O PERCURSO POLÍTICO DE THOMAS MANN

 
Nos 150 anos do nascimento de Thomas Mann, o revisitar de um percurso político

1.De entre as mais marcantes alocuções/crónicas radiofónicas realizadas ao longo do século XX, as de Thomas Mann, Nobel da Literatura em 1929, nascido em Lubeck, na Alemanha, no seio de uma família abastada, segundo de cinco filhos, em 1875 (personalidade/autor de quem se comemoram, em terras germânicas e um pouco por todo o mundo, pois, ao longo deste ano, os 150 anos do seu nascimento), lidas na BBC (podem escutar-se no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=25YNc5bX7xY), exercício de rememoração, o de recuperar do melhor que passou pela rádio ao longo da sua história, que vimos efectuando nesta rúbrica, contam-se entre as que ganham, nos alvores da década de 30 da centúria passada, em cunho profético (no tempo em que se situam), palavras nas quais vale a pena, ainda, atentar em nossos dias.

2.Transcritas (selecionadas, traduzidas), algumas dessas intervenções de Mann na BBC Radio, na recolha antológica de Teresa Seruya em “Thomas Mann. Um percurso político” (Bertrand, 2016), conjuntamente contempladas com discursos políticos de igual relevo, pelo mesmo autor, em areópagos de suma relevância (incluídas, do mesmo modo, nesta selecta), permitem-nos identificar um trajecto cidadão que, não sem contradições e ambiguidades, irá da feroz defesa da guerra (Pensamentos em tempo de guerra [1915], no contexto da Primeira Guerra Mundial) até à elaboração de uma exortação à burguesia alemã – da qual Mann sempre se reclamou originário e membro – para que alinhasse e se juntasse à social-democracia, enquanto ideário que melhor se adequaria aos anseios que aquela nutria (Alocução alemã. Um apelo à razão [1930]), nomeadamente, “só a uma política externa que sirva o entendimento franco-alemão corresponde uma atmosfera (…) onde os desejos de felicidade burgueses como a liberdade, a vida do espírito, a cultura têm possibilidade de viver. Qualquer outra encerraria em si uma ascese nacional e uma crispação que significariam um conflito terrível entre pátria e cultura e, bem assim, toda a nossa desgraça”, evitando (em seguindo a recomendação do romancista) o alinhamento com as forças mais obscuras e trágicas da história.

3.Se, em 1915, ano seguinte ao início da Primeira Guerra Mundial, tempo que sucedeu a quatro décadas de paz e prosperidade na Europa, época em que se acreditou que a interligação entre países, a globalização, o comércio impediriam, sempre, o regresso da guerra (grande repercussão e crédito havia colhido, com tais teses, Norman Angell, Nobel da Paz em 1933, com The Great Illusion [publicado em 1909]), Thomas Mann, então com 39 anos, militaria entre os intelectuais, poetas, cientistas, artistas, professores universitários que saudavam, efusivamente, o eclodir do conflito bélico, ligando-o à natureza e cultura alemãs (entre os quais, R. Dehmel, Emil Ludwig, Alfred Kerr, R. Musil), em 1922, por sua vez, já integrando as consequências devastadoras de uma romantização da guerra (muitos outros intelectuais alemães, naquele primeiro quartel do século XX, manifestar-se-iam em sentido oposto ao de Mann, refira-se; entre estes, Albert Einstein, G.F.Nicolai, Wilhem Foerster; autores como Ernst Stadler, Jacob Wasserman, ou Stefan Zweig desde a aurora da contenda mundial aperceberam-se da extensão do desastre que aquela constituía e acarretaria), e depois de, inclusivamente, perder o humor e alegria de estar em família, deporia em favor da República de Weimar (com a derrota na Primeira Guerra Mundial, cai, também, atente-se, a monarquia alemã, em 1918) – reconciliando-se, então, com o irmão Heinrich, com o qual ficara desavindo, por profunda discordância política, em um momento em que eram a guerra e as principais instituições políticas alemãs que estavam em equação (Thomas Mann passa, então, de antidemocrata e conservador a um dos mais lídimos representantes do humanismo europeu; o escritor transita da mística da morte de Schopenhauer e Wagner ao entendimento pleno dos versos de Goethe: “estar na vida com dignidade e ser mais forte do que a morte”. Ou seja, o que dá dignidade à existência humana não é a morte, mas a vida. (Cf. Rob Riemen, La palabra que vence la muerte, Penguin, Barcelona, 2025, p.45).
 
