Nos
150 anos do nascimento de Thomas Mann, o revisitar de um percurso político
1.De
entre as mais marcantes alocuções/crónicas radiofónicas realizadas ao longo do
século XX, as de Thomas Mann, Nobel da Literatura em 1929, nascido em
Lubeck, na Alemanha, no seio de uma família abastada, segundo de cinco filhos,
em 1875 (personalidade/autor de quem se comemoram, em terras germânicas e um
pouco por todo o mundo, pois, ao longo deste ano, os 150 anos do seu
nascimento), lidas na BBC (podem
escutar-se no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=25YNc5bX7xY),
exercício de rememoração, o de recuperar do melhor que passou pela rádio ao
longo da sua história, que vimos efectuando nesta rúbrica, contam-se entre as que ganham, nos alvores da década de 30
da centúria passada, em cunho profético (no
tempo em que se situam), palavras nas quais vale a pena, ainda, atentar em
nossos dias.
2.Transcritas
(selecionadas, traduzidas), algumas dessas intervenções de Mann na BBC Radio, na recolha antológica de Teresa Seruya em “Thomas Mann. Um
percurso político” (Bertrand, 2016),
conjuntamente contempladas com discursos políticos de igual relevo, pelo mesmo
autor, em areópagos de suma relevância (incluídas, do mesmo modo, nesta selecta), permitem-nos identificar um
trajecto cidadão que, não sem contradições e ambiguidades, irá da feroz defesa
da guerra (Pensamentos em tempo de guerra
[1915], no contexto da Primeira Guerra Mundial) até à elaboração de uma
exortação à burguesia alemã – da qual
Mann sempre se reclamou originário e membro – para que alinhasse e se juntasse
à social-democracia, enquanto ideário
que melhor se adequaria aos anseios que aquela nutria (Alocução alemã. Um apelo à
razão [1930]), nomeadamente, “só a uma política externa que sirva o
entendimento franco-alemão corresponde uma atmosfera
(…) onde os desejos de felicidade burgueses como a liberdade, a vida do espírito, a cultura têm possibilidade de viver.
Qualquer outra encerraria em si uma ascese
nacional e uma crispação que
significariam um conflito terrível entre pátria
e cultura e, bem assim, toda a nossa
desgraça”, evitando (em seguindo a recomendação do romancista) o alinhamento
com as forças mais obscuras e trágicas da história.
3.Se,
em 1915, ano seguinte ao início da Primeira
Guerra Mundial, tempo que sucedeu a quatro décadas de paz e prosperidade na
Europa, época em que se acreditou que a interligação
entre países, a globalização, o comércio impediriam, sempre, o regresso
da guerra (grande repercussão e crédito havia colhido, com tais teses, Norman Angell, Nobel da Paz em 1933, com The
Great Illusion [publicado em 1909]), Thomas Mann, então com 39 anos,
militaria entre os intelectuais, poetas, cientistas, artistas, professores
universitários que saudavam, efusivamente, o eclodir do conflito bélico,
ligando-o à natureza e cultura alemãs (entre os quais, R. Dehmel, Emil Ludwig, Alfred Kerr,
R. Musil), em 1922, por sua vez, já
integrando as consequências devastadoras de uma romantização da guerra (muitos
outros intelectuais alemães, naquele primeiro quartel do século XX,
manifestar-se-iam em sentido oposto ao de Mann, refira-se; entre estes, Albert Einstein, G.F.Nicolai, Wilhem Foerster;
autores como Ernst Stadler, Jacob Wasserman, ou Stefan Zweig desde a aurora da contenda
mundial aperceberam-se da extensão do desastre que aquela constituía e
acarretaria), e depois de, inclusivamente, perder o humor e alegria de estar em
família, deporia em favor da República de
Weimar (com a derrota na Primeira
Guerra Mundial, cai, também, atente-se, a monarquia alemã, em 1918) –
reconciliando-se, então, com o irmão Heinrich,
com o qual ficara desavindo, por profunda discordância política, em um momento
em que eram a guerra e as principais instituições políticas alemãs que estavam
em equação (Thomas Mann passa, então, de antidemocrata
e conservador a um dos mais lídimos
representantes do humanismo europeu;
o escritor transita da mística da morte
de Schopenhauer e Wagner ao entendimento pleno dos versos
de Goethe: “estar na vida com dignidade e ser mais forte do que a morte”. Ou
seja, o que dá dignidade à existência
humana não é a morte, mas a vida. (Cf. Rob
Riemen, La palabra que vence la
muerte, Penguin, Barcelona, 2025, p.45).
