GONÇALO M. TAVARES E A SABEDORIA, NO "ENTRE QUEM LÊ", EM VILA REAL
Se Proust recobria a cortiça o quarto/sala manto de silêncio crucial ao seu devir literário, à leitura e escrita que o preenchiam diariamente, a demanda, em 2025, para poder usufruir de um ambiente propício à escuta do nuclear é a do desligar da internet por umas horas.
Gonçalo M. Tavares necessita de estar só, em silêncio, recolhimento de quatro quotidianas horas, só aí mergulha no tempo e o reconhece (tacteando-o, enquanto partícipe daquele): “só a partir das 2h da tarde passo a gostar de humanos”. Ser intelectual nos séculos XIX e XX “era brincadeira de crianças” comparado com a disciplina (ascética) necessária, nestes alvores da centúria XXI, a prosseguir os mesmos fins, em virtude não apenas da multiplicação e abrangência de conhecimento(s), mas, essencialmente, face à parafernália tecnológica, mais gratificante emocional e imediatamente (do que a dedicação ao profundo), que distrai.
A virtude que o escritor, cujo primeiro livro foi publicado em 2001, traduzido em inúmeras línguas, várias vezes premiado, encontra nos videozinhos percorridos vezes sem conta, em 24 horas, por tantos cidadãos, no scroll intentado sem cessar, prende-se com o evitamento do suicídio: “se interrompes o teu trabalho por causa de um like, o que estás a dizer é: o meu trabalho não interessa nada; tenho um trabalho de merda!”. Então, só os videozinhos, o scroll, o like salvam: “se houvesse uma interrupção prolongada da internet, as pessoas suicidavam-se que nem tordos!”. Há um sketche dos “Gato Fedorento” no qual as pessoas fingem que trabalham; sucede que fingir que se trabalha é muito mais cansativo do que trabalhar mesmo. Ora, um sistema que coloca as pessoas horas infindas em tarefas desnecessárias, supérfluas, burocráticas, sem sentido esgota-as e fá-las definhar – e as pessoas, hoje, estão, de facto, extremamente fatigadas.
A leitura é um ato revolucionário ou de resistência, muito especialmente nesta hora, porque quando tudo chama para se estar em permanente companhia, a pessoa, a ler, encontra-se só; numa época de imenso ruído, sonoro ou visual, na atividade de leitura, cada um concentra-se, foca-se, subtrai-se, durante minutos ou horas, à tagarelice; quando o rumor do “actual” tende a preencher todo o horizonte, uma boa leitura alarga a duração, oxigena a empatia, puxa pelo pensamento próprio. A notícia do dia impõe, ditatorialmente, a mesma conversa em 7 mesas diferentes no mesmo café; estando sós, confinando-nos aos livros, podemos, diversamente, escolher em que pensar. Todavia, isto se, e só se, o que lermos forem bons livros – os tais em que tropeçamos em incompreensões, em que temos de reler, em que nos deparamos com as nossas limitações de uma inteligibilidade instantânea da frase, da palavra, do sentido (a facilidade do exercício corresponde, não raro, a um encadeamento superficial de ideias ou de uma narrativa, incapaz de nos desassossegar ou criar o atrito que permite fogo e levantar voo). Porque, contrariando os bons sentimentos, Gonçalo M. Tavares não acredita que a leitura, em si mesma, seja, necessariamente, um bem: imagine-se ler, diariamente, um periódico imobiliário, T3, Ermesinde, junto à estrada principal 300 mil euros, T2, Trofa, junto às piscinas, 250 mil euros…Os maus livros são “poluição que entra pela vista”, tal como música má é “poluição que entra pelos ouvidos”. E se a poluição principia por ser, desta sorte, (inalada) de natureza individual, ela, dada a natureza gregária do humano, desemboca no social e em mundo menos permeado pelo peso de que necessitávamos. E não se diga que não há bons e maus livros, boa e má música, ficando tudo pelo ramerrão do relativismo e do tudo “é uma questão de gosto”. Não é. Pode provar-se, tecnicamente, que não é. É “inacreditável”, insiste Gonçalo M. Tavares, que continuemos, aos Sábados e Domingos à tarde, em diferentes canais televisivos, a passar “música péssima”. Quarenta anos volvidos, a este nível, não se percebe uma “evolução estética” (no que passa nas tv’s). Do mesmo modo é perfeitamente demonstrável que há livros que são mal escritos (fujamos ao “porto de abrigo”, à “resiliência” e tanta expressão e palavra estafada, artificial, incapaz de dizer alguma coisa, língua de pau da qual nada sai, banalidade de imagem, incapacidade de expressão de um sentimento, de um pensamento, de uma relação; nesta medida, quantas vezes alguém sem qualquer escolaridade fala muito melhor do que o obtuso e cansado linguajar de plástico como refúgio e refugo?). Existindo milhares e milhares de livros bons – “todos os dias descubro autores de que nunca tinha ouvido falar e penso ‘que bem que escreve!’“ -, em uma vida que é finita, como é possível gastar tempo em livros maus? (e descobrir, todos os dias, uma nova e boa música, que nunca notáramos, não há-de ser um ofício da ordem do impossível: cuidar do espírito é fundamental mester).