4.Em 1925, pelos seus 50 anos, Thomas Mann é celebrado por toda a Alemanha e faz, ademais, inúmeras viagens por diferentes países europeus, nos quais é igualmente festejado. Uma dimensão diplomática, poucos anos depois do Armistício e do Tratado de Versalhes, é acoplada a estas voltas do escritor pelo Velho Continente.
Já com os nazis no poder, Mann, que vivera em Munique, e em razão do espírito crítico que propalara à nação, será, contudo, obrigado a exilar-se – primeiro, ficará em Arosa (Suíça), bem sabendo que em voltando à Alemanha teria a prisão como destino; a sua casa de família é confiscada e arrendada, sem uma palavra da parte do Estado, a outro agregado familiar, em 1933, apesar dos 97000 marcos pagos por Mann em “imposto por fuga do Reich”; Hanns Johst, escritor também, instrutor das SS, o homem celebrizado pela máxima “quando me falam de cultura, puxo logo da pistola”, sugeriu, em carta a Himmler, que Mann fosse levado para o campo de concentração de Dachau; apesar do exílio paterno, alguns dos filhos de Thomas Mann permanecerão na Alemanha, o que estará na origem de uma demanda/epístola diplomática, de algum modo controvertida, enviada ao ministro do Interior (do Reich), na qual o escritor procurava alguma forma de salvaguarda com vista a um regresso (permanente) à Baviera, propondo, no limite, calar-se, sobre política (levada a cabo pelos dirigentes do seu país de origem), no exterior (enquanto aí permanecesse); depois, “a onda mágica da vida” endereçá-lo-á aos EUA (país no qual obterá uma segunda cidadania), em 1938, já após a sua obra ser proibida na sua pátria natal (em 1936), sendo que Mann e o seu círculo próximo mal sabiam línguas - de resto, ainda mais curioso, o Nobel da Literatura, no seu percurso escolar, raramente conseguiu obter mais do que “Suficiente” a Alemão, para lá de ter tido que repetir ano de escolaridade por mais de uma vez e não ter passado no Abitur, exame de acesso à universidade, decorrências enxertadas em uma personalidade complexa na qual aos seis filhos que teve com sua esposa não deixar de adicionar atracção por pessoas do mesmo sexo.
 