4.Em
1925, pelos seus 50 anos, Thomas Mann é celebrado por toda a Alemanha e faz,
ademais, inúmeras viagens por diferentes países europeus, nos quais é
igualmente festejado. Uma dimensão diplomática, poucos anos depois do Armistício e do Tratado de Versalhes, é acoplada a estas voltas do escritor pelo Velho Continente.
Já
com os nazis no poder, Mann, que vivera em Munique, e em razão do espírito
crítico que propalara à nação, será, contudo, obrigado a exilar-se – primeiro,
ficará em Arosa (Suíça), bem sabendo que em voltando à Alemanha teria a prisão
como destino; a sua casa de família é
confiscada e arrendada, sem uma palavra da parte do Estado, a outro agregado
familiar, em 1933, apesar dos 97000 marcos
pagos por Mann em “imposto por fuga do Reich”;
Hanns Johst, escritor também, instrutor das SS, o homem celebrizado pela máxima
“quando me falam de cultura, puxo logo da pistola”, sugeriu, em carta a Himmler, que Mann fosse levado para o campo de concentração de Dachau; apesar
do exílio paterno, alguns dos filhos de Thomas Mann permanecerão na Alemanha, o
que estará na origem de uma demanda/epístola diplomática, de algum modo
controvertida, enviada ao ministro do
Interior (do Reich), na qual o
escritor procurava alguma forma de salvaguarda com vista a um regresso
(permanente) à Baviera, propondo, no limite, calar-se, sobre política (levada a
cabo pelos dirigentes do seu país de origem), no exterior (enquanto aí permanecesse); depois, “a onda mágica da vida” endereçá-lo-á aos EUA (país no qual obterá
uma segunda cidadania), em 1938, já
após a sua obra ser proibida na sua pátria natal (em 1936), sendo que Mann e o
seu círculo próximo mal sabiam
línguas - de resto, ainda mais curioso, o Nobel
da Literatura, no seu percurso escolar, raramente conseguiu obter mais do
que “Suficiente” a Alemão, para lá de
ter tido que repetir ano de escolaridade por mais de uma vez e não ter passado
no Abitur, exame de acesso à universidade, decorrências enxertadas em uma
personalidade complexa na qual aos seis filhos que teve com sua esposa não
deixar de adicionar atracção por pessoas do mesmo sexo.
5.Praticamente
na abertura de Pensamentos em tempo de
guerra (1915), Thomas Mann estabelece uma dicotomia, e situa a Alemanha
face a esta, que se compreenderá em chave de quadro estrutural que, com
revisões, desilusões, identificação de novas declinações e ângulos de análise e
interpretação associadas ao devir histórico que lhe é dado viver e examinar
integrará no seu pensamento e textos ao longo das três décadas seguintes: a
contraposição entre cultura (Kultur) e civilização
(Zivilisation) e a preeminência da
primeira sobre a segunda entre os alemães. Longe de assimilar/identificar entre
si os dois conceitos, Mann toma cultura
e civilização como sucedâneos de natureza
e espírito,
respectivamente, associando ao primeiro dos termos sensualidade, mística, arte, forma, atitude, estilo, risco moral, desprezo pela
segurança, enquanto à família da
segunda das noções pertenceriam a razão
(abstracta), o progresso, o cepticismo,
a decência, o esclarecimento.
