O
artista conformado ao dogmatismo, o progressista a devir em conservador,
o homem que bordou os limites na vertigem do dramaturgo contemporâneo mais
vezes posto em cena, reclamado em todos os fóruns dos mais variados países,
compulsão de álcool, depressão e desespero afiançado, agora, a platitudes? Nada
menos verdadeiro, responde, com punch,
o Nobel da Literatura Jon Fosse, a
redespertar e puxar para a vida o antigo pastor luterano Eskil Skjeldal, combustível no regresso deste à teologia, em
conversas densas e intensas (Misterio y
Fé, Debate, 2025), assumindo, com inteireza, o gesto mais rebelde da sua
vida: “Há poucas coisas mais rebeldes na
sociedade norueguesa, inclusivamente no resto do ambiente intelectual europeu,
em realidade, do que converter-se ao catolicismo e denominar-se cristão. A minha sensação é que converter-me em
católico é o mais rebelde que alguma vez fiz (…) Às vezes, penso que se
dissesse que venho de um prostíbulo, as pessoas não se surpreenderiam mais do
que quando digo que venho da missa; como se as duas coisas fossem igualmente
vergonhosas. Para mim, sem nenhuma dúvida, é uma rebeldia fazer a Confirmação passados os 50 anos. É uma rebeldia contra o culto do corpo e a
obsessão com o sexo, contra a anti-espiritualidade e o materialismo
sociotecnológico positivista”.
1.Com
a sua escrita, Jon Fosse nunca
procurou um modo de expressar-se, ou isso de se pronunciar sobre o que
comumente se entende por realidade. Diversamente, com o seu ofício, quis abeirar-se
da “verdadeira realidade”, chegar à
“realidade elemental”, realidade “não mediada, não ideologizada, não
interpretada”. Uma realidade que, em boa medida, contorna como apofática (“sobre Deus não se pode dizer nada, é diferente de tudo o demais que existe
no mundo. Deus é de um modo completamente distinto de como é tudo o mais (…)
Deus é amor, diz o Novo Testamento, e isto é o único que ali se Lhe atribui de um modo
positivo ou catafático (…) Creio que
estamos mais próximos de Deus em calar
do que em falar, no silêncio do que na charla”), impossível de dizer e, por isso, reclamando ser mostrada – não apenas do que não pode falar-se deve silenciar-se,
mas também do que não se pode dizer, deve
mostrar-se, máximas de Wittgenstein
-, nomeadamente através da forma – a
grande literatura é sempre alegoria,
remete para uma realidade outra que, aliás, não pode expressar-se senão sob
esta espécie -, mas ainda do que se
dá a ver, ensaiando, sem se nomear, como o que lê em Heidegger: “a mim, diz-me que Deus está em tudo o que é, que é
parte de tudo o que é, mas que Deus não está limitado, não é algo que possa definir-se
desta ou daquela maneira, não é um objecto, em certo sentido não é nada que
exista [como existe esta mesa, não é
um ente entre os entes], que está.
Deus é «ser absoluto», é o «próprio ser», é «pura realidade», diz Tomás
de Aquino. A mim, parece-me que é bem pensado e, nesse caso, a resposta à
pergunta de que é o ser, a pergunta pelo sentido do ser, der Sinn von Sein, uma resposta à qual Heidegger nunca chegou,
seria, simplesmente, Deus. Essa era também a resposta para Eckhart. Até certo ponto, é
como se Heidegger colocasse uma pergunta para fundamentar uma resposta já dada.
Á pergunta sobre o que é comum a todas
as coisas que são, quer dizer, à pergunta sobre o que é o ser, Heidegger
chamava a pergunta metafísica fundamental. Mas imediatamente tinha muito
cuidado de não mencionar Deus, talvez o seu pensamento tenha evocado demasiado
Eckhart. Heidegger pensa o ser humano
até onde é possível pensá-lo sem incluir Deus e, por isso mesmo, inclui-O todo
o tempo sem o dizer”. Para Fosse, “o
epifânico nunca se pode abrir de frente, sempre se mostra escondido através de
outra coisa”: “a obscuridade é que protege a luz”.
