DA BELEZA E DA PAIXÃO DO FUTEBOL
Carlos Maria Bobone tem escrito ensaios e livros sobre Filosofia Medieval e, mais recentemente, acerca de Luís Vaz de Camões e a obra literária deste. Encontrando-se com doença grave, à qual poderia não resistir, quis, contudo, deixar aos filhos, ainda muito jovens, um livro sobre a paixão que, por ora, o irmana aqueles, o futebol. Confirmando, assim, de resto, o desporto-rei como fortíssima e vivíssima plataforma e veículo de emoções, sentimentos, afectos, vínculos indestrutíveis. Mas também, em forma de “ensaio culto”, de um “livre pensador” (mesmo que “politicamente engajado”), oferecendo à descendência, desta sorte, com “O jogo da Glória” (Zigurate, 2025), um aroma daquela curiosidade, erudição, conhecimento – história, arte, política, cultura, mentalidades, literatura, filosofia – sem o qual o jogo não teria a interpretação e a contextualização de que, absolutamente, carece, a leitura de sentido que o abeira de tornar-se inolvidável e, mais ainda, não poderia alimentar a paixão por aquele e pela vida, incluindo, nela, evidentemente, a vida do espírito, que o ensaísta reclama e aspira para os herdeiros. Alfarrabista, Carlos Maria Bobone é editor-principal da revista de ideias, de direita, Crítica XXI. Crítico literário no Observador, publica, agora, este curioso livro sobre futebol, carta de amor ao jogo e aos filhos, canto à vida – porque, mesmo nas vitórias que ficaram por confirmar de grémios do futebol deslumbrante, tal como nas pessoas que insistem em recordar e afirmar a beleza, a verdade e o bem em circunstâncias de vida particularmente difíceis, “nem o sofrimento é imune à alegria”.
1.Com a queda da sua força e importância políticas, a aristocracia, no século XIX, afasta-se da vida em comunidade e intensifica uma existência lúdica, na qual o(s) jogo(s) e, em particular, o(s) desporto(s) vem a alcançar preeminência – “o aristocrata excêntrico é um arquétipo oitocentista; os netos dos validos dos reis absolutos mostram a sua superioridade social pela indiferença em relação à sociedade. São excêntricos, porque não ligam à sociedade, que prescinde deles; é o tempo da arte pela arte, da estética acima da moral (…) enfim: uma classe habituada a viver na parte superior da ordem social e que reage à sua expulsão dessa mesma ordem celebrando a sua inutilidade. Um mundo com meios, mas sem função, que se pode entregar por completo a uma vida lúdica” (pp.18-19). O futebol nascerá, sobretudo, em colégios e universidades (de elite) inglesas - como no-lo lembrará a excelente série The English Game (Netflix), companhia durante a pandemia. Se, para alguns, nada é mais fútil do que o esforço despendido em algo sem propósito funcional, há, igualmente, nesta gratuitidade, uma ideia de abnegação desinteressada, pedagogismo sanitário, regras seguidas por cavalheiros, robustecimento como forma de melhorar o Homem (que se encontra, também, no futebol no seu estado de latência). Gratuitidade que se segue, igualmente, dos curricula voltados para a Antiguidade clássica (dos colégios e universidades inglesas), nas quais a vindicação da areté, a excelência grega, e da distinção podia ser reclamada (mesmo) no que se considere ocioso: “o desporto não é só um divertimento: é um modo de alcandorar o corpo à excelência, depois de séculos religiosos de mortificação corporal e desinteresse pela matéria. Vindos de um mundo em que revivesce a tradição romana, que olha para a sua própria atividade como ela é – trata-se da recuperação do passado, não apenas de futebol – os atletas espalham pela Europa a ligação à Antiguidade como um dos pólos do desporto. Ainda hoje vemos resquícios disso. No nome de «stadium» dado aos recintos desportivos (ou Arenas, também à romana) (…) no nome de alguns clubes. O Olympiakos com a efígie clássica e o símbolo – e o nome que não precisa de explicação, tal como acontece com o Ajax -, a Atalanta, nome com que os rapazes de Bérgamo homenagearam, no seu clube, «la dea» do desporto, a Lázio, nome romano da região originária do Império, a loba no símbolo da Roma, os já referidos «Olympiques» de Marselha ou de Lyon” (p.33) ...
