MIGUEL CARVALHO NO "ENTRE QUEM LÊ"
Claustros do Governo Civil
de Vila Real, esta sexta-feira, ao fim da tarde, com lugares sentados lotados,
e muitos cidadãos de pé, no âmbito do “Entra quem lê”, para a sessão de
lançamento e debate de “Por dentro do Chega” (Penguin, 2025), de Miguel Carvalho, jornalista, Grande Repórter da “Visão” durante 30
anos.
O livro de Miguel Carvalho,
já com 14 mil exemplares vendidos, vai para a 3ª edição, num espaço de duas semanas. Para isso, concorre o facto
de a Penguin ter proporcionado, face
à extensão do livro (mais de 750 páginas), um preço bastante acessível, fruto
de um comprometimento da editora com a polis
e com a ideia de cidadãos informados e conhecedores para se inscreverem com
propriedade na vida da comunidade.
Enquanto que, nos partidos tradicionais, a generalidade
dos militantes tenderá a convergir ou rever-se, digamos, “em 70 ou 80% do
programa” (daqueles), com o Chega,
nota, diversamente, Miguel Carvalho, bastará uma causa, uma bandeira – cuja visibilidade
não é dada por mais ninguém se não por tal força partidária -, mesmo que o
militante rejeite as demais erguidas por tal movimento, para aderir ao mesmo (o
que, portanto, neste sentido singularizará o partido).
Se em “Por dentro do Chega”, do qual pudemos ler já, ao longo da semana, duas centenas de páginas, Mithá Ribeiro – numa entrevista concedida em 2021, agora aposta em livro, dado que este demorou 5 anos a ser elaborado – referia, em jeito de constatação, que o Chega é o partido dos “ressentidos” e, mesmo, dos “reprimidos” (partido com “coração”, mas sem “cabeça”, tarefa que, segundo o próprio, lhe estaria destinada…parece que já não está…), Miguel Carvalho observou, neste fim de tarde/início de noite vilarealense, que se emocionou com algumas histórias de vida de militantes do Chega que, por exemplo, candidatos, em anos consecutivos prolongados por mais de uma década, aos mais baixos estádios da administração pública, e em não conseguindo colocação (por parte de câmaras municipais ou outras entidades), tiveram em Ventura um representante que lhes disse que a responsabilidade por tal ter sucedido era do “sistema”, “capturado e corrompido” – sendo que as pessoas “não têm tempo para pensar no que podiam ter feito para melhor as possibilidades de ocuparem os postos de trabalho pretendido”, antes obtendo, pelo que imaginaram seu porta-voz, o eco de ressonância simplista pretendido. Quando, mais tarde nesta sessão, o jornalista evocou “A elegia de Hillbilly”, de J.D. Vance, foi deste âmbito da obra do agora vice-presidente norte-americano que me recordei (reconheça-se, aqui, em qualquer caso, que a relação entre a “responsabilidade individual” e o que é da ordem do “sistemático”, ou do âmbito “social” nem sempre merece, no debate público, a mesma configuração que, agora, em parte, parece obter, como que se revezando ou invertendo, aliás, as acentuações que os diferentes espectros político-ideológicos tendem a privilegiar neste contemplar daquelas duas dimensões – Vance, em “A elegia de Hillbilly”, conta a sua história de superação relativamente a uma comunidade de origem na qual, ilustre-se, a repulsa pela oratória irrepreensível de Obama era fruto, escrevia aquele, de ali se espelhar uma trajectória pessoal/académica/profissional bem sucedida que funcionava como uma espécie de “dedo acusador” aos que, por desdém, desleixo, inércia [múltiplos relacionamentos amorosos, dependências de álcool e drogas, auto-controlo inexistente, etc.] haviam tido percursos muito menos satisfatórios (senão, mesmo, completamente auto-destrutivos). Que a narrativa de Vance, evidentemente configurado, por si mesmo, como um “vencedor” e, é certo, com a firmeza da mamow e com recurso a uma instituição como o Exército, alcandorando-se a pouco menos do que o self made man tão ao gosto norte-americano siga, sem surpresa, esse caminho, compreende-se como bastante mais próximo do que se acreditava como sendo a pré-compreensão daquele, a saber, uma aproximação da realidade sob uma lente de direita liberal ou, inclusive, libertária; que partindo-se de pressupostos de ordem mais socializante se culmine em idênticas conclusões não era tão evidente).