O
escritor reconhece-se em uma tradição
na qual o sinal de pontuação deve ser
pensado como uma palavra - e a linguagem de Fosse é perpassada pelas ondas com
que conviveu desde a infância – as ondas estão, pois, presentes na forma que a sua escrita adquire, a
escrita dá a ver as ondas, transforma-se em ondulação – e, bem assim, e de modo
fundamental, nela se tacteiam os silêncios e o indizível (os signos de escrita
dão a ver um mundo que aponta a uma realidade outra, elemental, impossível de
dizer que não de uma forma poética, poesia que vem a ser toda a grande
literatura e não um género literário particular, estética e ética
impossíveis de cindir a seu olhar – e para mostrar a realidade é necessária uma
distância da mesma). À espera de Godot,
de Beckett, é “o drama moderno mais cristão que se escreveu” e nO processo, de Kafka, “poderosa” obra poética, “expõe-se a incapacidade de o ser humano notar a proximidade de Deus, de
forma que Deus converte-se numa lei invisível e incompreensível, alegoricamente
falando, claro, e a vida transforma-se numa existência brutal e incompreensível
(…) À sua maneira obscura, também a
obra de Kafka acaba por ser luminosa”. Em síntese, “a literatura cheia de desespero quase que remete ao seu contrário, para
a paz, a paz de Deus”. Como que personificando o que assim nota, olhando à
experiência que traz consigo, “na
obscuridade da angústia é onde Deus está mais próximo. Pelo menos, para mim (…)
Ali, onde o desconsolo roça o seu limite,
ali está Deus”.
2.Criado,
na costa oeste norueguesa, por pais cristãos luteranos, escutando, diariamente, a mãe rezar com sua irmã e
observando, antes das refeições, as bênçãos serem solicitadas para a mesa,
enviado, aos Domingos, à catequese e frequentando, na escola, a disciplina de “Conhecimento do Cristianismo”, membro
de acampamentos de Verão cristãos, Jon Fosse, tímido que se sente bem sozinho e
em contextos sociais pequenos e seguros, não se reconhecerá na Igreja estatal em que fora criado, nem,
muito menos, no “virtuosismo” dos que a frequentavam: Jesus fora “rebelde”, ser de Nazaret “não era fino”, os apóstolos não se
contavam entre a “gente virtuosa”,
mas entre “os pecadores e os cobradores de impostos” e o céu como prémio (de bom comportamento), o conformismo social, o politicamente correcto,
a falta de contraditório e real
interrogação da/na comunidade, numa palavra mais forte, a “ausência de mistério” que ali perpassava afastaram-no (mais tarde,
dirá que foi “demasiado crente” para os amigos que professavam uma política radical e, por sua vez, ele
sustentava uma política radical que
tinha dificuldade em acomodar-se na comunidade
crente). Não tem, de resto, a certeza de que em criança, mau grado o
episódio, aos sete anos, de hemorragia que quase o levou à morte e que viria a
ser um ponderoso momento da sua trajectória de vínculo religioso (tal como,
mais tarde, pelos 30, certa “visão” que o possui e o abala), tivesse realmente
fé – e, numa imagem poética, refere, mesmo, que as crianças são, elas mesmas, “missa suficiente. Se há algo que os
Evangelhos deixam claro é que as crianças levam o reino de Deus nelas. Os
Evangelhos repetem-no uma e outra vez”.