No futebol de Bielsa, Cruyjff e Guardiola não há apenas uma ligação entre a verdade e o Belo; nele, encontra, ainda, Carlos Bobone um enlace com o amor: “ora, aquilo que se vê em Cruyjff, em Bielsa, em Guardiola, está para lá do jogo, mas diz também qualquer coisa sobre ele. Não é possível olhar para eles sem ver um amor louco pelo jogo, e esta associação entre amor e verdade, entre o amor, o princípio e a natureza das coisas, entre o amor e as formas mais puras, está, desde que a filosofia é filosofia, a vida é vida, no centro do pensamento. O amor por uma coisa é sempre um amor pela sua forma mais pura, e a forma mais pura parece feita para o Homem. Há sempre uma alegria, às vezes até inesperada, ao encontrar a versão mais autêntica das coisas. (…) A oportunidade de tocarem a essência das coisas, o modo como os deuses olham para o mundo [eis o que Guardiola proporcionou aos adeptos culés…e aos demais amantes do futebol]” (p.143). Para o autor de “A religião dos livros”, o futebol, para grandes massas populares, é, aliás, a grande introdução à arte, à beleza e à consciência de que há mais no mundo do que o trabalho e a função biológica (p.69).
5.Há, contudo, espaço, também, para vitórias tão importantes que valem por si mesmas, ou, em si mesmas, são um feito desmesurado, mesmo quando o que irradiam não seja feito do mesmo material com que se joga nos céus. Assim, a liga dos 100 pontos, que Mourinho desviou para Madrid, ao tempo daquela que era, para muitos a melhor equipa da história, sua adversária. Paradoxalmente, aqueles que pretendiam diminuir o Barça de então, dificilmente podem, em coerência, vislumbrá-la assim. Em realidade, aquele foi “um campeonato de guerrilha”, “um ano em que o Real é capaz de arrancar os olhos para os chutar a eles se não tiver a bola” (p.141). A escalada de antagonismo, num desporto já dado a um natural maniqueísmo e ao exacerbamento emocional, cristaliza, aí, um dos seus momentos mais intensos: a ideia de que o futebol é “o regresso semanal à infância” (Javier Marias) pode ser apropriado, é certo, em chave mais sensível – o rapaz que no jogo se concretiza [a si mesmo], que, tanto e tão somente, é -, como na divisão primária entre bons e maus, cuja cenarização encontrou então, nessa edição de La Liga – como, de resto, na eliminatória Chelsea vs Barça, em 2005, mesmo com outro treinador azul-grená, Frank Riijkaard –, um dos momentos mais carregados: “a escalada de antagonismo atinge o zénite” (p.141).
6.Em se falando de treinadores é curiosa a virtude que Carlos Maria Bobone divisa em Alex Furguson. Não um criador de uma ideia, de um modelo, de um sistema de jogo. Não um inovador (no mundo da bola), um tático (formidável), um (sumo) estratega. Apenas um bom aluno de excelentes mestres, um homem que futebolisticamente se adapta (mesmo que envie os adjuntos a dar o treino), que está em constante aprendizagem e que, por exemplo, dois anos apenas após a retumbante chegada de Mourinho a Londres, e da periodização tática de Vítor Frade que revolucionava o jogo (e não apenas, a nível desportivo, no futebol seria estudado), Ferguson conseguiria ganhar (a Premier League). O ensaísta, amante de futebol, não vai ao ponto de negar exatamente Luís Freitas Lobo quando este, contrariando os lugares-comuns (e “toda a unanimidade é burra”, Nélson Rodrigues), não detetava em Ferguson um génio da raça – no que, aliás, repetirá, em ambos os casos, a meu ver, com inteira razão, face a Jurgen Klopp: uma coisa, o carisma pessoal, outra um grande contributo para o jogo; e nem no caso do escocês, nem do alemão se podem observar, propriamente, tais méritos -, não considera brilhante Sir Alex – o último 4x4x2 em linha, na final da Champions, em Wembley, frente ao Barça, completamente esmagado, desde logo, na superioridade 5x2, com Messi a baixar ao meio campo, na sala de máquinas -, mas faz-nos voltar a considerar qualidades (aceitar estudar atentamente e apropriar-se dos saltos de conhecimento no jogo propiciados por outrem) porventura negligenciadas.