Sem embargo, Miguel Carvalho, escutando dezenas de militantes do Chega – um dos méritos maiores do livro, registado não sem surpresa por qualquer cidadão atento à matéria, é a quantidade de membros do Chega que fala em “on” para esta obra – compreende que na origem desta força partidária está muita promessa política por cumprir, muita palavra que não foi honrada, muitos anos de desgaste pelo hospital que se programo existir em um dado território e nunca veio ali a ter lugar, ou do centro de saúde que se garantiu nunca sair de dado local e, entretanto, dele se tendo afastado. Neste contexto, duas notas: uma, para a noção de que na ordem de prioridades de vários militantes do Chega escutados por Miguel Carvalho tal realidade se afigurar como muito mais relevante do que os temas que a liderança costuma, em permanência, colocar a rodar; em segundo lugar, ainda a esperança de que o cumprimento actual e vindouro da palavra e promessas políticas venham a fazer com que parte da “clientela” do Chega adira a outro tipo de posturas, programas, partidos.
No estudo pós-eleitoral que levou a cabo nas penúltimas legislativas, Pedro Magalhães já ressaltara como o sentimento de abandono, os correios que se foram, os miúdos e a escola, o centro de saúde, por vezes a junta e até o café, levou, em certas zonas do país, vários cidadãos a votarem Chega. Ora, Miguel Carvalho, na sua investigação, corrobora, igualmente, tal perspectiva, preconizando, consequentemente, uma presença outra, mais densificada, do Estado, não deixando aquelas comunidades à sua sorte. Mais problemático se nos afigura, neste contexto, a articulação e compatibilização, por vozes outras, que se pretendem “compreensivas” com esta mesma situação e cidadãos negligenciados, mas que abjuram, em permanência, (d)a presença de qualquer agência estatal (ou de identificar presenças, outras, da comunidade nacional em tais paragens).
Ao longo de cerca de duas horas, e mais de uma dezena de pertinentes e fundamentadas questões de uma plateia cuja gravitas e silêncio dizem bem da seriedade do momento que se vive em Portugal e a nível mundial com o ascenso de forças de direita radical ou extrema direita (o livro de Miguel Carvalho documenta como imensos militantes do Chega se mostraram contrários à proposta de cerco sanitário à etnia cigana durante a pandemia covid19, naquilo a que, à época, José Miguel Júdice pontuou como tendo sido a primeira vez, desde a Segunda Guerra Mundial, que se propôs um gueto étnico. Neste contexto, a ideia que hoje haja mais proximidade do partido a uma configuração de “extrema-direita” face a um antes de “direita radical” [procurando seguir-se a distinção de tipo académico], a meu ver, tem manifesta dificuldade em proceder – difícil, é conceber como ir mais longe, no denegar da dignidade da pessoa humana, do que numa proposta daquelas (da guetização de uma comunidade).
Um partido não é só formado por um programa, mas também por uma tradição, uma prática – é deste conjunto de elementos, e não de um deles apenas, que se retira o significado político, ideológico, de mundividência, de civilização (ou de manifesta falta desta) daquele. Ora, quando se pretende alegar, como por vezes vemos fazer os que se recobrem em adesões explícitas ou implícitas, a remissão ao formalismo do programa, com vista a obnubilar uma prática – e a condenação de um líder, em tribunal, com trânsito em julgado, por “segregação racial” – e a pretender “justificar” um dar corpo a algo com esta natureza dificilmente se convence qualquer cidadão que tenha um mínimo de atenção e interesse pela coisa pública da bondade da interpretação e da inscrição. Como o ex-deputado do CDS, Francisco Mendes da Silva, escreveu, há escassas semanas, nas páginas do “Público”, de resto, a corporização, a nível local, de tal sigla concorre, como nenhum outro elemento até hoje, para a sua “legitimação” e “normalização”. Há uma grande responsabilidade, pois, que cada cidadão assume nas suas opções a nível local.