E faz todo o sentido sugerir livros, deixar pegadas, à geração seguinte (o contrário é que é abstruso, como se não houvesse passado e experiência - do que conta, do que é melhor, do que justifica horas de vigília); proporcionar uma linha de horizonte: se na matemática o que se encontra antes é decisivo para compreender o depois, porque é que nas ciências sociais e humanas, na literatura, nos livros havemos abster-nos de abrir e indicar caminhos? O problema dos vazios existenciais é que, por exemplo, a falta de “peso” permite arrastar multidões para os caminhos mais desastrosos. Perguntaram, já há muitos anos, muito antes da sua Presidência, a Donald Trump que livro o havia marcado na vida. A resposta, como já se adivinhava, foi nenhum. E o espantoso, ou nem tanto em função do “esvaziamento”, é Trump arrastar tantos para o precipício.
Regressando à questão da “actualidade” – a bulimia das notícias, como Byung Chul-Han sublinhara repetidamente, em “O fim dos rituais”, e a importância da “duração” que aqueles, os “rituais”, ao contrário das “notícias”, permitem e que o consumismo do sucessivo “breaking news”, ou do escândalo seguinte que se abandona até ao mais recente triunfar -, um dia depois de, em “Entre quem lê”, Miguel Carvalho sublinhar que vivemos o “pior período da história do jornalismo, em Portugal, em democracia”; extremamente depauperado e sempre em busca do que excita e dá “gostos” [Sónia Sapage, agora sub-diretora do “Público”, antiga jornalista da “Visão”, dirá a Miguel Carvalho, quando este lhe anuncia o projecto de livro que tem em mãos que aquele irá “ficar rico”, pois cada partilha de notícia envolvendo o “Chega” ou “Ventura” propicia uma imensa interacção e número de visualizações da página daquele periódico. Sem prejuízo de se poder evitar títulos, nas redes sociais, com palavras-chave que darão tracção a quem, paradoxalmente, se pretende travar, não podemos deixar de concordar com Pedro Garcias quando este afirma que “não podemos ficar condicionados por isso”, na senda do que Manuel Carvalho, recentemente, com sensatez, identificara: em nenhum lado do mundo, houve um “eureka” que travasse a “direita radical” ou “extrema-direita” e já se procuraram estratégias de “evitamento” ou de “exposição” relativamente a tais forças] -, Gonçalo M. Tavares idealiza um “filósofo-jornalista” capaz de estabelecer a diferença entre aquela – a “actualidade” – e o “importante” –, distinguo decisivo, entendendo que só assim se superaria, e não nos fixaríamos, na última declaração de Trump sobre a relação entre o paracetamol e o autismo, as escadas rolantes e outras parvoíces que tais e mais nos concentraríamos na ideia de lugar turístico em Gaza como rédea livre para a barbárie que perdurará nos manuais deste século sob o nosso olhar de consentimento...
