanha, marcar uma posição que considerava fundamental, por dois motivos políticos essenciais: i) sem esse aviso prévio, caso vencesse a eleição, poderia faltar-lhe a legitimidade (material) para afastar Salazar; ii) a fortíssima posição assim assumida, servia, igualmente, para contestar a campanha que contra si havia por parte do Partido Comunista – que, vendo como ainda meses antes da candidatura presidencial, o general era nomeado diretor-geral no seio de um regime que havia servido durante décadas, expressava grandes reservas iniciais aquela candidatura. Todavia, o PCP acabaria por retirar o seu candidato presidencial, com o fito de a oposição ir a eleições unida, o que, de resto, causou não poucas tensões no interior da candidatura de Delgado (que passou de acusado, pelo Avante, de ser “general fascista”, a apontado, pelo Estado Novo, como “comunista”, sob a alegação de aquele nunca criticar o comunismo nos seus discursos e comícios de campanha. Humberto Delgado diria, a propósito que, em Portugal, o comunismo era um "fomismo", um apelo aos que tinham "fome"). Já em 1963, cinco anos volvidos da campanha presidencial que o chamado “general sem medo”, desde o início, sabia ir perder, sem, contudo, deixar, então, de exigir, para se candidatar, aos que o incentivavam, ir até ao fim (sem desistências), encontrar-se-ia com Álvaro Cunhal em Praga - mas dali não resultaria qualquer posição comum, de oposições ao Estado Novo, as quais se encontraram quase sempre fracturadas.

4.No dia seguinte às eleições de presidenciais de 1958, nas quais obteve apoio de personalidades como João Araújo Correia, Aquilino Ribeiro, Francisco Vieira de Almeida, António Sérgio ou Jaime Cortesão e em que, na Praça Carlos Alberto, disse ter recebido a maior ovação da sua vida – num relatório ao Ministro do Interior, o governador civil do Porto escreveria que aquela era uma “candidatura do Porto”, surgida ali, onde um conjunto de personalidades, 29 independentes, o tinham lançado, enxertando-se, esta, na tradição de recusa de tiranias e defesa do liberalismo (político, democrático) da cidade, e isto apesar da ideia original da candidatura presidencial de Humberto Delgado ter pertencido a Henrique Galvão -, e mau grado a carga de pancada assestada a muitos dos que assistiram a comícios e alocuções na sua campanha americana (ao estilo norte-americano; a PIDE chegou, aliás, a rotulá-lo de “General Coca-Cola” como se a corrida para a Presidência, pelo militar, de uma imposição dos yankees se tratasse, campanha de contacto popular aberto por oposição ao formalismo cinzento de Américo Thomaz, o candidato da situação), Delgado dá conferência de imprensa na qual exclama: “Fui roubado!”. Em realidade, "existem casos documentados de fraude" (António Araújo, "Retratos Políticos II", Medialivre, 2025, p.92), cuja completa dimensão dificilmente se apurará. A embaixada do Brasil viria a dar guarida ao pedido de Humberto Delgado para ali obter protecção política e pessoal, a qual foi concedida, não sem forte tensão diplomática entre Portugal e Brasil durante meses (outros oposicionistas, refira-se, receberiam igual protecção em embaixadas como as argentina, venezuelana ou cubana).
A mobilização popular em torno de Humberto Delgado levaria o regime a alterar a Constituição: as eleições presidenciais deixariam de ser diretas, passando a processar-se através de um colégio eleitoral (evidentemente composto por personalidades afetas ao Estado Novo).