A
modos de um lance em que o dionisíaco
superaria o apolíneo, (cultura, que “pode abranger oráculos,
magia, pederastia, papões, sacrifícios humanos, formas de culto orgiásticas, a
Inquisição, autos-da-fé, danças-de-são-vito, processos de bruxas, o auge de
envenenamentos e os horrores mais variados”, sobrelevada/acometida à) Alemanha
transporia a (razão abstracta encarnada
primacialmente pela) França, o rei Frederico,
o
Grande, impor-se-ia a Voltaire:
“Voltaire e o rei: é a razão e os
demónios, o espírito e o génio, a luminosidade seca e o destino nublado, a
civilidade burguesa e o dever heróico”. A Alemanha dedicar-se-ia a formas
superiores de vida, era mais profunda,
interior, metafísica, devotada à/imersa na música (a arte alemã, por
excelência). Nesse sentido, o exterior,
o mundo social, o universo político não suscitaria o mesmo
apelo, entusiasmo, consideração ou prestígio aos alemães (do que as formas de vida interior). Em uma ilustração do que
o elementar, o primordial, sem a patine lustrosa da civilização, permite conhecer de modo próprio (e de cujas amarras
ou garras civilizatórias haverá que
fugir), Thomas Mann escreve em 1915, em Pensamentos
em tempo de guerra: “o espírito é
civil, é burguês: é inimigo declarado dos instintos, das paixões, é
antidemoníaco, anti-heróico, e dizer que é anti-genial é apenas um contra-senso
aparente (…) Turgueniev deu uma
vez expressão serena e simples à total irrelevância da relação entre espírito e
arte, ao pôr um qualquer redactor a responder ao envio de um diletante da
escrita: «O Senhor tem muito espírito, mas nenhum talento. E à literatura só
talento serve».
A arte, como toda a cultura,
é a sublimação do demoníaco. A
disciplina que exige é mais severa que toda a ética, possui um saber mais
profundo do que o mero esclarecimento, um descomprometimento e uma
irresponsabilidade mais livres do que o cepticismo, o seu conhecimento não é
ciência, mas sensualidade e mística. Pois a sensualidade é essencialmente
mística, como tudo o que é natural. Goethe,
para cujas investigações sobre a natureza Helmholtz
escolheu a designação «intuições científicas», pressentiu o terramoto de Messina, à noite no seu quarto de dormir
de Weimar, de um jeito a um tempo natural e místico. «Ouçam, Goethe devaneia!»,
disseram as senhoras da corte quando ele quis anunciar o seu saber demoníaco e tentou fazê-lo passar por observação e
dedução. Mas uns dias depois chegou a
notícia da catástrofe”.
E,
no entanto, a grandiloquência acerca do primitivo,
do selvagem, do sanguíneo soçobram e naufragam, primeiro, sobre os milhões que
pereceram e foram mutilados entre 1914-1918 – “Sim, a esfera do sangue é também, terrivelmente, a esfera sanguinária
(…) Guerra é romantismo. Jamais
alguém lhe negou o elemento místico-poético que lhe é inerente. Negar que ela hoje é romantismo reles,
poesia repugnantemente desfigurada, seria obstinação (…) Actualmente o
mundo, os povos são velhos e espertos, o estádio da vida épico-heróico de cada
um deles há muito ficou para trás, a tentativa de recuar no seu encalço
representa uma vil sublevação contra a lei do tempo, uma inverdade espiritual, a guerra é mentira, os seus próprios
resultados mentiras são, e por muita honra que o indivíduo possa estar disposto
a introduzir-lhe, mesmo hoje em dia ela é despida
de toda e qualquer honra, e por isso se manifesta ao olhar de quem não se
defrauda a si próprio quase em absoluto como triunfo de todos e quaisquer elementos baixos e brutais de um povo,
hostilizando fidalgamente a cultura e o
pensamento, numa sangrenta orgia de egoísmo, depravação e torpeza” (escreve
T. Mann, em 1922, em Da República alemã)
-, depois, pela ascensão da “boçalização”,
da “doença do povo”, da “alarvaria de feira”, da “barbárie excêntrica” que constituiu o
nazismo.
O
desbragamento do apelo emocional pelo exacerbamento romântico – com ele, “a razão, que gozava de primazia sobre a
emoção, mesmo quando esta assumia as suas formas mais remotas de êxtase
místico ou inebriamento dionisíaco,
é posta em relação com a doença” – vem a redundar, com a sua dedicação à irracionalidade e ao passado, em “uma profunda afinidade com a morte”: “foi na Alemanha, sua verdadeira terra natal, que o Romantismo deixou o
testemunho mais veemente e fatídico desta sua ambiguidade cambiante, desta sua
oscilação entre o enaltecimento do Vital contra o puramente Moral e a sua
afinidade com a morte”.