5.Praticamente na abertura de Pensamentos em tempo de guerra (1915), Thomas Mann estabelece uma dicotomia, e situa a Alemanha face a esta, que se compreenderá em chave de quadro estrutural que, com revisões, desilusões, identificação de novas declinações e ângulos de análise e interpretação associadas ao devir histórico que lhe é dado viver e examinar integrará no seu pensamento e textos ao longo das três décadas seguintes: a contraposição entre cultura (Kultur) e civilização (Zivilisation) e a preeminência da primeira sobre a segunda entre os alemães. Longe de assimilar/identificar entre si os dois conceitos, Mann toma cultura e civilização como sucedâneos de natureza e espírito, respectivamente, associando ao primeiro dos termos sensualidade, mística, arte, forma, atitude, estilo, risco moral, desprezo pela segurança, enquanto à família da segunda das noções pertenceriam a razão (abstracta), o progresso, o cepticismo, a decência, o esclarecimento.
A modos de um lance em que o dionisíaco superaria o apolíneo, (cultura, que “pode abranger oráculos, magia, pederastia, papões, sacrifícios humanos, formas de culto orgiásticas, a Inquisição, autos-da-fé, danças-de-são-vito, processos de bruxas, o auge de envenenamentos e os horrores mais variados”, sobrelevada/acometida à) Alemanha transporia a (razão abstracta encarnada primacialmente pela) França, o rei Frederico, o Grande, impor-se-ia a Voltaire: “Voltaire e o rei: é a razão e os demónios, o espírito e o génio, a luminosidade seca e o destino nublado, a civilidade burguesa e o dever heróico”. A Alemanha dedicar-se-ia a formas superiores de vida, era mais profunda, interior, metafísica, devotada à/imersa na música (a arte alemã, por excelência). Nesse sentido, o exterior, o mundo social, o universo político não suscitaria o mesmo apelo, entusiasmo, consideração ou prestígio aos alemães (do que as formas de vida interior). Em uma ilustração do que o elementar, o primordial, sem a patine lustrosa da civilização, permite conhecer de modo próprio (e de cujas amarras ou garras civilizatórias haverá que fugir), Thomas Mann escreve em 1915, em Pensamentos em tempo de guerra: “o espírito é civil, é burguês: é inimigo declarado dos instintos, das paixões, é antidemoníaco, anti-heróico, e dizer que é anti-genial é apenas um contra-senso aparente (…) Turgueniev deu uma vez expressão serena e simples à total irrelevância da relação entre espírito e arte, ao pôr um qualquer redactor a responder ao envio de um diletante da escrita: «O Senhor tem muito espírito, mas nenhum talento. E à literatura só talento serve».
A arte, como toda a cultura, é a sublimação do demoníaco. A disciplina que exige é mais severa que toda a ética, possui um saber mais profundo do que o mero esclarecimento, um descomprometimento e uma irresponsabilidade mais livres do que o cepticismo, o seu conhecimento não é ciência, mas sensualidade e mística. Pois a sensualidade é essencialmente mística, como tudo o que é natural. Goethe, para cujas investigações sobre a natureza Helmholtz escolheu a designação «intuições científicas», pressentiu o terramoto de Messina, à noite no seu quarto de dormir de Weimar, de um jeito a um tempo natural e místico. «Ouçam, Goethe devaneia!», disseram as senhoras da corte quando ele quis anunciar o seu saber demoníaco e tentou fazê-lo passar por observação e dedução. Mas uns dias depois chegou a notícia da catástrofe”.
E, no entanto, a grandiloquência acerca do primitivo, do selvagem, do sanguíneo soçobram e naufragam, primeiro, sobre os milhões que pereceram e foram mutilados entre 1914-1918 – “Sim, a esfera do sangue é também, terrivelmente, a esfera sanguinária (…) Guerra é romantismo. Jamais alguém lhe negou o elemento místico-poético que lhe é inerente. Negar que ela hoje é romantismo reles, poesia repugnantemente desfigurada, seria obstinação (…) Actualmente o mundo, os povos são velhos e espertos, o estádio da vida épico-heróico de cada um deles há muito ficou para trás, a tentativa de recuar no seu encalço representa uma vil sublevação contra a lei do tempo, uma inverdade espiritual, a guerra é mentira, os seus próprios resultados mentiras são, e por muita honra que o indivíduo possa estar disposto a introduzir-lhe, mesmo hoje em dia ela é despida de toda e qualquer honra, e por isso se manifesta ao olhar de quem não se defrauda a si próprio quase em absoluto como triunfo de todos e quaisquer elementos baixos e brutais de um povo, hostilizando fidalgamente a cultura e o pensamento, numa sangrenta orgia de egoísmo, depravação e torpeza” (escreve T. Mann, em 1922, em Da República alemã) -, depois, pela ascensão da “boçalização”, da “doença do povo”, da “alarvaria de feira”, da “barbárie excêntrica” que constituiu o nazismo.
O desbragamento do apelo emocional pelo exacerbamento romântico – com ele, “a razão, que gozava de primazia sobre a emoção, mesmo quando esta assumia as suas formas mais remotas de êxtase místico ou inebriamento dionisíaco, é posta em relação com a doença” – vem a redundar, com a sua dedicação à irracionalidade e ao passado, em “uma profunda afinidade com a morte”: “foi na Alemanha, sua verdadeira terra natal, que o Romantismo deixou o testemunho mais veemente e fatídico desta sua ambiguidade cambiante, desta sua oscilação entre o enaltecimento do Vital contra o puramente Moral e a sua afinidade com a morte”.
Nos escombros da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), um ávido auditório norte-americano espera pela palavra de Thomas Mann sobre “A Alemanha e os alemães” (1945) (explicação, balanço?) e aí, o escritor-cidadão, filho de senador, recusando colocar-se de fora e julgar o povo a que pertence (“quem é alemão está implicado no destino alemão e na cultura alemã”, assumirá) remeterá a uma “espécie de histeria de fiéis da Idade Média” o ambiente da cidade em que crescera, com um “substracto neurótico de tempos arcaicos”, habitado por “figuras excêntricas e semi-lunáticas”. A obra-prima literária da nação era o Fausto, de Goethe, e a música, a arte privilegiada pela Alemanha, contendo caos e ordem em simultâneo, era, também, “território do demónio”.
 
