COMENTÁRIO À SITUAÇÃO
1.Pressupondo, em especial, a leitura de George Steiner ou de Rob Riemen, em ensaio que, prescindindo da ambição de vários dos escritos daqueles autores sobre o estado da cultura ocidental, se concentra, em bom combate, na realidade educativa portuguesa, António Carlos Cortez, em “O fim da educação – crise, crítica, ensino e utopia” (Guerra e Paz, 2025), professor de Literatura Portuguesa e de Português nos ensinos Secundário e Superior, poeta, crítico literário, deixa um conjunto de contundentes incisos e considerandos acerca da escola portuguesa, a merecerem séria ponderação de uma inteira comunidade, dos quais destacaria os seguintes: i) após doze anos de escolaridade, escreve-se, frequentemente, muito mal no (final do) Ensino Secundário e, não raro, no Ensino Superior – e, neste, não apenas no primeiro ciclo de estudos; ii) à intensidade da aposta, na última década, em matéria de métodos pedagógicos, na gamificação do ensino, não notou o autor, bem ao invés, incremento da capacitação dos alunos na leitura e na escrita; iii) neste sentido, o docente de Língua Portuguesa considera que o resumo, a síntese, a cópia (de ensaios ou recensões), o ditado continuam a ser formas inultrapassadas e insuperadas de se aprender a escrever bem; iv) organizam-se, em permanência, acções de formação e capacitação digital de professores quando os docentes careciam, em casos não contados, de capacitação textual, lacuna a qual o ensaísta deduz dos documentos, por si observados, elaborados nas escolas nas quais ensina/ensinou (ou com as quais, de algum modo, contacta); v) existe um “inferno burocrático” nas escolas (que “cerceia e esteriliza” os professores; “são as redes sociais que educam, não os pais, e muito menos os professores, manietados que estão pela ‘camisa de forças’ administrativo-tecnocrática”; vi) o “inferno burocrático” presente nas escolas impede, outrossim, os professores de “frequentarem a cultura”; vii) sem “frequentarem a cultura”, o completo potencial – e o pacto de espanto e curiosidade ao qual introduzir os alunos - que os docentes em si encerram fica por cumprir; mais, sem tal cultura, nomeadamente gerações mais novas de professores poderão adquirir autoridade, junto dos alunos, não pelo reconhecimento da solidez do seu conhecimento e cultura, mas pelo irmanar na ignorância com aqueles (em um tempo, como profetizara Ortega y Gasset, em que uma multidão de pessoas reclama o seu direito à vulgaridade - e o de impô-la aos demais); viii) as metas com que as escolas se comprometem, quanto a percentagens de alunos a transitar de ano, implica, na perspectiva do investigador, uma diminuição da exigência, quer ao nível do que se reclama dos discentes em termos cognitivos, quer de uma postura e atitude perante o estudo, o trabalho e o esforço (realidades, aliás, não cindíveis); ix) neste contexto, não raro, na escola, no nosso país, sentencia, em definitivo, o autor de Um dia Lusíada, “finge (-se) que se ensina e finge (-se) que se aprende”; x) mas não é, apenas, no domínio da passagem de ano de um conjunto de alunos que a exigência, face há duas/três décadas, se vislumbra diminuída no nosso ensino: “um 18 de hoje equivale, no fundo, a um 11 de há 25/30/35 anos”; xi) as disciplinas fundamentais ao pensamento crítico – Literatura, História, Filosofia – são colocadas a um canto (a um deus menor); xii) em assim sucedendo, o desconhecimento básico dos alunos acerca da “vida colectiva” (portuguesa) é imenso e o desinteresse pela mesma elevado; xiii) há uma grande “formatação das aulas” e, desta sorte, emerge uma “incapacidade de fazer perguntas” [quem sou eu?, quem sou eu para mim?, quem sou eu para os outros?, quem são os outros para mim?], por banda dos alunos: “a escola como lugar vivo poderia ser a estrada aberta de uma vida mental viva. Mas não é: tudo, ou muito do que se faz com crianças e adolescentes, redunda em repetição, em ínvia doutrinação e empobrecimento espiritual”, “a escola num enorme bocejo e a vida num extenso deserto de indiferença e apatia”; xiv) com excepções, e pequenas ilhas de resistência – e aqui António Carlos Cortez cita J. Krishnamurti -, “a educação atualmente, só se preocupa com a eficiência exterior, mantendo-se completamente indiferente em relação à natureza interior do homem ou até mesmo destruindo-a deliberadamente; a educação apenas desenvolve uma parte do ser humano e abandona o resto, que se vai arrastando de qualquer maneira”; xv) e de Rob Riemen, Cortez sublinha este passo: “as pessoas foram abandonadas pelas elites governativas, e pelas elites da educação e dos negócios foram traídas. Traídas pelo sistema educativo, porque se renunciou à educação das disciplinas relacionadas com as Humanidades. Traídas pela elite do mundo empresarial, porque essa elite as doutrinou para pensarem que o único sentido da vida é o dinheiro. Tal ideologia ultra-materialista tem um uma consequência grave: as pessoas não têm já uma visão de mundo assente em qualquer valor imaterial. O mundo do espírito morreu”; xvi) uma das interpelantes intuições deixadas pelo homem de letras ligado ao Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho passa pela associação que realiza entre o desaparecimento de uma educação humanista e, como que para compensar o vazio deixado por esta, o apelo do chefe, do líder autoritário, do populista de hoje; xvii) o digital na educação, “se substituto de professores e da cultura livresca, é, se tal pode conceber-se, a desmaterialização da própria vida”. Em época de desenvolvimento da Inteligência Artificial é constrangedor e confrangedor o recurso permanente a substitutos ou evitamentos artificiais do pensamento, como os ChatGPT, em trabalhos de alunos nos quais abunda um “palavreado sem significado” – verdadeira “língua de pau” – e tão clean e redonda que, sem aquela bengala artificial, (felizmente!) os alunos não seriam capazes de escrever de tal forma (o que dá bem nota, de resto, da limitação de tal ferramenta e suas congéneres atuais).