Com
o passar dos anos, o dramaturgo e romancista – escrever teatro é “escutar
algo espacial” e escrever narrativa é “escutar algo temporal” - percebeu que as
fisionomias do escapismo de si mesmo,
engendradas pelo humano, são mais do que muitas, o que se explica, prima facie, pela nossa “facticidade”:
“A nossa tristeza, a nossa alegria e, em especial, a nossa angústia, evidenciam
a nossa facticidade: formamos parte das coisas que são, mas, ao
mesmo tempo, distinguimo-nos delas, porque somos conscientes do ser, não só de
este ou daquele ser, senão de que se é, de que se tem que ser, como disse
Heidegger. Somos conscientes de que nós
mesmos existimos e de que logo deixaremos de existir (…) A vida, a existência é enfrentar-se, em
cada instante, ao final, ao fecho, à morte; de facto, em qualquer momento,
qualquer um pode pôr um ponto final. Viver
é ter a liberdade para a morte, essa é a grande potência do ser humano, e a sua
maior impotência”. Neste contexto, para escapar
de si (desta condição humana), o
humano procura, reitera-se, entregar-se ao mundo
– ele que sabe que está no mundo, mas não
é do mundo; o sujeito, o ser do ser
humano, não pertence ao mundo -, de desaparecer/dissolver nele, na rotina,
no trato do quotidiano com as coisas, nos mass
media, nas redes, numa cultura
popular trivializada. Radicalmente: o
significado último, porém, de imergirmos e submergirmos no ruído profuso e nas
imagens sucessivas é o de que “temos
medo de nós mesmos e de Deus”. Melhor fora, diferentemente, que os homens e
mulheres olhassem à sua volta, mirassem “as
montanhas, o céu e as estrelas, e perguntassem o que é tudo isso, porque é que
está aí. Significa alguma coisa que aí esteja? Porque existe? Está aí por
alguma razão ou é completamente fortuito?”.
3.O
teólogo (norueguês) Eskil Skjeldal partilha
uma parte do percurso de Fosse: também ele pertenceu à Igreja estatal norueguesa, teve o seu momento de afastamento e
exaustão relativamente aquela comunidade – o Nobel da Literatura de 2023, por seu turno, colapsara, entre o
vértigo de viagens sem descanso, conferências a eito, a moderação [fumar,
escrever, beber, ler] nunca foi o seu forte, passara por depressão e excesso de
álcool, com meses em que, ainda que sem se embriagar por completo, bebia muito,
tendo perdido o apetite e alimentando-se, exclusivamente, a vinho e vodka, numa via de quase suicídio prolongado não consciente; Fosse atribui a um carácter muito reservado do povo
norueguês a causa de, entre aquele, o consumo de álcool atingir proporções
muito consideráveis, álcool sem o qual o “país
não funcionava”; porventura, adivinhamos, a explicação não tem um carácter
excludente, dado que com Marguerite
Duras, alcoolizada durante certos períodos de vida, aprendemos, de igual
sorte, ainda que “o álcool não consola,
não preenche os vazios psicológicos, tudo o que enche é a ausência de Deus”
-, por uns tempos deixa de ler teologia, mas os diálogos com Fosse, um homem com
formação literária, filosófica, teológica – sempre que dialogamos com alguém
sobre fé há algo de familiar, mas também de novo que advém, sublinha, cativado
pela “confiança profunda” que vê
radicada no literato por essa filiação,
a qual, contudo, teve a precedê-la o sofrimento e o desespero (“a fé veio até mim através do sofrimento e
da dor (…) Aproximei-me da fé por
meio da depressão e da angústia (…) O
desespero fortalece a fé”), além de diálogos profundos, sobre a fé, com a
sua actual mulher, também católica e sendo que Fosse era “crente” muito antes
de ser católico –, fazem-no retomar o
interesse e motivação para tais âmbitos – e são esses diálogos, três, ocorridos,
oralmente, em 2014 que, agora, Fosse reexamina, passa a escrito, desenvolve e
sistematiza (Misterio y Fe, Debate,
Barcelona, 2025) – e decide-se, igualmente, Skjeldal, que nestas conversas não
raro assume o papel de advogado do diabo,
pela conversão ao catolicismo (no
caso de Fosse, que tinha Mestre Eckhart por companhia desde os anos 80 e, se
havia espaço para Eckhart na Igreja também haveria para ele, o sacramento da Confirmação é recebido em 2013, na
Igreja de São Domingos, em Oslo: “e uma
coisa está clara: a minha conversão, a minha confirmação, o sinal marcado na minha fronte, só me fizeram bem”).
