CONTINUAR A PENSAR FÁTIMA
Continuar a
pensar Fátima
1.Se a desatenção, no nosso país, fora do
mundo religioso, a um fenómeno tão marcante do século XX português
como o das "Aparições de Fátima" foi sendo arguido, pelos seus
estudiosos, como inaceitável - precisamente dada a sua relevância
social e política - e crivada de preconceito (acriticamente
mantido), um conjunto de obras, nos tempos mais recentes, de autores de
diferentes áreas do conhecimento, longe do religioso, pode vir a constituir-se
como momento de viragem susceptível de impugnar aquela crítica. Fátima
e a Cultura Portuguesa (D.Quixote, 2018), de Miguel Real,
adiciona um contributo e posicionamento crítico, vindo de um professor de
Filosofia, investigador e prolixo autor no âmbito dos estudos sobre a cultura
portuguesa, escritor, romancista, ensaísta, crítico literário.
2.Há um ponto, para mim central e decisivo,
de entre os diferentes fios deste novelo a que o autor se dedica (essa aparente
dispersão torna-se característica, se tomarmos, por exemplo, por
comparação Nova Teoria do Mal), que queria destacar, nesta
abordagem. Compulsando os mais recentes escritos acerca da temática de
Fátima; procedendo, pois, a esse estado da arte, Miguel Real toma
por conclusão um dado que é determinante para o modo como cada um se posiciona,
depois, relativamente a esta questão: os pastorinhos, as crianças
que relataram a experiência superabundante que viveram não
mentiram, não inventaram acerca desse relâmpago que estremeceu as
suas vidas (e que mexeu com muitas mais).
3.Importa, neste contexto, situar, com maior
precisão, o tópico vindo de mencionar: o facto de as crianças não mentirem, não
terem inventado uma experiência - na conclusão de Miguel Real - significando, é
certo, o descartar de teorias de conspiração e de mãos
negras na origem de um fenómeno que viria a adquirir contornos e
dimensões de inusitado alcance, não significa, outrossim, que as concretas descrições/imagens e narrativas acerca
de específicos conteúdos dessa experiência passem sem um escrutínio vigoroso,
uma crítica acérrima. Os testemunhos primeiros, a que alguns convencionaram
chamar Fátima I passam no crivo do ensaísta (que os entende
espontâneos, genuínos), o mesmo não podendo referir-se dos acrescentos e
formulações de Fátima II (mais construídos, ideológicos; no
que, aliás, quem conhece alguma literatura sobre o tema, sabe, pois, ser
formulação que está longe de ser original).
4.Como diria Jean-Luc Marion, é preciso
pensar o impensável (o insusceptível de ser pensado, o que está para
além/excede o pensamento) e, em assim sendo, intraduzível (e inacessível) a(s)
concreta(s) experiência(s) de Lúcia, Jacinta e Francisco,
ela(s) remete(m) Miguel Real para pensar, com Rudolf Otto, o
sentimento, aparentemente universal pelo que se depreende das palavras escritas
pelo crítico (em realidade, um sentimento como uma emoção natural, presente já
no Australopitecus, correspondente a
uma “disposição fisiologicamente inata
de resposta a estímulos extraordinários”, p.42), de uma Presença,
na pessoa, ao mesmo tempo assombrosa e aterradora, mysterium fascinans
et tremendum, inexplicável por conceitos, palavras, impossível
de conformar pela gramática: "logo, não existe teoria (racional)
da Presença que não seja a de evidenciar, de enfatizar, a sua natureza de
suspeição que aponta para a existência de uma realidade soberanamente diferente (...) A
Presença é irredutível a uma abstracção (...) ausente de
analiticidade (...) Existe apenas um sentido para a Presença -
a suspeição de que ela é sinal de uma realidade diferente, deixando-nos
espantados e aterrorizados (o numinoso) (...) Uma realidade
que surpreende, espanta, pasma e assombra, que atrai mas se receia pela
estranheza própria e pela diferença" (p.52). Para Miguel Real,
agnóstico, esta Presença não se identifica com Deus (que o autor grafa sempre,
ao longo do livro, com minúscula); ela é "uma emoção natural, histórica
e individualmente anterior à cultura", da qual nascerá a fé. Esta, por
sua vez, terá concretizações históricas e sociológicas nas religiões que irão,
ainda, racionalizar a Presença, ou o numinoso. A interpretação de
Fátima dá-se à luz do desencadear especialmente marcante de uma Presença superabundante, tematizada à luz de uma
tradição católica.