Porque hei-de ler um livro denso, difícil, ou ver um filme ou documentário mais intrincado, ou até um relatório mais extenso (que contende com a vida da polis) se prefiro ficar indefinidamente no scroll do ecrã de telemóvel, ou instalar-me em sucessivos videojogos, ou continuar, de modo bulímico, a série seguinte, ou, talvez, porque não?, jogar PlayStation? Pergunta bizantina…só que não. Resposta: devo fazê-lo para procurar superar, um pouco mais, a (minha) estupidez, ou ser mais justo.
O Homem do nosso tempo (aparentemente) não acredita nisto. Nem, tão pouco, se apercebe, ou está disponível para (querer) compreender, o sentido ético da exigência (pelo menos, nisso, do que exceda as repercussões para o próprio e se note na comunidade) de adquirir o conhecimento difícil, de aperfeiçoar o gosto, de ir mais longe. E, instado, não é assim, quase sempre, mesmo nas redes de maior proximidade?, a prosseguir, exclusivamente, os negócios privados - os seus estudos, o seu trabalho, o seu estatuto, a sua riqueza, a sua família - ignora, também, que o desprezar a dimensão pública é (igualmente) fortíssima questão ética. Quem quer apenas tratar de negócios privados que saia da cidade, escreveram os gregos. Com a desertificação da vida pública, com o cidadão sacrificado ao consumidor e cliente – tantas vezes as próprias instituições pressupostas de mediação a apontarem que a felicidade é o shopping –, as campanhas políticas para muitos reduzidas a programas televisivos de entretenimento, de melhor ou pior qualidade, de Ricardo Araújo Pereira, Geirinhas, Goucha ou Júlia Pinheiro, isto é, um espaço público onde não são a razão, o pensamento abstracto, a compreensão das coisas, o logos que vencem, mas o fútil, o caso do dia, a emoçãozinha fácil, o pathos que ganham, como de há muito, entre nós, Pacheco Pereira tem sublinhado, a vida política tende a assentar em um chão não elevado. O que dizem os teus olhos? Que me queres manipular (apelando à emoção fácil).
Em entrevista ao jornal ONovo, em maio de 2021, o vice-presidente do Chega, Pacheco de Amorim, afirmou: “Nós não podemos funcionar dentro da bolha das pessoas bem-educadas porque… a maior parte das pessoas não o são – e só entendem esta linguagem. E a má-educação das pessoas não é culpa delas, muitas não tiveram a possibilidade de serem educadas. O nosso vocabulário médio andará pelas duas mil, três mil, quatro mil palavras. O vocabulário médio de 90% dos eleitores portugueses é de 80 palavras. Isto não é desprezo, pelo contrário: é o reconhecimento da realidade”.