6.Sem que a história se repita, como Mann acreditava, talvez rime mesmo, e a exaltação do primitivo, dos instintos mais básicos e grosseiros, do sanguíneo e do histriónico como registos exclusivos – como exclusivo e excludente seria o negligenciar das emoções, ou os limites do que vem a tomar-se por razão, ignorando intuição, coração ou o transracional - enquanto paródia de qualquer diálogo ou arte, do emocional sem qualquer filtro, qual homeostasia qual quê?, tenha, hoje, algo da mesma natureza do observado há 100 anos (com a barbarização do discurso no espaço público, de actos públicos e privados, a contaminar o horizonte). Também, hoje, a apologia de uma suposta autenticidade que mostre o selvagem – que o conservador Mann [“na verdade, sou um conservador. A minha função neste mundo não é de cariz revolucionário”] não supunha necessariamente bom – em estado quimicamente puro, como Chul-Han evidencia em Do desaparecimento dos rituais (Relógio d’Água, 2020) mais não resulta do que derrisão de e da comunidade. Multiplicam-se os debates acerca de uma paideia que seja geradora de uma harmonia não polarizadora e extremada presente no indivíduo[1], a tal configuração disciplinar, uma ecologia mesmo de vida que sustentasse a promoção do melhor do humano e a não queda no brutalismo a que assistimos (de António Damásio [A estranha ordem das coisas, Temas e Debates, 2017] a P. Sloterdijk [Regras para o parque humano, Angelus Novus, 2008], de P. Singer [Ética no Mundo Real, 2025] a M. Garcés [Novo Iluminismo Radical, Orfeu Negro, 2023]…). Já em 1930, ano em que nas eleições para o Reichstag, o partido nacional-socialista, NSDAP, obtém 18,3% dos votos (obtivera 2,6% dois anos antes) e 107 mandatos (12 em 1928), em Alocução alemã. Um apelo à razão, Thomas Mann denunciava “a perda de conceitos morigeradores e austeros como cultura, espírito, arte, ideia” como uma das causas para o mergulho no descalabro que se anunciava. Hoje, e para evocarmos “conceitos morigeradores”, M. Onfray (Decadência. O declínio do Ocidente, D. Quixote, 2019) ou E. Todd (A derrota do Ocidente, Princípia, 2025), por exemplo, observam a deserção face ao cristianismo – instrumentalizado, é certo, como ideologia e evocado para, tristemente, mais facilmente o desfigurar, da Hungria aos EUA, da Polónia ao Brasil, passando por Espanha e Portugal[2] – como motivo de ocaso civilizacional. E, aqui, defina-se civilização com Goethe: “É um exercício permanente de respeito. Respeito pelo divino, pela terra, pelo nosso próximo e também pela nossa própria dignidade” (Apud. Rob Riemen, o.c., Penguin, Barcelona, 2025). As eleições legislativas alemãs de 1930 são as primeiras que ocorrem após o crash de 1929 na Bolsa de Nova Iorque cujas metástases ferem, de modo contundente, a Europa. A Alemanha, num ápice, chega aos 14% de desempregados, em 1930, e aos 25,9% em 1933. A agitação social é, então, elevada. No elenco de motivos para a ascensão do nazismo, Thomas Mann refere-se a este desemprego massivo, ao Tratado de Versalhes, às reparações “cegas e arcaicas” que a Alemanha teria que pagar, aos cortes e à austeridade praticada pelo Estado alemão – “um povo economicamente doente não pode ter um pensamento político saudável”; as zonas economicamente mais afectadas pela crise de 1929, nos EUA, bem como as mais atingidas pelos efeitos das políticas de austeridade no Reino Unido, durante a Grande Recessão pós-2008, assinala Martin Wolf, em A crise do capitalismo democrático (Gradiva, 2023) votaram mais na extrema-direita do que as médias nacionais, e um conjunto de atitudes de tipo cultural, como racismo e xenofobia, foi nelas mais activado, o cultural despertado pelo económico na leitura do ensaísta. Todavia, “o resultado das eleições não se explica apenas pela economia”, no que seria uma redutora “visão unilateral”. A imposição à Alemanha da desmilitarização, o sentimento de honra perdida, a difusão do ódio e do fanatismo concorrem para aquele resultado. Aliás, a sucessiva emergência das atrocidades nazis “nenhuma teoria da psicologia pode explicar” (no que aqui recordo o que anos depois um sobrevivente daqueles campos de concentração e de extermínio, Jean Améry, haveria de escrever, em Para lá de crime e castigo: “não passam de argumentos pueris o Tratado de Versalhes, a crise económica e a miséria, que teriam conduzido o povo ao nazismo”), até porque, para obter os mesmos resultados políticos os nazis não tinham necessidade de impor tais crimes contra a humanidade.
Como se havia caído no “fascismo”? Nietzsche, em 1886, apontará, já, “‘o signo mais claro da modernidade: os homens foram perdendo valor de uma maneira incrível e eles mesmos o sabem’. Nietzsche observa que o Homem perdeu a sua alma e já não tem – ou melhor, já não pode ter – noção dos valores espirituais e morais absolutos que, por conseguinte, já não podem existir. Portanto, sua sombria previsão é a de que se irá produzir uma inversão dos valores. Às pessoas já não lhes preocupa [saber] quem são, mas o que querem possuir. A qualidade (um valor espiritual) será substituída por uma obsessão com a quantidade e a crença obsessiva de que tudo o que é maior e mais é melhor. O anelo de liberdade e responsabilidade que é o seu corolário será substituídos pelo medo à liberdade e a adoração de um novo ídolo: O Líder [medo da Liberdade tão bem denunciado na parábola do Grande Inquisidor, de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky]. As musas cederão o seu lugar ao entretenimento vulgar e tampouco há dúvida de que a justiça, a liberdade serão substituídas pelo poder e pela riqueza”. Foi destruído, afinal, o humanismo, Rob Riemen? “O que é inegável é que o espírito fascista, a mentalidade diametralmente oposta ao humanismo europeu continua a estar entre nós e manifesta-se de formas que vão mudando o tempo todo. A qual não há-de surpreender, porque a «inversão de valores» anunciada por Nietzsche é agora mais intensa do que nunca, com valores materiais e utilitários que são a antítese dos valores espirituais e morais do humanismo”. E há em tudo isto uma inevitabilidade e uma impotência (ad eternum)? Isso é que não: “Mas também é inegável o que continua a ser certo [:] o ser humano é livre! Há um acervo cultural que pode oferecer-nos o educare que nos torna conscientes do mal que se oculta em cada um de nós, mas também da nossa luz interior [brilho interior], a lei moral em nós. Assim, podemos transcender a nossa natureza animal e internalizar os valores espirituais e morais que fazem com que as nossas vidas sejam dignas e significativas e que o mundo em que vivemos conheça a paz. Podemos fazer essa escolha, e continuar a reflectir, saber-nos responsáveis das nossas próprias vidas, dos nossos semelhantes, das gerações que nos irão suceder e de que possamos continuar a habitar o planeta Terra. Cada um de nós tem a liberdade de optar por viver na verdade, criar beleza, ser justo e ter compaixão. Oppenheimer sabia que o seu legado seria a bomba atómica, a arma que pode aniquilar a nossa espécie e o seu humanismo. Por isso, também nos quis deixar isto: a consciência de que nos resta uma arma que, todavia, pode aniquilar a bomba atómica, o fascismo e o culto da morte. É a bandeira da esperança: o humanismo europeu e o seu amor pela alma humana” (pp.100-101, La palabra que vence la muerte, 2025).
 