5.Os termos com que Miguel Real recusa a invenção
da(s) experiência(s) de Lúcia, Jacinta e Francisco são enfáticos, e reiterados
ao longo de todo o livro: "Lúcia, Jacinta e Francisco, crianças de 10,
9 e 7 anos, foram objecto de uma colossal e desmedida experiência psíquica, que
as forçou, contra tudo e contra todos, a afirmar as Aparições como uma
revelação do sagrado - a Senhora que vinha do céu. Note-se que os três
pastorinhos tinham contra si, de um modo activo, ameaçador e insinuante, a mãe
e as irmãs de Lúcia, o pároco de Aljustrel, Manuel Marques Ferreira, as mulheres
da aldeia e o administrador republicano do concelho. Destaque-se, portanto, a
pressão psicológica e social feita sobre as crianças, isto é, tinham contra si
a totalidade institucional da sociedade: a Família, a Comunidade, a Igreja e o
Estado. E não existe nos inquéritos de 1917 e nas primeiras notícias dos
jornais a mais pequena hesitação dos pastorinhos sobre a realidade das
Aparições.
Assim, afasta-se totalmente deste pequeno ensaio que as Aparições tenham sido uma mera fabricação de sacerdotes de Ourém ou uma maquinação da diocese de Lisboa contra a República, ainda que, do ponto de vista histórico, Fátima constitua a grande seta da Igreja (...) ao coração da República [p.10] (...) Faltam-nos palavras para descrever aquela experiência no interior do cérebro e da consciência dos três pastorinhos e não duvidamos de que a tiveram de um modo gigantesco, tão forte e sólida foi que Lúcia, com 10 anos, analfabeta, rural (o que de rural possuem os códigos comunitários impositivos de consentimento, aceitação e obediência a hierarquias sociais verticais), ousou enfrentar de um modo decidido a família e os políticos republicanos do concelho, superando mesmo as falsas ameaças de que as três crianças seriam «fritas» em azeite, bem como a ameaça, insinuada pelo pároco de Aljustrel, de que, por mentirem, iriam para o inferno (supremo castigo para a sua consciência infantil). Mais do que coragem física ou ousadia psíquica, tratou-se de uma verdadeira transgressão cultural, uma violação de todas as regras, que só a demência social ou a loucura paulistana e franciscana podem justificar. Com efeito, os três pastorinhos, sobretudo Lúcia, exigiram de si uma indómita defesa da verdade, ou do que tinham experimentado como «verdade», tão «verdadeira» que Jacinto e Francisco não só não recusaram como desejaram um doloroso martírio, semelhante ao dos primeiros catecúmenos cristãos. Basta esta atitude para serem levados a sério, para nos indiciar que não se tratou de uma veleidade, foi um acto que pôs em risco o que de mais valioso possuíam - a sua alma [pp.13-14] (...) A Igreja não criou Fátima [p.21] (...) Fátima não se constituiu como o fruto da imaginação dos três pastorinhos. Nela residiu (...) uma experiência misteriosa do sagrado (...) A vivência do sagrado consiste na experiência de uma Presença transcendente às categorias históricas da humanidade" [p.64].
