NOS 100 ANOS DA MORTE DE FRANZ KAFKA

 

KAFKA, MAIS COMPLEXO DO QUE ISSO

Ainda no âmbito das comemorações dos 100 anos da morte de Kafka (que nos propusemos evocar), ao António ficou acometida a leitura de "O Processo". Fê-lo, com afinco e brio, na penúltima pausa do ano letivo, e discutimo-lo, com tempo, de seguida. Foi, por isso, com redobrado gosto que o exortei e vi assumir, com garbo e 'profissionalismo', a moderação e as perguntas ao Dr. Pedro Ferreirinha, ilustre transmontano e homem do Direito, que publicara, na 'Scientia Iuridica", da Escola de Direito da Universidade do Minho, artigo estimulante acerca do livro que agora nos detinha.
No paper “Direito e Literatura Contributos sobre Justiça à luz de ‘O Processo’, de Kafka”, publicado em “Scientia Iuridica”, revista de Direito da Universidade do Minho, Pedro Ferreirinha, Doutorando em Ciências Jurídico-Públicas e já docente na UCP-Porto e na Universidade Portucalense, recorda como a Joseph K., “preso sem ter cometido qualquer crime”, “a culpa torna-se-lhe inerente sem que ele possa fazer algo contra isso, sendo, por fim, executado”. Tudo, num dos contos mais célebres da literatura mundo, se encontra pejado de uma “sequência infindável de surpresas surreais”; o “absurdo está presente ao longo de toda a obra”.
O jurista nota que “K. possui um duplo estatuto jurídico. Não conhecendo a acusação, só é capaz de afirmar que é inocente, mas, ao mesmo tempo, é também a vítima de um processo judicial absurdo: desconhece de que é acusado, porque razão foi acusado, por quem foi acusado, e quem são os juízes que têm o seu caso entre mãos” e que “o sigilo é a ideologia ou a atmosfera que cobre todo o processo judicial de Joseph K. Trata-se de um sigilo unidirecional, dos outros para connosco, que, de certa forma, constitui já uma pré-condenação. O terem um sigilo para connosco pode significar duas coisas, neste caso ambas absurdas: ‘ou porque aquilo de que se faz sigilo não constitui matéria grave e, por conseguinte, não há razão para haver sigilo, ou porque não há conteúdo para ser mantido em sigilo (finge-se que se tem um sigilo), e o que resulta é a impressão psicológica, a atmosfera misteriosa e o receio que se incute, ou melhor, a desconfiança. Sentimos horror perante um espaço público que não dê espaço para a existência do sigilo, e o direito a mantê-lo, melhor dizendo, sentimos horror a um espaço público totalitário que faça sair tudo à praça pública e que não haja foro íntimo’. A ausência, num determinado Estado, do respeito pela dignidade da pessoa humana, da liberdade individual, do direito ao sigilo e da reserva da vida privada, constitui um espaço totalitário. Todavia, o inverso também significa um espaço totalitário: o facto de tudo ser feito sob sigilo e em sigilo, como acontece na obra 'O Processo', de Kafka.”
No dizer de Pedro Ferreirinha, da leitura de “O Processo” pode retirar-se que “todo o sistema contribui para o completo esvaziamento da pessoalidade. Como tal, podemos concluir que ‘O Processo’ não é tão-somente uma crítica social. A obra relata ‘a miséria inerente ao homem e a frieza decorrente do distanciamento de sua própria interioridade’”. Em conclusão, o cultor do Direito observa “O Processo”, de Kafka como uma reivindicação, paradoxal, da justiça. Este livro, pode afirmar-se que “‘funciona como uma obra que faz desejar a ideia de justiça’. Tal como valorizamos o alimento devido à fome (ou à ausência de alimento), também aqui, no âmbito da obra em questão, somos levados a valorizar e a desejar a justiça devido à necessidade dessa mesma justiça.’”.
Ora, precisamente este último ponto sublinhado por Pedro Ferreirinha pode ser tomado como contendo pontos de contacto com o modo como Max Brod, na biografia que escreveu sobre Franz Kafka (“Sobre Franz Kafka”, Relógio d’Água, 2024) tomou a relação entre desespero e fé presente na obra deste grande homem de letras e, mais, como ela se poderá afigurar significativa, ainda, nesta hora. Escrevendo em hora de trevas do século XX, Brod afiança que “em termos históricos mundiais, talvez nunca tenha havido uma época do último minuto como a que estamos a viver” – e “o último minuto produz desespero (e, a par dele, claro que também esperanças temperadas pelo fogo), o desespero produz autores do negativismo, que se ocupam (como outrora Marcião, que, quanto a esta questão, foi mais longe do que qualquer outro) de destruir a crença de que o mundo é obra de um Deus criador bom”. Sem prescindir do negativo, o que há de original, porém, em Kafka, enquanto “pensador religioso” é que (nele, nos seus escritos) “através do desespero brilha qualquer coisa de positivo, que constitui o cerne, ainda que frágil aqui e ali, ainda que cauteloso e codificado, por vezes francamente receoso e assustado” (p.326).