No mais da sua locução, Miguel Carvalho notou como seis membros da família Champalimaud doaram, logo à nascença do Chega, 5 a 10 mil euros a este partido; todavia, do tipo de eleitorado que se esperaria que se encontrassem no Chega, no entender do investigador, corresponde a 9/10% (talvez, desta sorte, pouco menos de metade dos cerca de 23% obtidos nas últimas legislativas). Entre a militância, pessoas de diferentes formações e qualificações académicas. André Ventura, segundo o relato do jornalista, pagou 40 mil euros com vista à angariação de assinaturas para a fundação do partido, numa volta que incluiu os chamados “bairros sociais” e membros de etnia cigana…mas também pessoas com 110 anos e crianças de 14, o que, tendo sido detectado pelo Ministério Público – foram centenas e centenas de assinaturas falsas –, não pôde ser atribuído a alguém em concreto (daí o arquivamento do caso). O recente jantar entre Ventura e Gouveia e Melo, promovido por Mário Ferreira (dono da TVI), não tem que ser lido, sem aparato crítico, como a impossibilidade de um acordo de perspectivas (como os intervenientes no mesmo, excluindo o empresário que nada disse sobre o assunto, garantiram), antes sendo possível alvitrar, em hipótese levantada por M.Carvalho, que um mútuo assestar de baterias entre aqueles candidatos seria proveitoso para ambos (uma espécie de Old Firm, o rentável choque simbólico escocês). Isto, enquanto Almeida Ribeiro, antigo espião do SIS [e espiando a candidatura de Seguro ao PS, quando era muito próximo de Sócrates] dirige a Aximage, detida por Marco Galinha.
O autor de “Por dentro do Chega” revela uma história escolar do seu filho de 14 anos, trabalho de Português em powerpoint acometido à turma, tema à escolha, perguntas dos alunos a cada colega remetidas a aspectos técnicos: tamanho de letra, tipo de letra, fotografias escolhidas, ângulo das fotos…Primeira apresentação e primeira pergunta (como que infringindo o estatuído): porque escolheste André Ventura como tema? Porque gosto muito dele, respondeu a adolescente, que acrescentou: e porque com ele Portugal não teria homossexuais e imigrantes – e seria de novo grande. Gargalhada da turma, porventura cruel, não ignorando o duplo padrão ou a denegação da orientação sexual da autora do trabalho (não ignorada por aqueles).
Duplo padrão, embora em outros âmbitos – causa palestiniana, cuja echarpe já exibiu outrora, posições acerca do próprio Chega que outrora recriminara -, em uma carreira no interior do partido qualificada por Miguel Carvalho como “claramente oportunista”, o de Rita Matias (que hoje enche escolas Secundárias e até Universidades de adolescentes e jovens para a ouvir). Desde o início, a única pessoa que Ventura admitiu poder, sobre si, “fazer sombra”, na medida em que a sua eficácia junto dos mais novos – os tiktoks com tracção – lhe era essencial (e mesmo tendo sido o Chega pensado como projecto “unipessoal”), sendo, desde muito cedo, pensado o trabalho “em dupla” (até com os ensinamentos, para este âmbito, do Fidesz de Órban). Hoje, já muitas crianças e adolescentes, sem idade para votar, estão a crescer sob a tutela daqueles vídeos de 15 segundos e publicações que tais, questionando-se que literacia para os media – mesmo com várias escolas a fazerem excelentes trabalhos – e futuro de tais cidadãos e do país.

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