Para
Jon Fosse, a escrita – que se lhe afigurou, a dado momento, como substituto do
medo, da inquietação, da tristeza - torna-se uma religião (com Deus nela
presente), uma “casa em que está”
que, juntamente com a fé, lhe permite transitar (n)a obscuridade (“para mim, escrever é o que aguenta a dor da
obscuridade. Escrever e, agora, também a fé”). Na perspectiva do novelista, arte que seja poderosa (e a
arte, por definição, é inovadora, não
precisa de esforçar-se para isso, porque está na sua natureza), mais do que
qualquer outra coisa, “defende a
dignidade da pessoa, engrandece-a (…) A dignidade humana não pode
demonstrar-se, mas a arte, tal como eu a entendo, é, no fundo, e de certa
maneira, uma transformação daquilo de Deus que há no ser humano, do
singularmente universal no ser humano; poderia dizer-se, demonstra-a mostrando-a”.
Duvidando de muita coisa, Jon Fosse só não duvida de que há uma chispa de Deus em
cada pessoa.
Além
de, na conversação com Eskil Skjeldal, recordar outras sentenças de Wittgenstein – O misterioso não é como é o mundo, mas,
melhor, o facto de que seja; o
olho que vê não se vê a si mesmo; o sentido do mundo tem que estar fora dele
– coloca-se, de novo e em
permanência, sob a lâmina que recorta a existência (a morte e a liberdade -
face aquela): “o que a vida humana é não se vê até que olha desde o limite que
constitui a morte (…) Podes escolher a
loucura que constitui a fé cristã – para dizê-lo com São Paulo -, e, portanto,
acreditar, ou podes não escolhê-la. Podes decidir que tu próprio, a tua solidão
e a tua liberdade para a morte são parte de Deus, ou podes optar por ver-te a
ti mesmo unicamente como parte do mundo, como uma coisa mais, talvez como res cogitans, uma coisa pensante, que é o que Descartes e muitos outros depois dele
consideram que o ser humano é”. A sua decisão é clara: “eu, pela minha parte, converti-me ao
catolicismo e considero-me cristão”. Tendo partilhado vida com quaquers, o silêncio assume-se como
vital e, nas celebrações eucarísticas católicas “o que se repete uma e outra vez é uma espécie de silêncio e isso
enche-nos de uma incompreensível densidade de sentido”. Mais, “a missa dá descanso ao corpo e paz à alma,
dá sossego (…) Paul Claudel diz que
a missa é um «drama sagrado» que supera todos os outros dramas. Escreve que,
por comparação, inclusivamente Sófocles resulta insípido. E tem razão: nenhuma
peripécia pode comparar-se com a consagração. E nenhum final com a comunhão”
[convidado para o Encontro com os
Artistas, promovido por Bento XVI,
na sequência do 10º aniversário da Carta
aos Artistas, de João Paulo II,
ainda antes da sua conversão católica, Fosse comunga, então, na Basílica de São Pedro, pela primeira vez.
Na altura, não se dera na conta das normas
em torno da comunhão; hoje,
gostaria que a mesa da comunhão fosse
aberta a todos. A conversão levou-o a
rezar todos os dias, “há força no sinal
da cruz”, e ir à missa quase sempre uma vez por semana ainda que quando se
encontra em localidades norueguesas onde a comunidade católica mais próxima
fica a muitos quilómetros não consiga fazê-lo, a ter um laço institucional que
aprecia, partilhar a fé com outras pessoas agrada-lhe, ajoelhar-se diante do
altar, comungar com os demais, ser tão grande ou tão pequeno como for,
inclusivamente formar parte do divino: “creio
que há uma relação entre Deus, Jesus Cristo, que viveu e foi crucificado, e eu
próprio. Eu creio que Jesus Cristo pode salvar as pessoas, também a mim”].
A
fé continua a dar muito que pensar a Jon Fosse – voltas e voltas sem ter tudo
absolutamente claro. Por exemplo, se
“existe um inferno
onde a maldade se transforma
em nada. A imagem do fogo
é bastante acertada. Algo arde, transforma-se em outra coisa e, no final,
transforma-se em nada. O mal puro,
valha mencionar Auschwitz, pode, para mim, significar que existe um inferno,
para usar essa palavra. E se continuas a pensar, seguindo Eckhart, dirás
que Deus é precisamente nada. Nisso, o seu pensamento coincide com o budismo. O mal destrói-se e passa a ser
Deus, ou passa a ser aquilo que, no seio da linguagem, com uma palavra, há que
denominar nada”. Certo dia, um
nipónico disse a Heidegger que o que o filósofo referia por “ser” na cultura
japonesa chamava-se “vazio”: um vazio “transformado em plenitude por Jesus Cristo;
Deus abandonou o Seu vazio e Se Fez homem, e linguagem, em e com Jesus Cristo”.