[Quando T. Mann, filho de mãe brasileira e pai negociante de sucesso que falece quando Thomas tem 16 anos e que viria a falecer com aneurisma em 1955 na região de Zurique, se refere ao “substracto neurótico de tempos arcaicos” a memória reconduz-nos às imagens e tensão que Michael Haneke coloca em cena em “Laço Branco” (2009) e a ideia de cultura com seus contos de fadas, monstros, danças de são vito impelem-nos para os flashes de fantasmas que povoam as personagens (reais) de “Zona de Interesse” (2023), de Jonhatan Glazer (a partir de Martin Amis)].
 
7.Bem sei, diz Thomas Mann, em “Alocução alemã. Um apelo à razão” (1930), que “a burguesia”, a que “pertenço”, “por instinto, está contra o socialismo”. E, por todo o lado, o fantasma do “marxismo” é agitado (sempre que algum interlocutor manifestava uma posição com a qual estavam em desacordo, os nazis qualificavam a posição como “bolchevismo cultural”, como regista Antonella Marty, comparando a mesma ausência de argumentos e primarismo/instrumentalização a que se recorre em nossos dias, em expressões de recorte muito similar). Todavia, “a social-democracia contrasta com o marxismo”, o chamado marxismo presente na social-democracia resumir-se-ia, então, a um esforço, por parte desta, por “proteger e melhorar o modo de vida social e económico da classe operária”, “manter a actual forma de Estado” e “defender a política externa (…) no sentido do entendimento e da paz” e, aliás, “os trabalhadores responderam à exigência dos empresários, de redução de quinze por cento dos salários, com a proposta de se encurtar o tempo de trabalho para quarenta horas semanais, com pagamento apenas destas, mas, em contrapartida, seriam admitidos desempregados com a ajuda das poupanças assim conseguidas. Creio que, em face do egocentrismo férreo que se tornou natural na coisa económica no mundo inteiro, esta proposta mostrou um espírito de sacrifício e um sentido do bem comum que é de admirar” e, se é certo que “o predomínio do pensamento de classe sobre o do Estado, do povo, da cultura, a juntar ao materialismo económico” não alcança suficientemente a importância do espírito, todavia tem laços com este bem mais amigáveis do que a cultura burguesa que parece ter desaprendido o contacto com o espírito vivo e as exigências da vida, pelo que, e em suma, “o lugar político da burguesia alemã, hoje, é ao lado da social-democracia”. Mais: convocando o pensamento de Novalis, formulado em 1798, Thomas Mann avança com um argumento que, cremos, poderíamos dizer que como que antecipa/afirma a noção da importância da liberdade em sentido positivo: o cidadão “há-de queixar-se de taxas, porque são altamente benéficas. Quanto mais uma pessoa terá de despender fora do Estado para conseguir que lhe proporcionem segurança, justiça, boas vias, etc.!”. Mann notava, ainda, que a parte da burguesia que era católica tinha sido muito menos sensível ao apelo dos nacional-socialistas – “a sua parte católica também politicamente está resguardada no seio da Igreja e, não é sem inveja que o dizemos, bem resguardada. O espírito universalista e supranacional da Igreja mostra também hoje o seu valor ao revoltar-se com vigor contra o paganismo étnico e está por inteiro ao lado dos poderes que actuam no sentido de conduzir a Europa à cura dos espasmos doentios do nacionalismo. O alemão digno de se chamar seu filho tem à sua disposição, à partida, uma síntese da antítese, que nunca deveria ter ganho tal nitidez, entre pátria e humanidade”.
Depois da confessada ingenuidade sobre o eclodir da guerra, da exaltação cultural-patriótica, do incensar da guerra como resolução dos conflitos dos males do seu tempo – como se esta não viesse adicionar cadáveres em vez de colocar termo a esses problemas -, da perspectiva de que “o espírito da história está connosco” (mas por quanto tempo?) [em Pensamentos a propósito da Guerra, 1915], Thomas Mann confronta-se, finalmente, com a figura a quem os alemães se entregaram (a capacidade humana de se entregar a figuras de pura maldade, em movimentos completamente centrados em uma dada personalidade, de submissão e humilhação face ao títere do tempo, qual seita, como hoje se vê, de novo, e de modo especial