7.No futebol, como noutras geografias da vida, há números mágicos (nas camisolas): crescemos com algarismos que indicam posições em campo, o 2 que é o do lateral direito, o 4, tal como o 5, do central, o 6 de médio defensivo. Ou, nem sempre: o chamado "6", na Argentina é o "5"; o facto de Zinédine Zidane ter escolhido o "5" no Madrid mostra como, já no início deste século, os médios vêm buscar jogo a zonas mais recuadas do campo – Pirlo, por antonomásia, mas, antes, Del Piero e até Rui Costa como regista de largo espectro em Florença. Alguns 9, os Henry, os Van Persie, e 7, os James metidos, por dentro, a alas (direitos), evidenciam a mutação ocorrida nas respectivas posições. Há jogadores que revelam, aparentemente, menos personalidade e que se contentam com números sem história – o 34 de André Almeida, ou, mesmo, o 18 de Scholes -, outros que usam números ao acaso fruto de circunstancialismos muito próprios, o ambiente de tensão da selecção portuguesa no Euro 84, com Nené, Jordão e Chalana a utilizarem os números 2, 3 e 4, respectivamente, apesar de serem atacantes e extremo, respectivamente. E jogadores que criam uma escola de número: “a aparente excentricidade de Vítor Baía ao usar o 99 no Porto torna-se um símbolo do clube quando Diogo Costa escolhe o mesmo número para defender as redes dos dragões” (p.57).
Os números são, ainda, fundamentais quando pensamos na tática – 4x4x2, 4x3x3, 3x5x2, 3x4x3, 4x6x0 [alguns, chegaram assim a caracterizar o Brasil de Carlos Alberto Parreira, no mundial dos EUA, em 1994, e, muitos outros, o Barça, de Guardiola, na final do mundial de clubes frente ao Santos, em 2011] - que cada equipa utiliza, “apresentação [por números] essa que nasce (…) num jornal brasileiro, a partir da exposição feita por Flávio Costa, que veio a ser seleccionador do Brasil nos anos 50” (p.47).