A “aceleração” estonteante em que nos inscrevemos diariamente não se encontra em contradição, antes alimenta o sentimento de “atraso” em relação a tudo – já que estamos “atrasados”, ao menos poderíamos desfrutar da “lentidão”. O Ocidente tem um panteão recheadíssimo, “deuses para tudo”, só não existe o “deus da lentidão”, o que não faz qualquer sentido (tão premente à condição humana). Há uma angústia latente por algo que não fizemos, um livro que não lemos, um filme que não vimos, algo que perdemos a assaltar-nos constantemente (e que também passa pelas páginas de “Submersos”, de Bruno Patino). Não sem ambiguidades, não sem o crivo crítico poder assinalar vários problemas com a perspectiva que passa a avançar, Gonçalo M. Tavares viu na Índia pessoas que “não queriam mais”, que se contentavam com o que tinham, tendo pouquíssimo, não cobiçando coisa outra da que possuíam ou em que estavam (claro, o empoderamento dos últimos, uma mundividência que pode perpetuar, ou perpetua, desigualdades inaceitáveis ou desrespeito pela dignidade de milhões de pessoas fariam, aqui, parte do contraditório a estabelecer). O contraponto face ao Ocidente, assim estabelecido, permite, porém, outrossim, questionar em que medida uma “ambição” insaciável não logra colocar-nos, do lado de cá do mundo, em uma eterna insatisfação, incapaz, até, aquela, de nos permitir parar para contemplar a beleza e as dádivas com que somos cumulados. Mais ainda, de resto, quando achamos que “somos demasiado inteligentes para acreditar nisso”, sendo o “isso” um legado religioso, uma tradição na qual pelo menos ao fim do dia havia espaço contemplativo: a oração, momento de revisitação do dia e de perceber o que nele fora intenso, havia valido a pena, e no que tivera de absurdo e ruim - e que havia que reformar/transformar, desde logo no próprio que em si, e nos seus actos, atentava/meditava. Não vale a pena irmos de frente contra a parede, literalmente num carro, ou, por exemplo, pararmos devido à doença (motivada, também, pelo sofrimento que os vazios podem acarretar), quando somos tão limitados (também) temporalmente – devendo, por consequência, ter muito presente essa nossa condição mortal, quer dizer, interrogarmo-nos, em definitivo, sobre a que queremos dedicar o tempo de que dispomos e a quem queremos confiar o tempo após a solidão necessária (“se estou de manhã à noite com pessoas, sem tempo para estar sozinho, tenho sempre a sensação de um dia perdido”, sem prejuízo de, com três filhos, desde que estes vêm ao mundo assumirem uma centralidade em função da qual, em boa medida, se vive; quando está com um problema, Gonçalo M. Tavares senta-se com o pai, octogenário, que ao dizer-lhe algo como, vamos lá ver senta-te aí, o predispõe, ipso facto, a uma propensão outra para diminuir a gravidade da questão, ponto fulcral para a ultrapassar; muitas vezes, em silêncio, difícil explicar, sente esse sanar paterno).
Sempre que vai falar a adolescentes de 14/15 anos, Gonçalo M. Tavares convoca os temas da morte, do suicídio, do sentido para a vida, porque, justamente, é do mais importante que trata a educação. Hoje, não se quer “ser nada” (o “astronauta de antigamente”, para pôr um exemplo, que parece agora não atrair, como quase nenhuma "ocupação" seduz), não há um sonho de realizar algo, o tempo da internet é plano e o presentismo contínuo, ficando uma inteira vida – que, com esta configuração, só pode ser vivida uma vez – por viver, ficando a pergunta sobre a que vale a pena a pessoa dedicar-se por responder. A filosofia, em não se perdendo em emaranhados linguísticos, ajudaria (ajudará) a colocar sob o cutelo esta premência do que vale a pena viver, não tanto uma acumulação de uma bagagem de erudição quanto a ligação entre o teorético e o prático: de que me vale, em matemática, “saber a divisão, se depois sou incapaz de partilhar um pão com o meu irmão, para utilizar uma expressão da tradição cristã?”.
E que a forte “energia” destes dois dias em “Entre quem lê”, sublinhada, neste encontro, pelo literato, se repita e multiplique, levando-nos a uma esperança, primeiro, de que acontecimentos desta índole – a “índole” de uma comunidade ainda mais instalada politicamente, mais nutrida de boas razões ao seu discernimento nesse âmbito, a “índole” de um confronto “existencial” sobre a vida que vale a pena que aproxime cada um de uma “abundância” que a existência reclama e pela qual chama – façam parte de um outro circuito, denso e intenso de contentamento intelectual e de uma irrigação espiritual absolutamente urgente, de Vila Real, e que os grandes livros – sobre a culpa, esta noite, Gonçalo M. Tavares sugeriu o clássico “Crime e Castigo”, de Dostoievsky -, que George Steiner dizia serem “devorados” em tempos de grandes crises, venham agora a ser lidos – e a formar cada vez mais homens e mulheres livres.

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