que não exclusivo com Trump, tem-se revelado infinita, assinala, de novo A. Marty), Adolf Hitler (em “O meu irmão Hitler”, 1939), em um retrato que é tanto um fresco histórico como uma atordoante lembrança de um estilo, de um linguajar, de uma forma que, na atualidade, também nos não são estranhas: em realidade, “ninguém consegue escapar a esta figura sombria”, com a Europa a sucumbir ao fascínio deste homem que “encarna o papel de eleito ou herói de todos”. Trata-se, bem entendido, de “um ser inútil, extremamente preguiçoso, inapto para qualquer trabalho”, recusando dedicar-se a “exercer qualquer atividade sensata e honrada”, marcado por um “complexo de inferioridade”, cuja acção política será perpassada pelo “ressentimento e vingança” (“com base numa vaga sensação de estar reservado para algo de totalmente indefinido, algo que, se pudesse ser nomeado, desencadearia fortes gargalhadas por todo o lado. Acresce ainda a má consciência, o sentimento de culpa, a raiva para com o mundo, o instinto revolucionário, o desejo violento, acumulado no subconsciente, de encontrar formas de compensação, a tenaz e tumultuosa necessidade de se justificar, de se afirmar perante os outros, a urgência em dominar e subjugar, o sonho de ver um mundo que definha em medo e amor, admiração e vergonha, rendido aos pés daquele que fora outrora enjeitado…”, dirá Mann, em retrato psicologista do seu compatriota, o Fuhrer dos alemães), com promessas de uma “grandeza saída das cinzas” à espera dos alemães assente em “ficções” e “mentiras”: “uma eloquência que arrasta massas, ainda que de qualidade ínfima, transformado em mero instrumento histérico e histriónico com o qual vai mexendo na ferida do povo, cativando-o com a profecia de uma grandeza saída das cinzas, atordoando-o com promessas, convertendo o sofrimento nacional em veículo para a sua glória, a sua ascensão a alturas fantásticas, ao poder absoluto, a compensações e sobrecompensações inauditas…a uma glória e a uma santidade tão avassaladoras que quem quer que, no passado, tenha duvidado daquele homem desconhecido, invisível e miserável, se transforma em alvo da morte, por sinal, da morte mais vil e atroz, uma morte infernal…este mesmo homem não se contenta com as fronteiras nacionais e tem a Europa em mira, aprendendo a disseminar, em contexto alargado, as mesmas ficções, as mesmas mentiras histéricas, os mesmos artifícios atordoantes que lhe haviam servido de trampolim em casa…”.
O captar do espírito do tempo (zeitgeist) e com sonoridades que parecem ressoar os nossos dias adquire, em 1930, a seguinte denúncia: “o nosso tempo representa um amplo e selvático retrocesso contra a moralidade deste século, se é que se pode falar de moral. Tudo parece possível, parece permitido contra a decência humana e a lição vai no sentido de que a ideia de liberdade se tornou tralha burguesa, como se uma ideia que está tão intimamente ligada ao pathos europeu, a partir da qual a Europa precisamente se constituiu e que tanto sacrifício causou, pudesse verdadeiramente perder-se; assim, a liberdade eliminada com método aparece de novo, em forma actualizada, como degradação e escárnio de uma autoridade que se apregoa como humanitária, mas se esgotou, uma liberdade como desenfreamento dos instintos, emancipação da alarvidade, ditadura da violência”.
Se o mais importante num escritor, num Nobel da Literatura será a sua obra ficcional – a que tem A montanha mágica ou Os Buddenbroock como dois dos maiores expoentes -, em um tempo como aquele que foi dado viver a Thomas Mann, e como o próprio também dirá, mesmo os mais entusiastas da arte, compreendem (em tal lúgubre Inverno) a premência do político. É por isso, e porque hoje, outra vez, formas renovadas de autocracias cercam a cidade, homens-fortes, títeres e joguetes, lei da selva e histrionismo, alegada libertação dos instintos primários e grosseria à farta, crueldade e impiedade recrudescem com implacável intensidade, importa lembrar o percurso e os escritos políticos – que revelam a coragem, sensatez e lucidez de não permanecer no que é erro, e erro com consequências trágicas - do homem de quem se estão a celebrar, um pouco por todo o mundo, os 150 anos de nascimento.