Nos
escombros da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), um ávido auditório
norte-americano espera pela palavra de Thomas Mann sobre “A Alemanha e os
alemães” (1945) (explicação, balanço?) e aí, o escritor-cidadão, filho de senador, recusando colocar-se de fora e
julgar o povo a que pertence (“quem é alemão está implicado no destino
alemão e na cultura alemã”, assumirá) remeterá a uma “espécie de histeria de fiéis da Idade Média” o ambiente da cidade
em que crescera, com um “substracto
neurótico de tempos arcaicos”, habitado por “figuras excêntricas e semi-lunáticas”. A obra-prima literária da
nação era o Fausto, de Goethe, e a música, a arte privilegiada pela
Alemanha, contendo caos e ordem em simultâneo, era, também, “território do demónio”.
6.Sem
que a história se repita, como Mann acreditava, talvez rime mesmo, e a exaltação do primitivo,
dos instintos mais básicos e
grosseiros, do sanguíneo e do histriónico como registos exclusivos –
como exclusivo e excludente seria o negligenciar das emoções, ou os limites do que vem a tomar-se por razão, ignorando intuição, coração ou o transracional - enquanto paródia de qualquer
diálogo ou arte, do emocional sem qualquer filtro, qual homeostasia qual quê?, tenha, hoje, algo da mesma natureza do
observado há 100 anos (com a barbarização do discurso no espaço público, de actos públicos e privados, a contaminar o
horizonte). Também, hoje, a apologia de uma suposta autenticidade que mostre o selvagem
– que o conservador Mann [“na verdade, sou um conservador. A minha
função neste mundo não é de cariz revolucionário”] não supunha
necessariamente bom – em estado
quimicamente puro, como Chul-Han
evidencia em Do desaparecimento dos
rituais (Relógio d’Água, 2020)
mais não resulta do que derrisão de e da comunidade. Multiplicam-se os debates
acerca de uma paideia que seja
geradora de uma harmonia não polarizadora e extremada presente no indivíduo,
a tal configuração disciplinar, uma ecologia mesmo de vida que sustentasse a
promoção do melhor do humano e a não queda no brutalismo a que assistimos (de António Damásio [A estranha
ordem das coisas, Temas e Debates, 2017] a P. Sloterdijk [Regras para o
parque humano, Angelus Novus, 2008], de P. Singer [Ética no Mundo
Real, 2025] a M. Garcés [Novo Iluminismo Radical, Orfeu Negro,
2023]…). Já em 1930, ano em que nas eleições para o Reichstag, o partido nacional-socialista,
NSDAP, obtém 18,3% dos votos
(obtivera 2,6% dois anos antes) e 107 mandatos (12 em 1928), em Alocução alemã. Um apelo à razão, Thomas
Mann denunciava “a perda de conceitos
morigeradores e austeros como cultura, espírito, arte, ideia” como uma das
causas para o mergulho no descalabro que se anunciava. Hoje, e para evocarmos
“conceitos morigeradores”, M. Onfray (Decadência. O declínio do Ocidente, D.
Quixote, 2019) ou E. Todd (A derrota do Ocidente, Princípia, 2025),
por exemplo, observam a deserção face ao cristianismo – instrumentalizado, é
certo, como ideologia e evocado para, tristemente, mais facilmente o desfigurar,
da Hungria aos EUA, da Polónia ao Brasil, passando por Espanha e Portugal
– como motivo de ocaso civilizacional.