E, por falar em tática, atente-se que só com o advento desta – só com o notar-se como o jogo colectivo e o forçar do desposicionamento do adversário importavam verdadeiramente –, que muito deve aos treinadores húngaros, podem aparecer “outros heróis” que não os guarda-redes e os pontas-de-lança que se haviam destacado por completo quando o jogo era desorganizado. Se o passe magistral de Deco, depois de uma finta, a isolar Dmitriy Alenitchev para o 2-1, em Sevilha, frente ao Celtic, na final da UEFA (2003), é mais importante do que a própria finalização para (o) golo, então surge “um novo tipo de herói aristocrático do futebol – aquele para quem o golo se torna quase secundário”: “quando o futebol deixa de ser apenas o golo, pode não ser sequer o golo. Abre-se a porta a uma série de heróis diferentes, dos dribladores tantas vezes inconsequentes, mas divertidos, aos visionários que parecem desligados do jogo, vagabundos, mas cujos rasgos justificam todas as horas adormecidas. Okocha, Quaresma, Kléber e a sua foquinha, num nível diferente até Ronaldinho, Neymar e Garrincha eram jogadores que combinavam espectacularidade e eficácia, mas numa proporção que valoriza o espectáculo. Riquelme, Zidane por vezes, Verón, noutros patamares Gourcouff, Pedro Barbosa, Canales são jogadores cuja aura não é dada pelos golos (…) mas que arrebatam o coração dos adeptos como nenhuns outros, precisamente por causa desta paixão mais indirecta, oblíqua, não pelo golo, mas pela sua origem, pela possibilidade, pelo grande passe (…) Trata-se, em suma, do jogador romântico, que em qualquer tempo parece fora do tempo, não porque o esteja verdadeiramente, mas porque está fora do jogo no seu sentido mais prosaico. Nenhuma posição personifica tão bem este tipo de jogador como aquela que foi consagrada com a camisola mais icónica do futebol, a do número 10. Esta, embora tenha sido popularizada por Pelé, que não era exatamente um jogador deste tipo, apenas porque era um jogador de todos os tipos – romântico, pragmático, fantasista e físico ao mesmo tempo – esteve nas costas de Rui Costa, Messi, Maradona, Ronaldinho, Isco, Zidane, Deco”. E, em 2025-2026, em Lamine Yamal.
Quando se julgaria que o estudo exaustivo do jogo e do adversário, o carácter ultra-científico, o traço e a complexidade do xadrez com que foi sendo cumulado nas últimas duas décadas retirariam, em definitivo, o tempo e o espaço que possibilitam jogadas de alto coturno e para mais tarde recordar, e amputariam, outrossim, o jogo da alegria que o tornou tão popular, eis que, na imorredoura humana rebelião frente a todo o determinismo, Yamal, Pedri, Gavi, Fermín, numa “equipa primaveril” (Ramon Besa) treinada por Hansi Flick, resgatam o Barça (e o futebol mundial) do luto pela equipa, que o tempo levou (ao youtube), de Messi (Xavi, Iniesta, Busquets, Alba…) e devolvem a bendita loucura às bancadas e aos sofás de milhares de lares (os resultados 4-4, 3-3, 5-3, as remontadas em catadupa e 90 minutos muito bem passados voltam a estar no cardápio dos adeptos). Talvez, mesmo, neste instante, num descuido momentâneo para com o nosso compromisso com o comprazimento do torrencial de golos e oportunidades de golo neste ano consumadas nos jogos do Barça (a edição da Premier League, no ano transacto, também repleta de muitos golos e ocasiões de golo, verdade se diga), cheguemos ao cúmulo de nos questionarmos (sobre) onde mora a arte de bem defender quando ao Barça de Messi e companhia quase nem uma chance foi concedida em Londres, pelo Chelsea de Hiddink, no caminho para a primeira Champions de Guardiola, ou, em época posterior, em Barcelona, o mesmo sucedendo frente ao Inter de Mourinho e, agora, assistimos a, sem exagero, dezenas de ocasiões flagrantes geradas pela equipa blaugrana nas fases a eliminar mais próximas da final da competição (?). Depois de, no início dos anos 90, a serie A (italiana) se apresentar como créme de lá créme – com consequente enorme atração dos maiores craques futebolísticos internacionais – e de ter gerado