 

Pedro Miranda

 

 




[1] Não apenas Paul Valery, em 1919, cinco anos após o início da guerra, publicará uma carta cuja frase inicial se tornará célebre – “Nós, as civilizações, sabemos agora que somos mortais” -, como Thomas Mann, no mesmo sentido, em 1921, em ensaio sobre Goethe e Tolstói [Sobre o problema da Humanidade] indagaria se “a tradição mediterrânico-clássica-humanista é uma herança espiritual que continuará a ser importante para a humanidade, ou não foi mais do que uma ideia fugaz, algo específico da época burguesa-liberal e que morrerá com ela”. No Livro do Desassossego, encontrado em 1935, por sua vez, Fernando Pessoa regista: “quando nasceu a geração a que pertenço, encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro e ao mesmo tempo coração. O trabalho destrutivo das gerações anteriores tinha feito que o mundo para o qual nascemos não tivesse segurança na ordem religiosa, [não possuísse] apoio que oferecer-nos na ordem moral, tranquilidade que dar-nos na ordem política […] Ébrias de algo, duvidoso, a que chamaram «positividade», essas gerações criticaram toda a moral, esquadrinharam todas as regras da vida e de tal choque de doutrinas só restou a segurança de nenhuma e a dor de não existir essa segurança […] Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje com os mesmos procedimentos com que se conquista um internamento no manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade, a hiperconexão”. Ora, “o que observam Valéry, Mann e Pessoa é que o ideal civilizatório do humanismo europeu desapareceu no século XX. Uma cultura que quer elevar os indivíduos mediante o cultivo dos valores espirituais e morais que dão vida, deu lugar ao fascismo, uma ideologia em que domina o homem-massa que já não conhece outra coisa senão temores e desejos, obediência ao líder e adaptação gregária, uma ideologia que com a perda da lei moral em nós inevitavelmente desemboca no culto da morte e (…) no fim da civilização” (Rob Riemen, La palabra que vence la muerte, 2025, pp.98-99).

