PAIS À MANEIRA DINAMARQUESA (JESSICA ALEXANDER E IBEN SANDAHL)
Pais à maneira dinamarquesa. Jessica Alexander e Iben
Sandahl
1.O modo como elogiamos uma criança, um filho, pode ser determinante para o tipo de inteligência que desenvolve: preferível é o foco ser colocado no processo, na tarefa ("esforçaste-te muito e deu resultado", "o que conseguiste foi fruto das horas que dedicaste"), mais do que na inteligência ela mesma ("és muito inteligente!"). No segundo dos casos, estar-se-á a contribuir para o forjar de uma inteligência fixa, com o (humano jovem) alvo de tais encómios a ficar mais dependente do elogio alheio (do que da motivação intrínseca), a desejar, de imediato, a perfeição (e, logo, a arriscar menos, a não querer, ou rejeitar, tarefas mais complicadas/arrojadas), a ter mais dificuldades quando dificuldades/obstáculos surgem; numa palavra, a ser menos resiliente. E sabe-se da centralidade da resiliência como factor fulcral no bom reagir às mais variadas (e adversas) circunstâncias da vida. Uma inteligência em desenvolvimento/crescimento é que é (e deve ser).
2.Criamos (demasiadas) dicotomias, falsas dicotomias, no nosso quotidiano (mental). Uma delas passa por criar uma cisão entre aprender e brincar. É que a brincadeira é uma forma de aprendizagem. Uma das múltiplas formas de aprender, aliás especialmente eficaz. Sobretudo, se livre, sem organização (institucional, prévia). Sem que tudo esteja preparado, decidido, cozinhado, sem que a criança intervenha. Sobretudo, se houver tempo e espaço. Se houver crianças diversas, de idades variadas. As crianças imaginarão brincadeiras, aprenderão a negociar entre elas (para que não haja desistências do jogo, para que não haja desinteresse), irão testar os seus limites (físicos, por exemplo, nas árvores), resolver problemas. Perceberão os outros. Os pais não deverão intervir a não ser que seja estritamente necessário. Há uma centralidade do brincar na Dinamarca, país com 5 milhões de habitantes, onde a LEGO - de leg godt, "brinca bem" - surgiu, na oficina de um carpinteiro, em 1932.
3.Mostrar vulnerabilidade, em sendo (esta) autêntica, claro, em uma conversa com a descendência pode ser muito útil: aproxima, gera confiança, mostra como se ultrapassou um período, ou situação, menos feliz. Assume (-se) que não apenas a felicidade existe, passamos por várias emoções e sentimentos. As crianças gostam de escutar estas histórias (dos mais próximos), sentindo a verdade das mesmas.
4.No Reino da Dinamarca, como explicam Jessica Alexander e Iben Sandahl, em Pais à maneira dinamarquesa (Arena, 2016), as histórias, os contos, os filmes são muitas vezes sombrios, carecem de um happy end, que julgam desnecessário, aliás. Não só porque a vida nem sempre é cor-de-rosa, não apenas porque é bom que sejamos capazes de identificar e lidar com tais situações, como, por vezes, apresentam, revestem tais narrativas o carácter terapêutico de nos recordar (implicitamente) os privilégios que a nossa existência contém (no confronto com o trágico do filme, ou conto infantil apresentado). Ler, ler muito para crianças, diferentes estudos o comprovam, contribuem para gerar empatia (nestas).
5. Desde 1973, a Dinamarca, nos mais diversos estudos e inquéritos acerca da felicidade, surge, quase incessantemente, como país líder nesse âmbito determinante. Embora muitas aproximações às causas que conduzem o país a esse lugar possam ser aduzidas - como um olhar político para um Estado Social generoso, por exemplo -, a educação, e, em particular o modo como pais e filhos se relacionam, pode ser uma determinante a destacar. E aqui um valor fundamental: o país alça a Humildade a lugar cimeiro na sua pauta axiológica.
6. As autoras de Pais à maneira dinamarquesa distinguem entre pais autoritários ("é assim porque eu mando","fazes isso porque eu digo"), que, não raro, geram filhos com bons níveis de desempenho escolar, mas com índices de medo, ansiedade, stress, locus interno, auto-estima não satisfatórios, e pais autoritativos (progenitores que fixam regras claras, também, mas que fazem da democraticidade, do respeito pelas opiniões dos descendentes, pela sua valorização elementos determinantes, não raro conseguindo contribuir para filhos nos quais se detectam não apenas bom rendimento escolar, como auto-estima, locus interno, resiliência muito consideráveis).
7.A democracia aprende-se, também, na escola: alunos e professores podem definir, e definem, em conjunto, regras/padrões (comportamentais) para um inteiro ano escolar e levam-nas a sério - uma turma, por exemplo, compromete-se, em caso de barulho de um seu elemento, a levantar-se, em uníssono, para dez voltas à sala a bater palmas (eficácia e auto-controlo). E um Professor pode combinar e/ou fixar, metas para o aluno, não apenas de índole académica, mas de competências pessoais e sociais. É a pessoa toda - e não apenas o estudante, ou, por exemplo, o desportista - que está em causa.