6.Se, em um primeiro instante, poderíamos
dizer que estas reflexões, vindas de citar, corroboram muito do que foi
sendo alegado numa parte significativa do mundo católico, porventura
reforçando-o, dada a vara de medir do professor de
Filosofia não partir, não se inscrever em tal tradição -
Miguel Real é muito crítico do catolicismo, em vários momentos do ensaio; por
todos, leia-se o ponto 5.14, da pág.148 e perceba-se o grau de distanciamento
-, o que na verdade o autor opera é um deslocamento da necessidade da
conclusão de veracidade e verosimilhança da experiência dos pastorinhos conduzir,
impreterivelmente, ao manto interpretativo com que foi recoberto. Dito
de outro modo, para Miguel Real a verdade da experiência dos
pastorinhos - que a análise da documentação e literatura acerca de Fátima torna
procedente - não implica que se aceitem os termos (católicos) mais habituais de
apropriação da mesma.
O autor considera que do ponto de vista da racionalidade de tipo científico as explicações de Fina d'Armada e Joaquim Fernandes para o sucedido em Fátima - a saber, a análise fenomenológica das circunstâncias naturais de fenómenos surgidos com as Aparições e a comparação com idênticas manifestações aquando do aparecimento de OVNI, reforça a conclusão de ter sido uma entidade extraterrestre a manifestar-se em Fátima; naquela localidade não ter havido uma «alucinação colectiva», quando «o Sol bailou», porque o que nesta hipótese explicativa ocorreu foi a existência de um «disco numinoso» que se destacou - seriam as mais consolidadas...com apenas o senão de ter que se crer na existência de extra-terrestres ("paradoxalmente, um leitor que se presuma neutro e atendendo à ambiguidade constitutiva do tema, não pode deixar de constatar ser esta a tese até hoje mais fortemente solidificada em termos de explicações o mais rigorosas possíveis, segundo o paradigma científico, mantendo, no entanto, a vazia indeterminação de raíz, isto é, é preciso crer que existem extraterrestres", p.30).
7.Se a verdade das experiências avassaladoras por que passaram Lúcia,
Francisco e Jacinta não implica, necessariamente, a aceitação de uma
apropriação crente católica das mesmas, em realidade, também não as exclui. No
interior de uma cultura fortemente marcada pelo positivismo, e não raro por uma
oposição - e uma fácil aceitação de uma distinção - entre fé e razão, não
curando, porventura, de indagar suficientemente do que falamos quando falamos
de "razão"(ou de várias razões, racionalidades, entre as quais uma
«razão crente»), parece realmente necessário enfatizar este ponto: é Miguel
Real que sublinha que a exegese católica de um D.Carlos Azevedo, ou
do Pe.Anselmo Borges, na medida em que falam de "visões"
(que se dão no interior dos pastorinhos; como
e, sobretudo, porquê, o que as origina, qual a realidade última destas, qual o
significado derradeiro da Presença, é algo que fica eternamente em dúvida,
como já se disse, para o céptico e agnóstico) e recusam um "paradigma
realista" do concreto e real "aparecimento da Senhora" sobre uma
carrasqueira, representa uma "visão racional, espiritual mas
explicativa das Visões de Fátima" (p.23). Conquanto se possa
questionar aqui a adversativa - "mas explicativa", acoplada a
"visão racional e espiritual", na medida em que, precisamente, o
racional e o espiritual não recusam, nem prescindem de razões - fica claro como,
perante um fenómeno como o de Fátima, crer
nele, segundo uma lente católica - uma dada/determinada exegese católica, se se
preferir - nada tem de irracional (o leitor, intelectualmente honesto, lendo,
se se quiser, exclusivamente, as declarações iniciais/primeiras de Lúcia sobre
os acontecimentos, ficando-se pelos documentos da chamada Fátima I,
e confrontado com "a tese até hoje mais fortemente solidificada (...) [no
âmbito] do paradigma científico", e contrastando com a mais actualizada exegese
católica sobre o fenómeno para qual se inclinará, na verdade? Qual lhe parecerá
mais razoável?).