[2] “Os princípios que se atribuem a Jesus Cristo nos Evangelhos, como o mandamento de «amar o próximo como a si mesmo» (Marcos 12, 30-32) e a identificação do estrangeiro com o próximo, estão em clara contradição com a narrativa da nova direita, que, apesar de invocar Jesus Cristo, promove uma visão excludente e restritiva face aos imigrantes. Inclusivamente, segundo o Novo Testamento, o tratamento compassivo face aos estrangeiros é essencial para o juízo final, como se indica em Mateus 25,35, onde se descreve aqueles que serão bem-aventurados por ter dado de comer, beber e acolher os estrangeiros. A nova direita, sem dúvida, ficaria fora do paraíso. (…) O paradoxo dos trumpistas ou da xenofobia da nova direita é que, sob as suas próprias políticas migratórias, Jesus Cristo não poderia entrar nos Estados Unidos, nem na Europa: seria recusado por ser migrante, por ser pobre, por ser do Próximo Oriente, por ter uma cor de pele que «contamina o sangue da nação» (como repete Trump) e por trabalhar como carpinteiro, um ofício que, segundo eles, não está na categoria de «trabalhador qualificado ou necessário” (Antonella Marty, La nueva derecha, 2025, p.41). Por seu turno, bem recentemente, o Arcebispo de Tarragona, Joan Planellas, também Presidente da Conferência Episcopal Tarraconense afirmou, a propósito das posições do partido VOX em matéria de imigração e de liberdade religiosa e seu exercício, que “um xenófobo não pode ser um verdadeiro cristão. E parece-me que isto deve ser dito com toda a contundência” (vide https://elpais.com/espana/2025-08-12/el-lider-de-los-obispos-catalanes-replica-a-abascal-un-xenofobo-no-puede-ser-un-verdadero-cristiano.html). No que concerne ao caso português, registem-se as mais recentes palavras do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, em alocução acerca da identidade cristã da Europa, sobre as posições do partido Chega: “o sistema político tem de ser neutral do ponto de vista religioso (…) [isso é] fundamental (…) Vejo pessoas falarem de identidade cristã e defendem pena de morte. Não se pode ser contra o aborto e a favor da pena de morte, isso não existe (…) [Tais políticos andam sempre] Com o cristianismo na boca, mas não praticam nada (…) Defendem a total indignidade dos migrantes (…) [Uma coisa é] regular a imigração, [outra é] tratar mal, insultar e estigmatizar” (Público, 27-08-2025). Recorde-se, e entre muitas outras acções e propostas que colocaram, em absoluto, em causa a dignidade da pessoa, o partido Chega propôs, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, um cerco sanitário, um gueto para uma determinada etnia, durante a pandemia – vide https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/debates-tv-e-verdade-que-andre-ventura-defendeu-o-confinamento-da-populacao-cigana-em-portugal/; https://expresso.pt/politica/2020-05-06-Covid-19-Ventura-diz-que-apresentara-plano-de-confinamento-para-populacao-cigana-mesmo-sem-apoios; um deputado do partido Chega dirigiu-se a uma deputada cega, de outro partido, dizendo-lhe que aquela só sabia falar de temas ligados à deficiência (vide https://sicnoticias.pt/pais/2025-02-13-video-chega-diz-que-deputada-cega-do-ps-so-fala-sobre-deficiencia-48a036bd); a condenação em tribunal, de André Ventura, por segregação racial – vide https://sicnoticias.pt/pais/2021-12-06-Supremo-confirma-condenacao-de-Andre-Ventura-por-segregacao-racial-8d180ecc; os insultos a deputados de outros parlamentares fizeram permanentemente parte do seu modo de agir - https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/os-insultos-piadas-racistas-e-bullying-dos-deputados-do-chega?utm_source=priberam&utm_medium=referral&utm_campaign=dbi_cruzados&utm_term=det_outras_noticias_cofina&utm_content=cm&from_pub=CM -, o discurso do ódio propagado em permanência, a estigmatização de pobres e minorias de diferente tipo, o rever-se em líderes como Trump, Bolsonaro (de quem exibiu apoio em eleições: https://expresso.pt/politica/partidos/2024-01-02-Bolsonaro-gravou-video-a-manifestar-apoio-a-Andre-Ventura-5b2d5e62),  ou Marine Le Pen (que o Chega trouxe a uma conferência em Portugal - ), bem como a participação em comícios do VOX e do líder deste partido em comício do Chega (https://www.dn.pt/politica/andre-ventura-discursa-em-reuniao-da-direita-radical-em-madrid),  a presença, simultânea, de seus membros em organizações neo-nazis (https://www.dn.pt/sociedade/grupos-de-odio-mobilizaram-campanha-do-chega-e-preparam-o-terreno-para-que-partido-tome-acoes-mais-radicais), a inclusão do Chega, em relatório de organização norte-americana, como grupo neo-nazi (https://www.publico.pt/2023/06/27/politica/noticia/relatorio-americano-grupos-odio-coloca-chega-lado-neonazis-2054774), levou a que muitos, no mesmo espectro político, recusassem a possibilidade de coligações com tal partido. De resto, já em 2020, vários referentes (67 intelectuais e outras personalidades) de direita portuguesa a militarem contra a possibilidade de acordos com este partido - https://www.publico.pt/2020/07/11/politica/noticia/higienizacao-academica-racismo-fascismo-chega-1923953 – por violação manifesta do princípio do respeito pela dignidade da pessoa, e, para o que nos importa neste ponto, alguns destes consideram, também, posição em que me revejo, que o Chega é, claramente, um partido anti-cristão e anti-católico:  https://rr.pt/artigo/henrique-raposo/2019/10/31/nem-um-voto-cristao-no-chega/170103/.

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