E, aqui, defina-se civilização com Goethe: “É um exercício permanente de respeito. Respeito pelo divino, pela
terra, pelo nosso próximo e também pela nossa própria dignidade” (Apud. Rob Riemen, o.c., Penguin, Barcelona, 2025). As eleições
legislativas alemãs de 1930 são as primeiras que ocorrem após o crash de 1929 na Bolsa de Nova Iorque
cujas metástases ferem, de modo contundente, a Europa. A Alemanha, num ápice,
chega aos 14% de desempregados, em 1930, e aos 25,9% em 1933. A agitação social
é, então, elevada. No elenco de motivos para a ascensão do nazismo, Thomas Mann
refere-se a este desemprego massivo,
ao Tratado
de Versalhes, às reparações “cegas
e arcaicas” que a Alemanha teria que pagar, aos cortes e à austeridade praticada pelo Estado alemão
– “um povo economicamente doente não
pode ter um pensamento político saudável”; as zonas economicamente mais
afectadas pela crise de 1929, nos EUA, bem como as mais atingidas pelos efeitos
das políticas de austeridade no Reino Unido, durante a Grande Recessão pós-2008, assinala Martin Wolf, em A crise do
capitalismo democrático (Gradiva, 2023) votaram mais na extrema-direita do que as médias
nacionais, e um conjunto de atitudes de tipo cultural, como racismo e xenofobia, foi nelas mais activado, o cultural despertado pelo económico
na leitura do ensaísta. Todavia, “o
resultado das eleições não se explica apenas pela economia”, no que seria
uma redutora “visão unilateral”. A imposição à Alemanha da desmilitarização, o sentimento de honra perdida, a difusão do ódio e do fanatismo concorrem para aquele
resultado. Aliás, a sucessiva emergência das atrocidades nazis “nenhuma teoria da psicologia pode explicar”
(no que aqui recordo o que anos depois um sobrevivente daqueles campos de concentração e de extermínio, Jean Améry, haveria de escrever, em Para lá de crime e castigo: “não passam de argumentos pueris o Tratado de Versalhes, a crise económica
e a miséria, que teriam conduzido o povo ao nazismo”), até porque, para
obter os mesmos resultados políticos os nazis não tinham necessidade de impor
tais crimes contra a humanidade.
Como
se havia caído no “fascismo”? Nietzsche,
em 1886, apontará, já, “‘o signo mais claro da modernidade: os homens foram perdendo
valor de uma maneira incrível e eles
mesmos o sabem’. Nietzsche observa que o Homem perdeu a sua alma e já não tem – ou melhor, já não pode ter – noção
dos valores espirituais e morais absolutos que, por conseguinte, já não podem
existir. Portanto, sua sombria previsão é a de que se irá produzir uma inversão dos valores. Às pessoas já não
lhes preocupa [saber] quem são, mas o
que querem possuir. A qualidade (um valor espiritual) será
substituída por uma obsessão com a quantidade
e a crença obsessiva de que tudo o que é maior
e mais é melhor. O anelo de liberdade
e responsabilidade que é o seu
corolário será substituídos pelo medo à
liberdade e a adoração de um novo ídolo: O Líder [medo da Liberdade tão bem denunciado na parábola do Grande Inquisidor, de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky]. As musas cederão o seu
lugar ao entretenimento vulgar e
tampouco há dúvida de que a justiça,
a liberdade serão substituídas pelo poder e pela riqueza”. Foi destruído, afinal, o humanismo, Rob Riemen? “O que é inegável é que o espírito fascista, a mentalidade diametralmente
oposta ao humanismo europeu continua
a estar entre nós e manifesta-se de formas que vão mudando o tempo todo. A qual
não há-de surpreender, porque a «inversão de valores» anunciada por Nietzsche é
agora mais intensa do que nunca, com valores materiais e utilitários
que são a antítese dos valores espirituais e morais do humanismo”. E há em tudo
isto uma inevitabilidade e uma impotência (ad
eternum)? Isso é que não: “Mas também é inegável o que continua a ser certo
[:] o ser humano é livre! Há um acervo cultural que pode oferecer-nos o educare que nos torna conscientes do mal
que se oculta em cada um de nós, mas também da nossa luz interior [brilho interior],
a lei moral em nós. Assim, podemos
transcender a nossa natureza animal e internalizar os valores espirituais e
morais que fazem com que as nossas vidas sejam dignas e significativas e que o
mundo em que vivemos conheça a paz. Podemos fazer essa escolha, e continuar a
reflectir, saber-nos responsáveis das nossas próprias vidas, dos nossos
semelhantes, das gerações que nos irão suceder e de que possamos continuar a
habitar o planeta Terra. Cada um de nós tem a liberdade de optar por viver na verdade, criar beleza, ser justo e
ter compaixão. Oppenheimer sabia que
o seu legado seria a bomba atómica, a arma que pode aniquilar a nossa espécie e
o seu humanismo. Por isso, também nos quis deixar isto: a consciência de que
nos resta uma arma que, todavia, pode aniquilar a bomba atómica, o fascismo e o
culto da morte. É a bandeira da esperança:
o humanismo europeu e o seu amor pela alma humana” (pp.100-101, La palabra que vence la muerte, 2025).