8.Igualmente razoável me parece, e até
mesmo sem surpresa, o entendimento do autor quanto aos melhores livros acerca
de Fátima ("de acordo com o novo paradigma"): Fátima. Lugar
Sagrado Global (2017), de José Eduardo Franco e Bruno
Cardoso Reis - "uma referência que marcará doravante todas as
investigações sobre Fátima" (pp.35-36) - e Fátima. Das visões
dos Pastorinhos à Visão Cristã (2017), do bispo Carlos Moreira
de Azevedo - "que propõe, sensata e racionalmente, a
substituição do termo «Aparições» por «visões»" (p.36).
No interior da mundividência cristã católica, em Portugal, Miguel Real opõe, pois, uma visão que considera crédula, com "aceitação acrítica das Aparições" cujo "expoente máximo" seria um autor como João César das Neves a uma outra, mais sofisticada, racional e razoável na qual pontificaria D.Carlos Azevedo. Entende, mesmo, que a interpretação a que se alçou o Bispo (que trabalha no Pontifício Conselho da Cultura) se tornou um acquis incontornável e definitivo. E, de passagem, acredita que a "mudança de paradigma" se deu por 2007, a quando da publicação da Enciclopédia de Fátima, coordenada por Carlos Moreira Azevedo. Em realidade, como o próprio D.Carlos explica em Fátima. Das Visões dos Pastorinhos à Visão Cristã decisivo, para esta viragem, foi o Comentário do então Cardeal Joseph Ratzinger, no ano 2000, ao chamado «terceiro segredo», no que ficou como uma peça antológica inultrapassada acerca do fenómeno de Fátima. Embora já o título da obra de Miguel Real, Fátima e a Cultura Portuguesa, nos situe no âmbito nacional de contextualização (e, percebe-se lendo o livro, autoria/ensaística/crítica) acerca de Fátima, em realidade Ratzinger, e este seu Comentário, são, ainda isso considerado, os grandes ausentes do livro (porque não é possível perceber a «mudança de paradigma» sem aquele "Comentário" do Cardeal; e porque a mesma referência a um imaginário que precisaria de ser criticado, interpretado, escrutinado estava já aí presente – quando Miguel Real escreve que “a vivência cultural e religiosa destas foi determinante para a materialização das imagens das Aparições, como se torna explícito, por exemplo, pelo conteúdo das imagens que compõem a visão do Inferno” quase parece citar, ipsis verbis, Ratzinger; não há, porque não foi esse o caminho seguido, muito legitimamente, pelo autor do livro publicado pela D.Quixote um aprofundamento teológico católico do fenómeno e de seus representantes internacionais mais relevantes, em especial Edouard Dhanis, citado por Ratzinger).
Se, para Miguel Real, João César das Neves representa uma ala ultrapassada no entendimento de Fátima, o mesmo se diga, dada a recusa da existência de uma criação, efabulação, construção de Fátima, postulado formalizado pelo ensaísta desde as primeiras páginas deste seu novo livro, dos textos corrosivos mancomunados com as mais variadas teorias da conspiração - por exemplo, "a Senhora" seria uma esposa de um graduado do exército que se teria colocado em cima da carrasqueira e assustado as crianças - cujo autor aqui referido é o pe. Mário de Oliveira.