uma das mais temidas e imperiais equipas de sempre, o Milan de Sacchi (e, depois, de Capello), o conservadorismo e a dureza – até nas entradas aos adversários, canela até ao pescoço - de um catenaccio bastante disseminado em terras transalpinas – era o tempo em que defender o jogo todo, e esperar por dois contra-ataques para ser eficaz e vencer era, por cá, considerado um modo “cínico” de jogar futebol; isto, antes da matreirice, e o mesmíssimo tipo de jogo, ser elevado, ainda aqui, ao estatuto de suprema virtude…mudam-se os tempos, mudam-se as vontades…e de repente, quase não há um treinador português dos mais (re)conhecidos que pretenda bola e consiga jogar em ataque posicional…-, tornaram, primeiro, o campeonato espanhol e, depois, o inglês como os mais atrativos à escala planetária. Á intensidade única, e ao entusiasmo sem desfalecimentos da Premier League (onde o futebol reproduz a sociedade hodierna: joga-se como se vive…a correr…), e coloquemos num lugar à parte o belíssimo Arsenal de Ársene Wenger, correspondeu quase sempre La Liga com um jogo mais coral, de pausa e critério. Depois de um longo hiato, reconheça-se, de mais de meia década, em 2024/25 La Liga regressou. Quando o jogo era mais democrático, e não se tinha entrado em novo estágio do modelo que transformou os clubes mais famosos em marcas mundiais (o crescimento económico asiático e os direitos internacionais de transmissão televisivos, nomeadamente para aquele continente, geraram muito dinheiro), o Depor de Bebeto, Donato, Fran ou Manjarin e, depois, o de Rivaldo, o Valência de Mendieta, Claudio Piojo López ou Aimar (e, antes, o do soberbo 10 que era Ariel Ortega), o Atlético de Pantic (quantos golos de livre direto?), Kiko, Caminero ou Penev puderam disputar até ao fim e vencer campeonatos (como em décadas anteriores, por exemplo, os grandes do País Basco o haviam feito também). O calcio já não era o número um dos campeonatos quando, na transição de século, Mihajlović marcava três golos de livre direto num jogo (https://www.youtube.com/watch?v=NgYUvMlLPXo) – (e, noutros jogos, dois ou, pelo menos, um livre para picar o ponto) e dava um grande contributo para a Lázio de Couto, Conceição, Salas e Eriksson ser campeã.
8.A cor das camisolas dos clubes, e até os seus nomes, contém histórias fantásticas por detrás dos mesmos: “nos primeiros tempos do futebol, havia vários clubes que não tinham campo fixo, pelo que se intitulavam wanderers, caminhantes. O vestígio desse tempo ainda se encontra em clubes como o Bolton Wanderers ou o Wolverhampton Wanderers” (p.33). Um dos clubes vagueantes, por cuja causa a camisola do Real Madrid virá a ser branca, é o Corinthian FC. Nome escolhido, aquele, em homenagem a Corinto, cidade grega que sedeava os jogos ístmicos. Era um verdadeiro clube de cavalheiros: “era conhecido, por exemplo, por falhar deliberadamente os seus penalties – no pressuposto de que jogavam sempre contra cavalheiros, que não faziam faltas propositadamente, pelo que seria injusto puni-los por um lapso – e por os seus guarda-redes se recusarem a defender os cometidos por membros da sua equipa; mas, mais importante, o Corinthian era um clube formado por jogadores de outras equipas” (p.33). Na Escócia, País de Gales, Irlanda, Austrália ou África do Sul continuam, no râguebi, a existir selecções intermédias, regionais, provinciais, franquias entre a selecção nacional e os clubes. Enfim, o modelo Corinthian permaneceu, ainda, no futebol, naqueles jogos Europa vs resto do mundo que se jogaram durante décadas. Bobone lê-o como um sinal da crença no indivíduo (embora reconheça, devidamente, as diferenças entre Europa e EUA neste âmbito, até há pouco justificativa de um modelo desportivo europeu [próprio], mas cada vez mais a caminho de baixar a guardar na salvaguarda social, e repetindo uma superliga no futebol, da qual Florentino Pérez é o principal apóstolo, ao jeito da NBA), mas, igualmente, como um entusiasmo por uma química laboratorialmente experimentada com as peças (craques) que