[Quando
T. Mann, filho de mãe brasileira e pai negociante de sucesso que falece quando
Thomas tem 16 anos e que viria a falecer com aneurisma em 1955 na região de
Zurique, se refere ao “substracto neurótico de tempos arcaicos” a memória
reconduz-nos às imagens e tensão que Michael
Haneke coloca em cena em “Laço Branco” (2009) e a ideia de cultura com seus
contos de fadas, monstros, danças de são
vito impelem-nos para os flashes de fantasmas que povoam as personagens
(reais) de “Zona de Interesse” (2023), de Jonhatan
Glazer (a partir de Martin Amis)].
7.Bem
sei, diz Thomas Mann, em “Alocução alemã. Um apelo à razão” (1930), que “a burguesia”, a que “pertenço”, “por instinto, está contra o socialismo”.
E, por todo o lado, o fantasma do “marxismo” é agitado (sempre que algum
interlocutor manifestava uma posição com a qual estavam em desacordo, os nazis
qualificavam a posição como “bolchevismo cultural”, como regista Antonella Marty, comparando a mesma
ausência de argumentos e primarismo/instrumentalização a que se recorre em
nossos dias, em expressões de recorte muito similar). Todavia, “a social-democracia
contrasta com o marxismo”, o chamado
marxismo presente na social-democracia resumir-se-ia, então,
a um esforço, por parte desta, por “proteger
e melhorar o modo de vida social e económico da classe operária”, “manter a actual forma de Estado” e “defender a política externa (…) no sentido
do entendimento e da paz” e, aliás, “os trabalhadores responderam à
exigência dos empresários, de redução de quinze por cento dos salários, com a
proposta de se encurtar o tempo de trabalho para quarenta horas semanais, com
pagamento apenas destas, mas, em contrapartida, seriam admitidos desempregados
com a ajuda das poupanças assim conseguidas. Creio que, em face do egocentrismo
férreo que se tornou natural na coisa económica no mundo inteiro, esta proposta
mostrou um espírito de sacrifício e um sentido do bem comum que é de admirar”
e, se é certo que “o predomínio do pensamento de classe sobre o do Estado,
do povo, da cultura, a juntar ao materialismo
económico” não alcança suficientemente a importância do espírito, todavia tem laços com este bem
mais amigáveis do que a cultura burguesa que parece ter desaprendido o contacto
com o espírito vivo e as exigências da vida, pelo que, e em suma, “o lugar político da burguesia alemã, hoje,
é ao lado da social-democracia”.
Mais: convocando o pensamento de Novalis,
formulado em 1798, Thomas Mann avança com um argumento que, cremos, poderíamos
dizer que como que antecipa/afirma a noção da importância da liberdade em sentido positivo: o cidadão “há-de queixar-se de taxas, porque são
altamente benéficas. Quanto mais uma
pessoa terá de despender fora do Estado para conseguir que lhe proporcionem
segurança, justiça, boas vias, etc.!”.
Mann notava, ainda, que a parte da burguesia que era católica tinha sido muito
menos sensível ao apelo dos nacional-socialistas
– “a sua parte católica também
politicamente está resguardada no seio da Igreja e, não é sem inveja que o
dizemos, bem resguardada. O espírito universalista e supranacional da Igreja
mostra também hoje o seu valor ao revoltar-se com vigor contra o paganismo
étnico e está por inteiro ao lado dos poderes que actuam no sentido de conduzir
a Europa à cura dos espasmos doentios do nacionalismo. O alemão digno de se
chamar seu filho tem à sua disposição, à partida, uma síntese da antítese, que
nunca deveria ter ganho tal nitidez, entre pátria e humanidade”.