Se existe no mundo o mal puro, como Auschwitz mostra, também tem que existir o
seu contrário. Nicolau de Cusa,
interrogado se Deus é nada, responderia que Deus não é nada, porque nada ainda tem um nome, é uma palavra e Deus
está acima de tudo e do nada, e tampouco é certo, porque Deus é, antes, da
verdade. O purgatório, enquanto
estado intermédio que separe o mal do bem, “parece-me que tem muito sentido”, mesmo que se fale de realidades
que estão “fora do tempo e do espaço”
(e nós falamos ancorados no tempo e no espaço) para as quais se intentam
imagens (mas, sim, “creio que o bem se
separa do mal e que o bem volta a Deus”, o que “não quer dizer que o que desapareça no inferno seja uma pessoa (…) O mal desaparece no inferno, para usar essa
palavra, mas a pessoa não; a pessoa é sempre boa e má, mas basicamente
boa”).
4. O artista conformado ao dogmatismo, o progressista a devir em conservador,
o homem que bordou os limites na vertigem do dramaturgo contemporâneo mais
vezes posto em cena, reclamado em todos os fóruns dos mais variados países,
compulsão de álcool, depressão e desespero – “o desespero fortalece a fé” –
afiançado a platitudes? Nada menos verdadeiro, responde, com punch, o Nobel da
Literatura Jon Fosse, a redespertar e puxar para a vida o antigo pastor
luterano Eskil Skjeldal, combustível no regresso deste à teologia, em conversas
densas e intensas, assumindo, com inteireza, o gesto mais rebelde da sua vida: “Há poucas coisas mais rebeldes na sociedade
norueguesa, inclusivamente no resto do ambiente intelectual europeu, em
realidade, do que converter-se ao catolicismo e denominar-se cristão. A minha
sensação é que converter-me em católico é o mais rebelde que alguma vez fiz (…) Às
vezes, penso que se dissesse que venho de um prostíbulo, as pessoas não se
surpreenderiam mais do que quando digo que venho da missa; como se as duas
coisas fossem igualmente vergonhosas. Para mim, sem nenhuma dúvida, é uma
rebeldia fazer a Confirmação passados os 50 anos. É uma rebeldia contra o culto
do corpo e a obsessão com o sexo, contra a anti-espiritualidade e o
materialismo sociotecnológico positivista”.
Ainda
que com condicionamentos, entre os quais os de natureza familiar/social (a família e o lugar, geográfico e social, em que se nasce), o ser humano é
livre (o facto de que a partir do que sucede no presente não poderemos deduzir
o que se irá passar no futuro prova, segundo Wittgenstein, que a vontade é livre) e não há uma separação radical entre corpo e alma, crê, com o
cristianismo, e estribado na sua experiência artística – lá onde espírito e matéria também não se cindem – Jon Fosse (é por ser, em boa medida,
uma religião do paradoxo e da poesia [e a vida está cheia de paradoxos e,
assim, o cristianismo assemelha-se muito à vida], que o escritor aprecia de
sobremaneira o cristianismo, seguindo, ademais, na esteira dos que entendem o
futuro cristão será místico). Para o
qual a questão da teodiceia é vista
da seguinte forma: “Deus é omnipotente
mediante a sua impotência, mediante o seu amor e a nossa liberdade [só por
amor, dando liberdade às criaturas, sem a qual não há pensamento, nem poesia,
nem ciência] (…) Poderia dizer-se
que o Deus crucificado é o Deus dos impotentes. É o Deus que vence mediante a
sua impotência. E este é o Deus cristão que Jesus anunciou e Ele próprio era.