queremos que encaixem no nosso Dream Team (nome do Barça de Cruyff, que não pode ser desligado do nome dado à selecção de basket dos EUA que, em 1992, em Barcelona, nos Jogos Olímpicos combinou Michael Jordan, Magic Johnson, Larry Bird, Charles Barkley, Clyde Drexler, Karl Malone, Patrick Ewing, John Stockton, David Robinson, Scottie Pippen, Chris Mulin, Christian Laetnner…): “é uma curiosidade natural pela experiência química, que reconhece a importância das diferentes características para formar uma equipa sólida, ao mesmo tempo que sublinha a variedade infinita de combinações possíveis. A compreensão do futebol como um jogo de harmonia leva a que queiramos testar as peças, como se a montagem da equipa fosse, antes de mais, uma composição feita a partir de elementos mais ou menos complementares. Daí que os mercados de transferências gerem tanto entusiasmo: mostra, apesar de tudo, um sinal de crença no indivíduo. Não tão forte como nos espectáculos do draft ou do All-Stars americano, filhos de uma sociedade muito mais individualista; mas ainda assim, este é um dos prazeres essenciais do futebol (…). Quem vem? Quem se junta? Como jogarão em conjunto? Qual o elo mais fraco, e como poderá ser substituído? O grande jogador que aí vem criará a redundância Crespo-Batistuta. Essa dupla dividiu uma Argentina que sabia que eles podiam jogar juntos em 2002. Voltaremos a assistir no futuro ao problema Scholes, Gerrard, Lampard, que a Inglaterra a tanto custo tentou conciliar em 2004 e 2006?” (p.35).
9.E que dizer dos clubes-identidade? O Nápoles de Diego Armando Maradona, claro, levando, inclusive, o público local a torcer pela Argentina em pleno Mundial de 90, num duelo entre os transalpinos e os albicelestes disputado naquela cidade do sul de Itália, o FCP de Jorge Nuno de Lima Pinto da Costa. Para quem, entre o tétrico e o cómico, observou o pivot televisivo Paulo Garcia (e, nele, resumidos e expostos 42 anos de despeito e ressentimento verde-rubro), ao melhor estilo Monty Python, no dia do desaparecimento do mais genial e titulado presidente da história deste desporto maravilhoso, a perguntar, sucessivamente, a cada convidado em estúdio, pelos defeitos - vá lá, vá lá, arranje lá mais um, só mais um -, daquele que, poucas horas antes, se despedira desta dimensão terrena -, surge quase como que interdita a comparação. Mas o paralelismo estabelecido por Carlos Maria Bobone tem todo o fundamento e justificação: “e se em Nápoles a consagração teve a fórmula heróica, com o Deus esquerdino tatuado no quartieri spagnoli, em Portugal há um exemplo igualmente extraordinário, mas radicalmente diferente (…) Quando um homem chamado Jorge Nuno Pinto da Costa chega a diretor desportivo (…) o Futebol Clube do Porto é um clube relativamente modesto. Está claramente atrás dos rivais lisboetas (…) divide o protagonismo com (…) Boavista, clube da burguesia da cidade (…) [e do] popular Salgueiros. É da parceria entre Pinto da Costa e Pedroto (…), um treinador-alcaide, defensor de cidadelas, especialista em aguentar cercos, que nascerá o Porto guerreiro, agressivo, que dará ao futebol Fernando Couto, Jorge Costa, João Pinto, Conceição ou Mourinho. Gerações (…) que se armam com o que podem contra o centralismo da capital, e fazem da identidade do clube a fúria dos injustiçados. Mesmo quando ganha cinco campeonatos seguidos, o Porto não abandona a ideia de perseguido, de clube que tem de lutar com todas as armas que tem à mão e ao pé, porque a sua menorização é mais do que desportiva: é política, sociológica, é o drama das segundas cidades, do Barcelona, de Marselha, de Petersburgo (…) O Porto que ganha a Taça dos Campeões Europeus ganha-a também contra um Benfica que era, até à data, o único clube português verdadeiramente europeu (…) Se o Porto é um clube da ideia moral de povo – oprimido, menorizado, explorado -, o Benfica é um clube popular, no mesmo sentido em que há toda uma filosofia diferente entre o povo dos independentistas espanhóis e o povo do franquismo” (pp.79-80).