Depois
da confessada ingenuidade sobre o eclodir da guerra, da exaltação
cultural-patriótica, do incensar da guerra como resolução dos conflitos dos
males do seu tempo – como se esta não viesse adicionar cadáveres em vez de
colocar termo a esses problemas -, da perspectiva de que “o espírito da história está connosco” (mas por quanto tempo?) [em Pensamentos a propósito da Guerra, 1915],
Thomas Mann confronta-se, finalmente, com a figura a quem os alemães se
entregaram (a capacidade humana de se entregar a figuras de pura maldade, em
movimentos completamente centrados em uma dada personalidade, de submissão e
humilhação face ao títere do tempo, qual seita, como hoje se vê, de novo, e de
modo especial que não exclusivo com Trump,
tem-se revelado infinita, assinala, de novo A. Marty), Adolf Hitler (em “O meu
irmão Hitler”, 1939), em um retrato que é tanto um fresco histórico como uma
atordoante lembrança de um estilo, de um linguajar, de uma forma que, na
atualidade, também nos não são estranhas: em realidade, “ninguém consegue escapar a esta figura sombria”, com a Europa a
sucumbir ao fascínio deste homem que “encarna
o papel de eleito ou herói de todos”. Trata-se, bem entendido, de “um ser
inútil, extremamente preguiçoso, inapto para qualquer trabalho”, recusando dedicar-se a “exercer qualquer atividade sensata e
honrada”, marcado por um “complexo
de inferioridade”, cuja acção política será perpassada pelo “ressentimento e vingança” (“com base numa vaga sensação de estar
reservado para algo de totalmente indefinido, algo que, se pudesse ser nomeado,
desencadearia fortes gargalhadas por todo o lado. Acresce ainda a má
consciência, o sentimento de culpa, a raiva para com o mundo, o instinto
revolucionário, o desejo violento, acumulado no subconsciente, de encontrar
formas de compensação, a tenaz e tumultuosa necessidade de se justificar, de se
afirmar perante os outros, a urgência em dominar e subjugar, o sonho de ver um
mundo que definha em medo e amor, admiração e vergonha, rendido aos pés daquele
que fora outrora enjeitado…”, dirá Mann, em retrato psicologista do seu compatriota, o Fuhrer dos alemães), com promessas de uma “grandeza saída das cinzas” à espera dos alemães assente em “ficções” e “mentiras”: “uma eloquência
que arrasta massas, ainda que de qualidade ínfima, transformado em mero
instrumento histérico e histriónico com o qual vai mexendo na ferida do povo,
cativando-o com a profecia de uma grandeza saída das cinzas, atordoando-o com
promessas, convertendo o sofrimento nacional em veículo para a sua glória, a
sua ascensão a alturas fantásticas, ao poder absoluto, a compensações e
sobrecompensações inauditas…a uma glória e a uma santidade tão avassaladoras
que quem quer que, no passado, tenha duvidado daquele homem desconhecido,
invisível e miserável, se transforma em alvo da morte, por sinal, da morte mais
vil e atroz, uma morte infernal…este mesmo homem não se contenta com as
fronteiras nacionais e tem a Europa em mira, aprendendo a disseminar, em
contexto alargado, as mesmas ficções, as mesmas mentiras histéricas, os mesmos
artifícios atordoantes que lhe haviam servido de trampolim em casa…”.
O
captar do espírito do tempo (zeitgeist) e com sonoridades que parecem
ressoar os nossos dias adquire, em 1930, a seguinte denúncia: “o nosso tempo representa um amplo e
selvático retrocesso contra a moralidade deste século, se é que se pode falar
de moral. Tudo parece possível, parece permitido contra a decência humana e a
lição vai no sentido de que a ideia de liberdade se tornou tralha burguesa,
como se uma ideia que está tão intimamente ligada ao pathos europeu, a partir
da qual a Europa precisamente se constituiu e que tanto sacrifício causou,
pudesse verdadeiramente perder-se; assim, a liberdade eliminada com método
aparece de novo, em forma actualizada, como degradação e escárnio de uma
autoridade que se apregoa como humanitária, mas se esgotou, uma liberdade como
desenfreamento dos instintos, emancipação da alarvidade, ditadura da violência”.
Se
o mais importante num escritor, num Nobel da Literatura será a sua obra
ficcional – a que tem A montanha mágica ou
Os Buddenbroock como dois dos maiores
expoentes -, em um tempo como aquele que foi dado viver a Thomas Mann, e como o
próprio também dirá, mesmo os mais entusiastas da arte, compreendem (em tal
lúgubre Inverno) a premência do político. É por isso, e porque hoje, outra vez,
formas renovadas de autocracias cercam a cidade, homens-fortes, títeres e joguetes, lei da selva e histrionismo,
alegada libertação dos instintos primários e grosseria à farta, crueldade e
impiedade recrudescem com implacável intensidade, importa lembrar o percurso e
os escritos políticos – que revelam a coragem, sensatez e lucidez de não
permanecer no que é erro, e erro com consequências trágicas - do homem de quem
se estão a celebrar, um pouco por todo o mundo, os 150 anos de nascimento.
Pedro
Miranda
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