1.Nesta
crónica, nunca se começa por “Dizer que”. Aqui, prefere-se escandir uma
palavra. Como, por exemplo, cacimbo, sherpas, gemónias, ou, talvez, langor –
palavras que conservem o eco da alegria de um confronto primaveril que convida
aos exercícios plásticos de as apor em papel e ver como ficam entrelaçadas com(o)
vizinhas ou irmãs.
2.Natália
Ginzburg e Leone Ginzburg,
seu marido, passaram uma temporada inteira à procura de uma nova casa: ela,
sempre escolhendo moradias rés-do-chão, com vista para jardins, árvores e
arbustos – locus amoenus de idade
precoce moldado; ele, sempre afeito a apartamentos de cujas janelas se contemplassem
telhados e cimo de casas, chaminés, campanários, vistas que davam para a sua
meninice (“Nunca me perguntarás”, Relógio
d’Água, 2025). Largo período após a estação de procura, ei-los em uma
(nova) habitação que se furta a estes dois “tipos-ideais” de casa. A prova,
então, de que se sobrevive, e não se regressa necessariamente, à infância, ao
contrário de certa inclinação literata o afirmar? (por exemplo, Eliane Brum, em “Meus
desacontecimentos” [Companhia das Letras,
2024], escreve assim: “a primeira vez
que vi um cachorro perseguindo o próprio rabo, em círculos cada vez mais
apertados, me comovi até às lágrimas. Tantas vezes acreditei estar avançando,
mas apenas retornava à infância, em círculos cada vez mais apertados. E este,
apesar do que parece, é todo o avanço possível. Até morrermos em posição fetal”);
a vindicação de maturidade e das soluções de compromisso?; o sublinhar do
ditado popular de que o bom é inimigo do
óptimo?
3.Como
que invertendo os termos de Javier
Cercas – a ficção é a mentira
necessária para dizer a verdade -, Rentes
de Carvalho afiança que “além de conhecimento da vida, das regras da
gramática e de alguma capacidade de dar
à mentira um cheiro de verdade, escrever ficção é arte ao alcance de muitos” (“Cravos e Ferraduras”,
Quetzal, 2024). E, no entanto, a voz do narrador,
no último escrito do homem de Estevais (emprestado
a), parece confundir-se com a do autor
quando aquele se lamenta, na vivência de uma derradeira etapa da existência,
nos seguintes termos: “Infelizmente, não
há escola onde se aprenda a ser velho”. Quando a experiência nos coloca,
uma e outra vez, em variegados âmbitos e figuras, perante o elemento-tipo do
velho general a devir em soldado, e a ingénua e pouco subtil
ideia (bota de elástico) de que deve
preservar-se, colocar-se acima do último preito, nos assola enquanto o vemos,
guloso, lançar-se por entre o ruído e a espuma é porque ainda não havíamos
contemplado, verdadeiramente, o mais rijo combate a que se atém: “na juventude falaram-nos da sabedoria e da
serenidade dos velhos. Nós sentimos, porém, que não conseguimos ser sábios nem
serenos; além do mais, nunca amámos a serenidade e a sabedoria, sempre amámos,
pelo contrário, a sede e a febre, a inquietação das buscas e os erros”
(Natália Ginzburg).
4.Vou
procurando seguir algumas das apropriações literárias que o contemporâneo
realiza de uma narrativa fundacional da nossa cultura (a qual, segundo Steiner, é formada por Atenas, Roma e Jerusalém), em especial a
dos Evangelhos, e deparo-me, na mais recente revisitação a que acedo, com a
elegante escrita de Amélie Nothomb,
em “Sede” (Guerra e Paz, 2023) – “quando me deito para dormir, esse simples
abandono proporciona-me um prazer tão grande, que tenho de me impedir de gemer.
Comer o mais humilde dos caldos e beber água, nem que não fosse fresca,
arrancar-me-ia suspiros de voluptuosidade se eu não me contivesse. Já me
aconteceu chorar de prazer ao respirar o ar da manhã” (imagina o Cristo a dizer, em vésperas de
crucificação, num intenso elogio à vida e aos sentidos, em uma vincada afirmação
de uma real encarnação). Neste conto, na caracterização de Maria, vista pelo Filho,
temos uma mulher que, pura e simplesmente, passa ao lado do mal: “o mal é-lhe estranho, a tal ponto que não o
reconhece quando se cruza com ele”.
Nos
encontros que a existência me proporcionou com vocações de santidade – a qual surge tão bem descrita pelo Papa Francisco, na Exortação Apostólica
Gaudete et Exsultate, documento no
qual nota, evidentemente, que “ser santo
não significa revirar os olhos num suposto êxtase” e nos devolve, com
realismo, “a classe média da santidade”
(presente, na ilustração do pároco do fim
do mundo, numa ida ao mercado em que se recusa a má-língua, em encontro
fortuito com conhecidos; em pessoas que se fortificaram na maternidade/paternidade,
recusando o cansaço para prestar, sucessivamente, atenção aos mais pequenos,
noite dentro; naqueles que tiveram a devida atenção e o diálogo acolhedor com o
pobre sentado em cartão na rua, na cidade, desprezado pelos demais transeuntes…),
porventura este tenha sido um dos signos mais tocantes: em muitas ocasiões, nem
reconhecerem o mal quando se cruzavam com ele ou quando aquele lhes era atirado
- responderem ao mal com o bem, não se deixando aliciar ou aprisionar naquele;
ou, mais tarde, em o notando, então, por vezes, ignorando-o, não lhe dando
importância, e sempre prosseguindo com a maior das naturalidades.