À semelhança do Mourinho vanguardista de 2002-2004, Artur Jorge destacara-se como um dos melhores alunos do curso de treinadores que fora realizar à antiga RDA, poucos anos antes de vencer a Taça dos Clubes Campeões Europeus e José Maria Pedroto havia também obtido igual distinção internacional em décadas anteriores, preparação que seria preciosa na caminhada até à final da Taça das Taças de 1984.
Ao conhecimento dos treinadores, a uma organização inexcedível, uma exigência e uma dedicação, uma intuição ímpares de um escol de dirigentes que por sonharem o impossível ganharam o direito à imortalidade (por mais que os tontinhos o gostassem de apagar) juntaram-se, nesta casa, ajudando a jornadas e triunfos inesquecíveis, como os vindos de evocar, jogadores únicos como Rabah Madjer, Futre, Juary, Magalhães, Gomes, Deco, Carvalho, Baía, Mlinarczick, Benny MacCarthy, Falcão, James, Moutinho, Hulk…
Tal como Álvaro Magalhães – a pessoa que melhor escreve, a par de José Manuel Ribeiro, sobre futebol, em Portugal; aprumo literário que, de há muito, parece ter deixado de importar bastante na imprensa que publica sobre futebol; no país vizinho, esse cuidado, nos jornais de referência, sempre existiu e nas tertúlias de rádio, diferentemente do que sucede por cá no infinito comentário televisivo, procura-se, sem prejuízo da isenção aos jornalistas acometida, que estejam presentes profissionais desta área com óculos diferentes, pressupondo-se, deduzo, que face a uma atividade que remete de sobremaneira ao emocional convém a existência garantida de alguma diversidade, o que, olhando à realidade nacional, em canais televisivos como sicnotícias ou cnnportugal significa juntar, em exclusivo, os que possuem lentes vermelhas e verdes -, tenho a consciência que ver o jogo do clube pelo qual nos apaixonámos não é uma experiência de prazer, mas de angústia e sofrimento psicológico (ou, se se preferir, há algo de masoquista no adepto) e, como aquele, é um futebol selvagem, primordial, que quer dizer alguma coisa, de uma identidade granítica e não clean e marca branca que me interessa. Mas como ele sabe do Dragão as bancadas vestiram-se de pipocas, o povo humilde foi afastado das cadeiras (23% de aumento do preço do bilhete só nesta época gabam-se os tecnocratas), o espectador é burguês, veste Armani e passa o jogo aos beijinhos e a clicar no telemóvel. Adeus futuro [Maria do Rosário Pedreira].
10.Várias equipas austríacas recusam jogar nas ligas alemães após a anexação da Áustria pela Alemanha de Hitler. O Estrela Vermelha surge de um grupo de jovens antifascistas. O futebol é a cultura negra do Brasil – “se as feridas da escravatura saram, é a toques de bola. O futebol é a cultura negra do Brasil” (p.82).
Para quem nasceu num tempo em que o futebol não era uma questão de vida ou de morte, mas muito mais do isso (Bill Shankly), o perder afundando a semana, ou a vitória extasiante dando gasolina para oito dias, os atuais joguinhos de luzes, os ecrãs à americana, a alma entregue ao diabo do comércio, o jogo como mero entretenimento a competir com a comédia romântica domingueira no shopping ao lado, a identidade erodida num egoísmo cego e torpe aparecem como lanças apontadas ao verdadeiro adepto de futebol. Mas a cultura de resistência em que um portista foi criado, a procura da beleza com que um amante de futebol olha o jogo internacional, resiste a tudo.
Pedro
Miranda
P.S.: uma única gralha detectei no excelente ensaio de Carlos Maria Bobone. Quando refere que se a Marca será o jornal preferido dos madridista, o As o dos culés. Dos culés será o Sport, o Mundo Deportivo, o L’Esportiu…O As poderá ser o favorito dos colchoneros.
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