Deste excerto – que, é certo, não permite, como de costume, dado o autor ter a aludida filiação, e tratar o eleitorado como se vem de descrever, o choradinho e a vitimização que tantos apreciam - fica, pois, de modo muito claro, exposto porque é que, em boa medida, os discursos elaborados por quem parte destes pressupostos e os aprecia de tal modo, e entende que há um caminho de adaptação amoral a realizar na conquista do poder são perpassados por expressões como “bandidagem”, “monstros” [para caracterizar determinadas pessoas], “acabou a mama” e tantas mais de igual jaez; porque é que se lançam debates constitucionais que se sabe, à partida, que desrespeitam limites materiais de revisão da CRP e que, portanto, não é dimensão operativa alguma que visam (mas apenas captar a atenção, primeiro, e o voto, logo depois, dos que não estão informados); porque é que programas partidários, num ano, sustentam a privatização de tudo o que mexe e, no ano seguinte, a estatização de tudo o que há; porque é que do ponto de vista académico/científico se propugna uma realidade e do ponto de vista político, os mesmos, com unhas e dentes, propõem o exato oposto…
Com a ecologia formativa em volta, com os media depauperados e em desespero á procura de likes – mais próximos de garantir em arrazoados de confrontação e polarização emocional mesmo onde, antes, julgáramos encontrar canais de informação de referência, tiradas ad hominem ou considerações pejorativas sobre determinados grupos humanos - sem colocar os temas substantivos em cima da mesa (condição sem a qual não há democracia digna desse nome, como bem considera Jurgen Habermas), sem a autodisciplina da obrigação diária de leitura do jornal de referência (em diferentes geografias, motivo pelo qual, historicamente, as horas semanais de trabalho foram diminuídas) e debater, desde logo, em casa, os principais elementos nele levados à discussão (“a conversa”, da qual falava Vasco Pulido Valente e na qual participava, com verve e brilho no verbo), a ciência política longe da escola – onde, aos 18 anos, vou constatando, é a pergunta aos pais que tende a decidir o voto pela primeira vez inserto nas urnas, ocorrendo-me, não raro, que a perspectiva, não sujeita a escrutínio, de uma coincidência absoluta da pessoa com o cidadão deixaria, pelo menos numa aproximação inicial, um dilema como o que Julian Barnes acaba de contar sobre a sua educação (política), com a avó materna que era metodista, tornou-se socialista e depois comunista e o avô materno que era conservador: “quando eu estava com eles, a avó sentava-se na cadeira dela – no canto vermelho – manifestando a sua impaciência ao ler o Daily Worker, que expunha as diabólicas iniquidades do capitalismo, enquanto o avô se sentava na cadeira dele – no canto azul – lendo o Daily Express e manifestando a sua impaciência em relação às diabólicas ameaças do comunismo” (Mudar de ideias, Quetzal, 2025, p.56); considerando-se ambos os avós de completa integridade e comum interesse e conhecimento pelas coisas da cidade, como decidir em qual confiar como adequado conselheiro decisivo para o voto? - acerca o resultado encontra-se à vista. É por tudo isto que o ensaio-manifesto de António Carlos Cortez é importante e provocador ensejo ao qual convém não fugir: no debate com aquele podemos, para sintetizar, decidirmo-nos por, quanto ao tratamento das gerações atuais e vindouras, procurar educar para puxar para cima – dotando as pessoas/cidadãos de um vocabulário médio, digamos, de 5 mil palavras, desde logo -, com isso contribuindo para que mais homens e mulheres livres emirjam (recordava Pacheco Pereira que o tirano, em “1984, de Orwell, mandava retirar palavras do dicionário, palavras sem as quais as pessoas/cidadãos ficam sem poder nomear e aceder a um conjunto de fenómenos/realidades e/ou coloca-las em causa; ao que António Carlos Cortez questiona: mas numa turma, quantos lerão o “1984”?), sem se deixarem manipular com a voracidade e facilidade com que, sem disfarces para quem os observe dois minutos seguidos, muitos o fazem, ou, então, e em sentido inverso, dar apenas mais corda à civilização do espectáculo – o livro de Cortez segue, muito, na esteira, como se referiu, de Steiner e Riemen, mas na linha daqueles, e entre outros na última década e meia, destaquem-se Nuccio Ordine ou Martha Nussbaum – de que, sem originalidade mas não sem acerto (originalidade consagrada ao capítulo sobre o amor e a privacidade no Ocidente, registe-se a excepção), Mário Vargas Llosa deu nota dos principais traços/características.
Evidentemente, não se muda de ou a civilização em dois dias, nem em dois anos, nem, mau grado a aceleração dos tempos, em duas décadas. Mas, tanto quanto possamos, eventualmente, ter algo sobre ela a dizer/construir, cabe-nos decidir qual o lado e para que rumo a queremos a caminhar paulatinamente. Sem atirar a toalha ao chão, sem desistências, sem deserção, sem contemporizar com a vulgaridade como medida.
Acredito, em qualquer caso, que sempre haverá um conjunto de homens e mulheres – os homens-bons da cidade; 10/15/20% da população?... - que estejam e continuem dispostos a investir de si, a doar-se à comunidade, a investigar por ela, a estudar e intervir para o bem-comum, a não deixar de lado o livro e o jornal de referência, a preferir o difícil em vez do que mais facilmente apetecia, a não cair no relativismo de que tudo tem o mesmo valor - porque o não tem.
Pedro
Miranda
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