5.Um
dos temas que, em Cravos e Ferraduras (Prémio
Fundação de Mateus), Rentes de
Carvalho mais glosa – registo três micro-contos ou crónicas dedicados ao
assunto, o que o faz sobrelevar sobre praticamente todos os demais de que o
autor, aqui, cura – passa pelo amplo entusiasmo que as viagens, aos mais
recônditos lugares do planeta, tendem, naturalmente, a suscitar em quem os
vivencia (viagens essas, em função das companhias low cost, mais democratizadas
do que algum vez sucedeu). Todavia, no olhar cru do romancista, nem sempre
com um aproveitamento bastante. Um dos seus personagens, perante tudo o que vê
por esse mundo fora, reage, invariavelmente, do mesmo jeito: “Dá-se o caso de que, seja a Galleria degli Uffizi em Florença, o
Hermitage de São Petersburgo, o Taj Mahal,
a Cordilheira dos Andes, a selva africana, os mosteiros da Grécia, a paisagem
da Anatólia, perguntados sobre tudo isso e o mais que já viram, só se lhes tira
um comentário: «É espectacular! Gostámos muito!». Ao ler a observação,
evoquei, em um primeiro instante, o João
Botelho que, no Museu da Vila Velha
(Vila Real), na segunda década deste século, partilhava como, na sua juventude
universitária, em Coimbra, era comum, entre o seu grupo de amigos, ver(-se) um
filme e passar uma semana a discuti-lo - e como a reacção mais habitual, que
verifica nos mais novos, agora, a uma película vista no grande ecrã, é
“gosto/não gosto”…e adeus (a perda de
entusiasmo por uma boa conversa?, o não investimento ou desprezo pelo
pensamento especulativo, ou pelo pensamento crítico (nomeadamente, com aquele
propósito de dilucidar uma expressão cinematográfica)?, o cinema também despido
de uma aura sobre a qual valha uma redobrada atenção?, a rarefacção vocabular e
de background face ao tempo académico
de Botelho?, o frenesi que não integra o parar para pensar e discutir um
filme?, um pragmatismo que não permite, nem concede, dois segundos fora do
estrito roteiro vocacional?); em um segundo momento, e reconduzindo-me ao
específico das viagens, lembrei-me da preparação metódica, meticulosa e
exaustiva de cada viagem (em família/amigos) que, nos para os anais da
caracterização dos governantes portugueses das últimas décadas, era atribuída a
António Guterres (de quem se
dizia/escrevia [e de novo se corrobora em “O mundo não tem de ser assim”, Casa das Letras, 2021] conhecer toda a
História e pormenores relacionados com os locais de veraneio a visitar, em
tempo tecnologicamente muito distante dos GPS,
Google Maps e demais delícias à
distância de um clique); e, nele, como que antevi, e passe a analogia, o que Maria Filomena Molder (“As nuvens e o vaso
sagrado”, Relógio d’Água, 2014) viria a afirmar sobre o juízo estético: se o juízo
estético é reflexivo, como
claramente é para Kant, o ‘eu gostei’
não chega, diante de uma peça, de um poema, pois que também ‘eu gostei’ de
maçãs e de apanhar sol. Para se preencher ‘eu gostei’, para que haja fruição
estética reflexiva, impõe-se uma procura de comparação, de conceitos, “uma
deslocação, uma transferência: colocar-se no lugar de qualquer outro”. Se
Acasto não está seguro de sentir o que verdadeiramente sente, há uma emoção, um
sentimento, uma esperança (?), uma expectativa por cumprir. Ser capaz de a
preencher, de a permear, de a densificar, de a cumprir, suprema recompensa, é um trabalho árduo, muito árduo
mesmo, mas nenhuma felicidade sem dificuldade haverá. Que labor, mesmo para
viagens/férias de Verão, se se quiser saltar a objecção do narrador de Rentes
de Carvalho…
Quanto
a Natália Ginzburg, em Nunca me
perguntarás, recorda os últimos largos anos em que Emily Dickinson não saía de uma anódina aldeia em que vivia no
Reino Unido; no último decénio e meio da sua existência, aliás, praticamente
não saiu de casa – o que também impressionou Rosa Montero (“O perigo de estar no meu perfeito juízo”, Porto Editora, 2023) -, construindo, aí
e sem embargo, um dos mais marcantes mundos (poéticos) que conhecemos. Além de
destacar o seu completo alheamento da fama (e, bem assim, do passeio nos palcos
dos lugares mais célebres), o referendo do brocardo segundo o qual, sem
prejuízo das viagens exteriores poderem espoletar, e seguramente originando – e
mais presentes em certas viagens e experiências do que em outras, mais afectando
uns do que outros -, peregrinações pelo íntimo, “a única viagem é a viagem
interior” (com e sem viagem exterior)?
Boa
semana.
Pedro
Miranda



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