9.Um outro elemento bastante interessante
exposto, na obra em apreço, de Miguel Real, é a indicação da República como causa
eficiente, mas não necessária de Fátima. A Presença superabundante seria,
como já vimos, a causa de Fátima; sendo certo, porém, que, para Miguel
Real, não se percebe o fenómeno com as tonalidades, a amplitude e difusão que
teve se a República não tivesse existido - com as características de
que se revestiu, maxime, a ruptura com 700 anos de tradição
católica em Portugal concretizada emblematicamente na abolição da Faculdade de
Teologia de Coimbra, mas ainda na proibição das vestes talares dos sacerdotes
em locais públicos, a proibição de manifestação pública de ritos religiosos,
extinção de colégios de Jesuítas e outras Ordens, nacionalização dos registos
de nascimento, casamento e óbito dos cidadãos, nacionalização de propriedades
da Igreja, extinção de Ordens e Congregações religiosas...Ou seja, na
opinião, sem a possibilidade do contrafactual, do autor, sem a República com a
sua bravata anti-religiosa, sem uma Igreja fortemente acossada e
arremetida contra as cordas, a «visão privada» dos Pastorinhos
teria uma difusão bem mais escassa. Acontecer-lhe-ia, afirma Miguel Real, o
que sucedeu a várias outras situações/ “visões” (que considera)
similares. A Igreja não inventou, criou, construiu Fátima - para
arremeter contra a República que contra esta tinha investido. Mas perante a
«visão» dos Pastorinhos foi capaz de reerguer os alicerces, de convocar o povo
católico –que, por sua vez,
viu no fenómeno a confirmação de um sentido (existencial, histórico) em que se
ambientara/situara (e que a nova ordem,
tanto de natureza filosófica quanto política, pretendia (ex)purgar).
Ainda que lateralmente, diga-se, o que daqui decorre, também, é o inverso das teorizações que divisaram, face a várias outras «visões» que não merecer(ia)m especial crédito ou visibilidade, não uma confirmação de que o mesmo se aplicaria a Fátima (como os que negaram a autenticidade das experiências de Fátima pretenderiam), mas o eventual reconhecimento (potencial) de que em outras ocasiões a experiência forte do inefável se deu (não atendendo o autor de Fátima e a Cultura Portuguesa a singularidades desta «visão» que a diferenciariam de outras - se se excluir a necessidade de reacção, mais forte, ao momento histórico; sendo as práticas republicanas já aludidas e, muito concretamente, o ano de 1917, e a participação portuguesa na I Guerra Mundial, especialmente propícios a uma apropriação do fenómeno como aquela que veio dar-se, segundo a interpretação do professor de Filosofia). Os pastorinhos inseriam-se nessa linhagem de 700 anos de tradição católica – “cruzamento entre a tradição católica mariana com a tradição mítica portuguesa” (p.55) - e as suas «visões» não podem separar-se dessa história, desse ambiente, dessa mundividência – a dimensão histórico-social, comunitária, das «visões». Em todo o caso, não apenas vemos tematizada a Presença como o «locus» suscitador da experiência dos Pastorinhos, como, ademais, é nela, nessa emoção, que Miguel Real observa já a raíz da própria religião (numa interessante recusa de a perspectivar pela lente de um constructo sociológico, à la Durkheim, ou a resposta do utilitarismo, o mesmo é dizer, para Miguel Real a religião tem origem na Presença, ou na suspeição da Presença, e não na religião já constituída, culturalmente reproduzida pelas instituições sociais, integrante da educação das novas gerações; a coesão social é propiciada pela suspeita da existência da Presença, por aquela emoção, e não pela organização religiosa institucionalizada e seus canais de propaganda - vide p.43 in fine e p.44; com o mesmo raciocínio se poderia, aliás, negar a origem da fé, e das religiões, no medo, ou resposta, da/à morte, resposta, a partir de Feuerbach, tantas vezes replicada).
10.Miguel
Real vê na Fátima extraordinariamente emotiva (da procissão das velas), da
pompa e grandiloquência arquitectónica, na liturgia envolvente todo um momento
barroco, o único que, depois de Auschwitz, tornaria audível o silêncio de Deus
(só pelo barroco seria possível religar, de novo, ao nível das “massas”, depois
de Auschwitz).
