LUME

 

Tentado a escolher o surpreendente e imaginativo “dente que se perdeu” por detrás – ou melhor, por dentro – d’O Anti-sorriso de Gioconda”, a deliciosa malandrice de “Vaqueiro”, a capacidade de dizer da impenetrabilidade de Deus em “Tétano”, a inquietante indagação sobre se a “angústia” da Mãe, em “Vigília lacrimosa” pelo Filho, gravada em pedra (“A pietà de Mogadouro”), resistirá “ao assédio do ácido dos séculos” (os tempos erodirão a pedra, ela mesma, e, em particular, até, aquela talhada no horizonte espacial de onde se mira, Mogadouro?, rasurarão, aqueles, a história que nela, na pedra, se narra?, mais ainda, o “ácido” que os permeie roubará, de tal modo, a humanidade da humanidade que a(s) mãe(s) deixará (deixarão) de chorar o(s) filho(s)?), a força tremenda, a exatidão, a dor, o eco (homenagem) devolvido a Garcia Lorca em “In Memoriam II. A Federico Garcia Lorca” (“Ouviu-se primeiro um tiro/e em seguida nenhum ai/Mas o ai que não se ouviu/teve mais eco e fragor/que algum ai jamais ouvido”), o canto do(s) poeta(s), ser “abrasado em chamas que se presumem sagradas/e que não ardem somente, mas também alumiam”, que possui “a fronte atlética franzida, do esforço/circense de engendrar tropos, imagens, expedientes vários” (“Poetas e deuses”) e que grita(m) liberdade – “a minha detestação da tirania e do cárcere,/até transbordarem/dos limites do universo inteiro” (“Fala póstuma do melro ao poeta”) -, eros dito por inteiro (“Se o amor é uma iguaria destinada a dois,/têm os dois de se empenhar nela./Não fales, entrega/o teu oiro em silêncio./Sustém essa enxurrada de palavras/e deixa que cada um de nós subjugue,/arbitrário, a boca do outro”), o corpo aceite com suas mazelas e sem medo de ser transitado, aceitação do devir existencial – “Que vigorem as trevas, chuva e frio/com que se tece/o branco lenço da melancolia” - os talentos, como os da parábola, multiplicados com a certeza de uma construção, uma obra sedimentada – “eu fiz a minha casa com a pedra/que me deste. Usei a tua madeira,/os teus metais” -, em um balanço (existencial) que contém uma beleza outonal, lá onde efusões intensas de estação precedente darão lugar a uma temperatura mais amena: “Derrama, Senhor, o bálsamo das sombras/sobre o quadrante dos relógios de sol/e sobre tudo o mais que o Verão escaldou”. A aceitação do inverno – “com decoro” - torna-se, aliás, menos permeável a lamentações quando se “recrutaram companheiros” que ao lado são esteio – “somos uma parede” – e permanece o enamoramento da vida – “Mas possa eu, Senhor, não perder nunca/os olhos com que ao frio me enamoro/das folhas que se movem casuais/ao vento outonal das alamedas” -, acabo, porém, sempre em torno de “A partilha do lume” (Assírio e Alvim, 2025), o mais recente livro de poesia de A.M.Pires Cabral (perpassado por uma espécie de panteão íntimo de referências literárias, históricas, pessoais com as quais se dialoga e a quem se presta tributo, incandescência que respigará no lume do qual o humor e a “candura”, a tal da idade da inocência em que se trocavam cromos, nunca se apartam), por prosseguir as “variações” em torno de um mote, ao qual o sujeito poético regressa também nesta obra e, assim, no rasto de “A noite em que a noite ardeu” (um poema de que gosto muito, também de A.M. Pires Cabral, presente em livro homónimo do autor) transcrevo hoje, aqui, com a devida vénia, “Noche escura” e, com ele, o reivindicado “lamber as feridas com lascívia” (de que, portanto, não se abdica):


En una noche oscura, […]
Salí sin ser notada,
Estando ya mi casa sosegada.
 
São João da Cruz

 

Saio para a noite, furtivo como um lobo,
Decidido a cobrar promessas
que me foram feitas num tempo muito longe,
muito embrulhado em névoas,
e jamais cumpridas.
 
Regresso da noite com a boca ensanguentada
Dos seus vinhos amargos.
 
Na noite frutificaram
medos e aparições.
 
Mas ninguém se dispôs a reembolsar-me
do que há tanto tempo me é devido.
 
E agora, prestes a apear-me da noite,
lambo as feridas – imaginem! – com lascívia,
não para que as sare a saliva,
mas para que impeça, como
a saliva do vampiro,
o sangue de estancar.
 
Mantendo desimpedido
o fluxo dos clamores.   




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