5.Humberto Delgado foi assassinado, tal como a sua secretária, Arajaryr Campos, em Los Almerines, perto de Olivença. Os seus cadáveres - só descobertos, e, inclusive, já devastados por animais, 70 dias após o homicídio de ambos, por dois rapazes adolescentes, de 13 e 15 anos, que por ali brincavam -, seriam enterrados, com cal e ácido sulfúrico, a 30 km do local, em Vilanueva del Fresno, num caminho intitulado, não de poderia dizer melhor, Los Malos Pasos. O nome da operação da PIDE que lhes colocou termo à vida intitulou-se "Operação Outono". Não existindo a certeza absoluta de que o objectivo final da mesma era, como veio a suceder, a morte do general (e sua secretária), as características sanguinárias de Casimiro Monteiro, um dos agentes da PIDE presentes na consumação do homicídio, juntamente com Agostinho Tienza e António Rosa Casaco, fazem pensar, claramente, que sim. É pouco crível e credível, por outro lado, em virtude do extenso hiato temporal dedicado por Rosa Casaco ao encalço de Delgado, e dadas as características (centralizadoras) do Estado Novo, que Salazar não estivesse ao corrente da Operação em causa. Este atentado foi, também, e ainda, um rude golpe na fraternidade ibérica, com o governo de Franco a ficar agastado com aquela emboscada em seu solo e sem o seu conhecimento.
A PIDE aliciou um português chamado Mário de Carvalho, que vivia em Itália, para, primeiro, se fazer próximo de Delgado e, posteriormente, lhe montar uma cilada. Mário de Carvalho encontra-se, por consequência, com Delgado em Paris. Diz-lhe que há patriotas que estão desejosos de mudar o rumo político do país. E que se deve encontrar com um desses cidadãos e líder de movimentos para fazer avançar a queda da ditadura - em realidade, patranha realizada, o (falso advogado) era (o agente da polícia política) Ernesto Lopes Ramos que levaria Delgado, obviamente sem aquele contar, junto dos agentes da PIDE que o matariam.
No dizer de António Araújo, historiador e jurista, aquela morte e o modo como ela se dá, com uma atuação tão sinistra e amadora da polícia política, evidencia duas enormes solidões: a de um ditador que, perdido na sua vendetta pessoal – o desafio de Delgado nas eleições de 58 e a demissão que aquele, em caso de vitória nas presidenciais, garantia ir firmar do político natural de Santa Comba Dão - ignora, até, considerações políticas inerentes a um acto como aquele (nomeadamente, a erosão da relação com a Espanha de Franco), e, outrossim, a de um general que, depois de ter tido o país a seus pés, acaba sozinho, apenas com a sua secretária, sem, sequer, lograr a seu lado um lugar tenente que fosse verificar se o tal homem que iria, supostamente, colocar em marcha a revolução (que colocaria termo ao regime do Estado Novo) era real, ou não passava, como não passou, de uma armadilha fatal.
O retrato biográfico que António Araújo desenha de Humberto Delgado é o de um homem muito cedo pressionado a ser o melhor da turma, enviado, aos 10 anos, sozinho, de comboio, a Lisboa, para prestar provas ao Colégio Militar; inteligente, passando a (sua) recruta por entre docentes e superiores hierárquicos (dos quais dirá alguns serem) “sádicos”, terminou o seu curso militar em primeiro lugar com 13,5 valores. Chega a general muito jovem (47 anos); saúda, efusivamente, o golpe de estado que coloca fim à I República e que faz emergir a ditadura; dali a alguns anos, nos livros que escreve, faz dedicatórias a Salazar. Compreende o meio social, sem brasão, de onde provém, pelo que adopta o da mulher; e, sobretudo, crê começar do zero, qual tábula-rasa, é ele que dará pergaminhos à descendência, a isso se propõe resolutamente. Há, talvez por isso, neste retrato uma certa ideia de uma auto-confiança muito abonada, uma temeridade que se entrevê, um excesso derramado em artigos de jornais, em adjectivos dos que vê como adversários senão inimigos, nas amizades desfeitas e dos consensos que consigo não puderam existir, no gosto por homens-fortes, independentemente do regime que professam – Mussolini, Napoleão, Hitler, De Gaulle, Churchill -, mas também, e sobretudo, na coragem imensa de afirmar a Marcello Caetano que Salazar estava ultrapassado e acabado e de assumir, a dado momento, a oposição a um regime no qual estava instalado – sem esquecer, é certo, que entendeu a nomeação derradeira, para diretor-geral, uma desconsideração, uma perda de estatuto, o que acelera a sua desvinculação e desafeição ao Estado Novo – e de ser o único português que ousou candidatar-se às presidenciais, durante os 48 anos do Estado Novo, contra o candidato apoiado por aquele. Com uma forte preocupação social desde muito jovem evidenciada, procurando ajudar os pobres e os desvalidos – não sou católico praticante, mas devo ser mais cristão do que muitos praticantes, escreverá -, condoído pelo tratamento dado aos negros em África, será articulista em diferentes periódicos ao longo de anos – nos quais plasmará descrição das pueris aventuras amorosas de tenra idade, até à elucubração sobre questões políticas mais sisudas – e um empolgado, e para muitos empolgante, comentador, especializado militarmente, radiofónico da II Guerra Mundial.
Certo dia, bem jovem ainda, Humberto Delgado irá ao Parlamento, estamos no final da I República, assistir ao desenrolar dos trabalhos. O que vê gera-lhe uma repulsa que o vai levar a desejar o fim republicano. Curiosamente, é dos que querem, hoje, uma democracia menorizada, dos que contemporizam com comportamentos análogos, que nos recordamos, obviamente, ao ler o registo que então tomou: “Que tristeza! Eu julgava o parlamento uma assembleia de homens e fui deparar com uma súcia de garotos dizendo piadas de sol uns aos outros, num barulho indecente, próprio de praça de touros ou de taberna".

Pedro Miranda




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