Em A estranha morte da Europa, Douglas Murray escrevia que, após Darwin e os resultados da exegese bíblica, apenas em comunidades (evangélicas) ignorantes ressoava o fervor de outrora; na Europa católica, a fé, onde ainda permanecia, seria frágil. E, no entanto, bem aqui se poderia aplicar o refrão paulino – “quando eu sou fraco, então é que sou forte” – porque, para dar dois exemplos que se me afiguram importantes, se da evidência do Génesis como poema – a salvo da transliteração em ciência -, ou de um apurado e renovado registo acerca das experiências pós-pascais (das quais seria apenas seguro não duvidar de que aqueles que as experienciaram – cujo modo se deixa em aberto - nelas creram e viveram de tal modo que por elas deram, literalmente, a vida e nós, os que nela cremos, seríamos pois os que acreditamos no seu testemunho) resulta a necessidade da superação, em diversos casos, do literalismo e da visão mais infantil, bem como de dar o passo abissal – a aposta, a fé que tem razões, mas que é esse salto final sem as seguranças que, em realidade, a dispensariam – essa vivência, consciente, da fragilidade – e como, em vários momentos do pensamento de Miguel Real como o que assinalava a superação do esquema objectivo vs subjectivo na tematização da Presença me recordei, além de Marion, de Tomás Halík, exige uma força (profundidade) maior do que as respostas pronto-a-vestir reclamavam.
Habitar essa fragilidade, em templos onde o despojamento, o escultórico, o ir até ao mais fundo e íntimo, deixando os constructos que inflacionavam desnecessariamente (a recusa retórica), tem-se afigurado, como as novas Igrejas de Braga assinalam, exemplarmente, um caminho de resposta à altura dos tempos (sem prejuízo de no espanto que o barroco pode provocar haver um «excesso» que corresponde a uma demanda não negligenciável).
Assim, afasta-se totalmente deste pequeno ensaio que as Aparições tenham sido uma mera fabricação de sacerdotes de Ourém ou uma maquinação da diocese de Lisboa contra a República, ainda que, do ponto de vista histórico, Fátima constitua a grande seta da Igreja (...) ao coração da República [p.10] (...) Faltam-nos palavras para descrever aquela experiência no interior do cérebro e da consciência dos três pastorinhos e não duvidamos de que a tiveram de um modo gigantesco, tão forte e sólida foi que Lúcia, com 10 anos, analfabeta, rural (o que de rural possuem os códigos comunitários impositivos de consentimento, aceitação e obediência a hierarquias sociais verticais), ousou enfrentar de um modo decidido a família e os políticos republicanos do concelho, superando mesmo as falsas ameaças de que as três crianças seriam «fritas» em azeite, bem como a ameaça, insinuada pelo pároco de Aljustrel, de que, por mentirem, iriam para o inferno (supremo castigo para a sua consciência infantil). Mais do que coragem física ou ousadia psíquica, tratou-se de uma verdadeira transgressão cultural, uma violação de todas as regras, que só a demência social ou a loucura paulistana e franciscana podem justificar. Com efeito, os três pastorinhos, sobretudo Lúcia, exigiram de si uma indómita defesa da verdade, ou do que tinham experimentado como «verdade», tão «verdadeira» que Jacinto e Francisco não só não recusaram como desejaram um doloroso martírio, semelhante ao dos primeiros catecúmenos cristãos. Basta esta atitude para serem levados a sério, para nos indiciar que não se tratou de uma veleidade, foi um acto que pôs em risco o que de mais valioso possuíam - a sua alma [pp.13-14] (...) A Igreja não criou Fátima [p.21] (...) Fátima não se constituiu como o fruto da imaginação dos três pastorinhos. Nela residiu (...) uma experiência misteriosa do sagrado (...) A vivência do sagrado consiste na experiência de uma Presença transcendente às categorias históricas da humanidade" [p.64].