Na obra de Kafka encontra-se muito cepticismo, que tem as suas raízes nos fundamentos da fé. Apesar disso, ele não é um autor que cultive a descrença e o desespero, mas antes alguém que se dedica à comprovação da fé, à comprovação na fé. Por esse motivo, não faz parte daqueles nos quais a dúvida endureceu na carantonha rígida da negação de Deus. Pelo contrário, devemos acrescentá-lo aos que, entre esforços indizíveis, procuram a fé, que, no meio do desespero da nossa vida desprovida de amor, alimentam com todo o cuidado a chama ténue da esperança, vendo-a extinguir-se uma e outra vez, e aos quais, no entanto, por vezes, em momentos de graça, em períodos de elevação, é oferecido um vislumbre de redenção.
«Escrever como forma de oração» é um dos conhecimentos principais a que Kafka tem acesso (…) e, em esta passagem, constata: “Crer significa libertar o indestrutível em si, ou, para ser exato: libertar-se, ou, ainda mais exato: ser indestrutível, ou, mais exato ainda: ser». Repetidas vezes regressa à frase segundo a qual em cada ser humano há um cerne divino, qualquer coisa de «indestrutível», na qual se acredita quando não se consegue nesse indestrutível com o intelecto dissecador e, por esse motivo, (…) se vê o mundo a desmoronar-se. «Nem todos podem ver a verdade, mas todos podem sê-la», afirma Kafka numa das suas máximas mais importantes. Ser a verdade, viver a verdade, fazer de toda a vida a verdade é o objectivo que, no meio de todo o desespero, salva o quase desesperado de ficar totalmente desamparado”.
Se um simples “sim”, ou o tratar Deus “por tu” não expressam o pensamento/sentimento de Kafka, todavia o imperativo, nele, é o de “persevera com fidelidade!”: “tal como os homens nunca, ou só muito vagamente, podem compreender Deus (Job), também os animais nunca, ou só muito vagamente, podem compreender os homens. Tal como o animal não pode compreender o homem, como Kafka descreve na sua sátira melancólica do ateísmo, «Investigações de um cão», na qual o homem, invisível para o cão, se tornou indetectável. Poder-se-ia formular as convicções religiosas fundamentais de Kafka nas seguintes frases: «o divino existe; mas é incomensurável para a nossa capacidade de compreensão humana. Muitas vezes (salvo excepções), produz-se uma refração desfocada do divino original no sensório humano. A ‘mensagem imperial’ não chega até ti. Mas, se a esperares com constância no amor (“Sentas-te à janela e sonhas com ela, ao entardecer”), fazes o que é correcto». No que diz respeito às referidas «excepções», um outro aforismo de Kafka é significativo: «as gralhas afirmam que bastaria uma única gralha para destruir o céu. Isso é indubitável, mas nada prova contra o céu, pois o céu significa precisamente a impossibilidade de gralhas».
Com esta frase (e outras análogas da sua obra), Kafka apresentou de facto uma variante da prova ontológica de Deus a partir da sua própria experiência. Basta este esforço para distinguir o nosso escritor dos seus sucessores (como Sartre, Beckett e outros), que eliminam o mundo transcendente e, embora influenciados por Kafka, também estão nos antípodas dele”.
Em Kafka, houve profecia – “Kafka ainda viveu antes do terror das ditaduras completamente desenvolvidas, da bomba atómica e do apocalipse do indivíduo oprimido, mas antecipou este pavor com pressentimentos e com um espírito profético, o que explica a atmosfera infeliz e fantasmagórica, estagnada e sombria, perceptível nos seus romances. É a antecipação do tempo apavorante” – também pelo facto de ele não ser “o escritor do pessimismo exclusivo, mas também se encontram nele caminhos da esperança, caminhos da redenção, tanto mais subtis, sinceros e convincentes quanto menor a frequência com que aparecem (…) A partir delas [conjunto de frases de anotações de Kafka que contrariam o pessimismo] e de outras passagens poder-se-ia compilar todo um breviário kafkiano da vida positiva, um pequeno livro de consolação, um compêndio de preceitos correctos (…) Ele tinha tendência para sair do eclipse de Deus dos nossos dias e para procurar um clima diferente, de liberdade e ordem (…)” (p.329).



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