Trata-se de uma dialéctica estranha, a possibilidade de ser potente mediante a
impotência, mas é assim (…) A cruz é
um símbolo da impotência, do sofrimento e, ao mesmo tempo, da potência na
impotência, dessa potência que só pode proporcionar a impotência (…) Com a cruz, com a morte de Cristo na cruz,
a morte transforma-se com a ressurreição no contrário do sofrimento, poderia
dizer-se que se transforma em sossego, em paz. Em paz e amor. E amor pressupõe
que a vontade é livre. E a paz, o sossego, são constitutivos do amor”.
Para
concretizar a ideia de potência na
impotência, aduz, de novo, Jon Fosse a experiência enquanto artista, aqui
sob a forma de parábola: “o bom artista, o bom poeta não é precisamente
um perdedor que tem êxito? O artista é um excêntrico outsider de existência
neurótica que tem êxito na vida através da sua arte. Em certo sentido, os
artistas são gente impotente que se faz forte graças à debilidade, não graças à
força”.
Como
a salvação estará para lá do espaço e do tempo, não é com
demonstrações científicas que se revitalizará a crença em Deus, até porque
resolvidos todos os problemas científicos
– e que grandes avanços constatamos todos os dias e muitos dos seus benefícios
colhemos – todas as grandes questões continuam por responder (como responder à
morte de um ente querido, a que dedicar a vida, com quem partilhar o nosso
tempo, a reacção à doença, a feição de uma amizade, etc. etc.) e, além do mais,
“como poderia explicar-se Bach de um
modo materialista e positivista, para usar esse conceito?”.
Da
sua experiência teatral, Fosse, um homem que nos apoios públicos à habitação, à
compra pública de livros para apoiar autores, etc. se diria “socialista” (o que
não vê incompatível com “professar a fé católica, ou a Doutrina Social, pelo
contrário”, entendendo, inclusive que aqueles que, neste âmbito, anteriormente se opunham militam agora numa “espécie
de frente comum contra a coisificação do ser humano, contra o culto do corpo,
contra a sexualização de todo o tipo de coisas, contra a quantificação – isso de
tudo se medir em números e em dinheiro – e a plutocracia, e a favor do amor ao
próximo, a solidariedade, o respeito pelos necessitados, pela dignidade do ser
humano, pelos valores”; em economias
mistas, no fundo, “somos todos social-democratas”, como dizia Einar Forde e, do ponto de vista
partidário, ainda nas mais recentes autárquicas norueguesas votou quer no Partido Liberal, de centro-direita, quer no partido Vermelho,
de extrema-esquerda, sem obliterar,
contudo, a sua preocupação por um “capitalismo selvagem” cada vez mais
estendido na Terra, face ao qual a Igreja ainda é “um travão”), mas no cultivo
de palavras antigas que não quer ver votadas ao desaparecimento ou na defesa da
literatura séria face à policial, na preferência por Bach face aos Beatles se
crê um conservador cultural, aprecia
o minimalismo presente nas igrejas
luteranas, mas crê na junção de aparentes contrários face ao esplendor barroco de certas catedrais católicas,
conta-nos que um diretor de teatro, Ramin Gray, lhe confidenciou, certo
dia, que a cultura do teatro se desenvolveu na cultura cristã, e não na
islâmica, por causa da ideia do Deus uno e trino presente na primeira (“Três e
Um são o mesmo. E tampouco é que isto seja muito difícil de entender, pelo
menos para quem tenha experiência com o teatro. O próprio conceito persona, que vem do grego e significa máscara, é de considerável ajuda. E
também o facto evidente que, numa boa representação teatral, todas as partes se
fundem numa totalidade, e é a totalidade, o espírito da totalidade, a que fala,
para dizê-lo assim, a que apresenta a sua alocução silenciosa, digamos”). Deus
que “está no mais profundo do teu
interior e mais afastado que tudo o mais”.
O
dogma é necessário, uma orientação clara é necessária, mesmo que “a vida viva”
e não se possa dirigi-la dogmaticamente: no encontro com o indivíduo há que
escutar mais a consciência, ter em conta o que significa ser um “próximo” (um “semelhante”),
do que o que diga a doutrina.
Pedro
Miranda
Comentários
Enviar um comentário