O autor considera que do ponto de vista da racionalidade de tipo científico as explicações de Fina d'Armada e Joaquim Fernandes para o sucedido em Fátima - a saber, a análise fenomenológica das circunstâncias naturais de fenómenos surgidos com as Aparições e a comparação com idênticas manifestações aquando do aparecimento de OVNI, reforça a conclusão de ter sido uma entidade extraterrestre a manifestar-se em Fátima; naquela localidade não ter havido uma «alucinação colectiva», quando «o Sol bailou», porque o que nesta hipótese explicativa ocorreu foi a existência de um «disco numinoso» que se destacou - seriam as mais consolidadas...com apenas o senão de ter que se crer na existência de extra-terrestres ("paradoxalmente, um leitor que se presuma neutro e atendendo à ambiguidade constitutiva do tema, não pode deixar de constatar ser esta a tese até hoje mais fortemente solidificada em termos de explicações o mais rigorosas possíveis, segundo o paradigma científico, mantendo, no entanto, a vazia indeterminação de raíz, isto é, é preciso crer que existem extraterrestres", p.30).
No interior da mundividência cristã católica, em Portugal, Miguel Real opõe, pois, uma visão que considera crédula, com "aceitação acrítica das Aparições" cujo "expoente máximo" seria um autor como João César das Neves a uma outra, mais sofisticada, racional e razoável na qual pontificaria D.Carlos Azevedo. Entende, mesmo, que a interpretação a que se alçou o Bispo (que trabalha no Pontifício Conselho da Cultura) se tornou um acquis incontornável e definitivo. E, de passagem, acredita que a "mudança de paradigma" se deu por 2007, a quando da publicação da Enciclopédia de Fátima, coordenada por Carlos Moreira Azevedo. Em realidade, como o próprio D.Carlos explica em Fátima. Das Visões dos Pastorinhos à Visão Cristã decisivo, para esta viragem, foi o Comentário do então Cardeal Joseph Ratzinger, no ano 2000, ao chamado «terceiro segredo», no que ficou como uma peça antológica inultrapassada acerca do fenómeno de Fátima. Embora já o título da obra de Miguel Real, Fátima e a Cultura Portuguesa, nos situe no âmbito nacional de contextualização (e, percebe-se lendo o livro, autoria/ensaística/crítica) acerca de Fátima, em realidade Ratzinger, e este seu Comentário, são, ainda isso considerado, os grandes ausentes do livro (porque não é possível perceber a «mudança de paradigma» sem aquele "Comentário" do Cardeal; e porque a mesma referência a um imaginário que precisaria de ser criticado, interpretado, escrutinado estava já aí presente – quando Miguel Real escreve que “a vivência cultural e religiosa destas foi determinante para a materialização das imagens das Aparições, como se torna explícito, por exemplo, pelo conteúdo das imagens que compõem a visão do Inferno” quase parece citar, ipsis verbis, Ratzinger; não há, porque não foi esse o caminho seguido, muito legitimamente, pelo autor do livro publicado pela D.Quixote um aprofundamento teológico católico do fenómeno e de seus representantes internacionais mais relevantes, em especial Edouard Dhanis, citado por Ratzinger).
Se, para Miguel Real, João César das Neves representa uma ala ultrapassada no entendimento de Fátima, o mesmo se diga, dada a recusa da existência de uma criação, efabulação, construção de Fátima, postulado formalizado pelo ensaísta desde as primeiras páginas deste seu novo livro, dos textos corrosivos mancomunados com as mais variadas teorias da conspiração - por exemplo, "a Senhora" seria uma esposa de um graduado do exército que se teria colocado em cima da carrasqueira e assustado as crianças - cujo autor aqui referido é o pe. Mário de Oliveira.
Ainda que lateralmente, diga-se, o que daqui decorre, também, é o inverso das teorizações que divisaram, face a várias outras «visões» que não merecer(ia)m especial crédito ou visibilidade, não uma confirmação de que o mesmo se aplicaria a Fátima (como os que negaram a autenticidade das experiências de Fátima pretenderiam), mas o eventual reconhecimento (potencial) de que em outras ocasiões a experiência forte do inefável se deu (não atendendo o autor de Fátima e a Cultura Portuguesa a singularidades desta «visão» que a diferenciariam de outras - se se excluir a necessidade de reacção, mais forte, ao momento histórico; sendo as práticas republicanas já aludidas e, muito concretamente, o ano de 1917, e a participação portuguesa na I Guerra Mundial, especialmente propícios a uma apropriação do fenómeno como aquela que veio dar-se, segundo a interpretação do professor de Filosofia). Os pastorinhos inseriam-se nessa linhagem de 700 anos de tradição católica – “cruzamento entre a tradição católica mariana com a tradição mítica portuguesa” (p.55) - e as suas «visões» não podem separar-se dessa história, desse ambiente, dessa mundividência – a dimensão histórico-social, comunitária, das «visões». Em todo o caso, não apenas vemos tematizada a Presença como o «locus» suscitador da experiência dos Pastorinhos, como, ademais, é nela, nessa emoção, que Miguel Real observa já a raíz da própria religião (numa interessante recusa de a perspectivar pela lente de um constructo sociológico, à la Durkheim, ou a resposta do utilitarismo, o mesmo é dizer, para Miguel Real a religião tem origem na Presença, ou na suspeição da Presença, e não na religião já constituída, culturalmente reproduzida pelas instituições sociais, integrante da educação das novas gerações; a coesão social é propiciada pela suspeita da existência da Presença, por aquela emoção, e não pela organização religiosa institucionalizada e seus canais de propaganda - vide p.43 in fine e p.44; com o mesmo raciocínio se poderia, aliás, negar a origem da fé, e das religiões, no medo, ou resposta, da/à morte, resposta, a partir de Feuerbach, tantas vezes replicada).
Em A estranha morte da Europa, Douglas Murray escrevia que, após Darwin e os resultados da exegese bíblica, apenas em comunidades (evangélicas) ignorantes ressoava o fervor de outrora; na Europa católica, a fé, onde ainda permanecia, seria frágil. E, no entanto, bem aqui se poderia aplicar o refrão paulino – “quando eu sou fraco, então é que sou forte” – porque, para dar dois exemplos que se me afiguram importantes, se da evidência do Génesis como poema – a salvo da transliteração em ciência -, ou de um apurado e renovado registo acerca das experiências pós-pascais (das quais seria apenas seguro não duvidar de que aqueles que as experienciaram – cujo modo se deixa em aberto - nelas creram e viveram de tal modo que por elas deram, literalmente, a vida e nós, os que nela cremos, seríamos pois os que acreditamos no seu testemunho) resulta a necessidade da superação, em diversos casos, do literalismo e da visão mais infantil, bem como de dar o passo abissal – a aposta, a fé que tem razões, mas que é esse salto final sem as seguranças que, em realidade, a dispensariam – essa vivência, consciente, da fragilidade – e como, em vários momentos do pensamento de Miguel Real como o que assinalava a superação do esquema objectivo vs subjectivo na tematização da Presença me recordei, além de Marion, de Tomás Halík, exige uma força (profundidade) maior do que as respostas pronto-a-vestir reclamavam.
Habitar essa fragilidade, em templos onde o despojamento, o escultórico, o ir até ao mais fundo e íntimo, deixando os constructos que inflacionavam desnecessariamente (a recusa retórica), tem-se afigurado, como as novas Igrejas de Braga assinalam, exemplarmente, um caminho de resposta à altura dos tempos (sem prejuízo de no espanto que o barroco pode provocar haver um «excesso» que corresponde a uma demanda não negligenciável).
Para lá da contextualização histórica (social-política, de ideias), o livro detém-se, pormenorizadamente, nas várias corrente filosóficas e seus autores que concretizaram, a partir do séc.XVIII, diferentes concepções acerca de Deus, da ligação pátria ao providencialismo, ao messianismo, ao Transcendente, ao mítico (de que Fátima, como maioritariamente entendida, seria o apogeu, de uma genealogia que principiaria no milagre de Ourique, e continuaria, em diferentes formulações, com D.Sebastião, o Bandarra, Pe.António Vieira, Fernando Pessoa, Agostinho da Silva, Natália Correia, Paulo Borges, ou, até, no séc.XXI, com Pedro Martins).
Pedro Miranda
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