8."Numerosas empresas dos EUA estão a formar os seus quadros no sentido do reenquadramento" (p.72): perante uma dada situação, conseguir percepcioná-la/compreendê-la de modo novo, de tal sorte que se alcance o filtrar do que não interessa em uma dada circunstância (e, portanto, se abdique de um pessimismo desesperado, e se (e)labore em sentido construtivo), eis o desiderato. Note-se: "o reenquadramento altera a química do cérebro, bem como o modo como interpretamos dor, medo, ansiedade" (p.75). E a linguagem é, justamente, um poderosíssimo instrumento de reenquadramento: "a linguagem é uma escolha e muda o que sentimos" (p.76/78). Pode/deve auxiliar - o reenquadramento - a criança a não se concentrar no que não consegue, mas, ao invés, no que alcança (tem capacidade de alcançar). Aqui, importa ter especiais cuidados: muito do que pensamos de nós mesmos advém do que nos disseram, repetiram (à exaustão) em idades precoces. A imagem que construíram (e nos passaram) de nós mesmos. Ora, este instalar de crenças nos filhos ("ele é anti-social", "ela é terrível a Matemática", "ela não é muito estudiosa") inculca, ou é susceptível de promover, um auto-conceito (fixista) que contém elementos potencialmente perturbadores, ou, no limite, destrutivos. Separar a pessoa do problema revela-se aqui decisivo.
9.Segundo a lógica dinamarquesa, alunos com diferentes performances no domínio académico (mais brilhantes, ou não tão conseguidos a esse nível), ou em termos de competências sociais (tímidos, ou gregários) devem juntar-se, na medida em que, desta forma, poderão apreciar as diferentes qualidades de cada um, e valorizá-las devidamente (empatia).
10. A expressão hygge (lê-se huga) tipicamente dinamarquesa, significa aconchego, e remete para o ambiente de relacionamento - há velas, bolos e chá; não há televisões ligadas, ipad, iphones e gadjets que tais -, no qual família e amigos - o mais importante preditor de felicidade -, estão em locus amenus, situam-se em um estádio (ambiência) em que os problemas ficaram à porta, o eu cedeu ao nós, a dimensão colaborativa está muito presente, a sensação de qualidade de existência exaltada. Os dinamarqueses partem do pre-conceito de que a criança é boa: escolhem um modo de agir a partir desta premissa. Não acreditam na concepção antropológica mais pessimista, o Homem mau e egoísta, guiado, exclusivamente, pelo interesse próprio: "a empatia é visível em todo o tipo de animais" (p.102); "estamos programados para a empatia" (p.102); "a empatia não é um luxo, mas uma necessidade" (Daniel Siegel). Nas Escolas, há programas, por exemplo dos 3-8 anos, como o Livre de Bullying, em que os alunos aprendem, em cartões, a interpretar expressões faciais, emoções, sentimentos - sem os julgar. É muito raro um pai dinamarquês criticar uma criança, junto ao filho. Um dos pilares, para os dinamarqueses, de gerar empatia, passa por não fazer julgamentos dos outros.
11. Os professores dinamarqueses são formados segundo o princípio differentiere - o que significa, formados para olhar cada aluno como uma pessoa com necessidades específicas (p.128). Não se trabalha para um aluno médio, indistinto, uniforme, abstracto (uma das críticas de Joaquim Azevedo ao modelo educativo português). E nas escolas, como em casa - é muito raro observar-se um pai dinamarquês aos berros com a prole -, procura-se evitar os problemas a castigá-los. Como? Por exemplo: alunos hiperactivos podem sentar-se em almofadas terapêuticas insufláveis, o que as ajuda a concentrar-se nas aulas(p.128).
12. A generosa missão que consiste em ser pai demanda um grau elevadíssimo de auto-consciência. Nomeadamente, quanto aos padrões de resposta (educativa), as reacções relativas a momentos indesejáveis dos meninos, soluções, estas, tantas vezes incorporadas desde a própria infância (e do modo como foram educados). Por vezes, tal é assumido como o que deve ser feito, a resposta adequada, as coisas como elas são. Sem discussão. Não há, em tais casos, a interiorização que a resposta que foi dada poderia ter sido diferente: "se for a Itália, verá crianças a jantar às nove da noite e a correr pelos restaurantes quase à meia-noite; na Noruega, os bebés são regularmente deixados a dormir ao ar livre com temperaturas negativas; e os miúdos belgas têm permissão para beber cerveja"(p.23). O ideal do espectador imparcial (A.Smith) se pode ser posto em causa - na sua real operatividade -, reclama, pelo menos, uma espécie de educação comparada (para evitarmos armadilhas de uma perspectiva excessivamente particularista). Os pais dinamarqueses perceberam que as lutas de poder, por tudo e por nada, no interior da relação familiar, só deterioram o ambiente entre todos ("na comida, sempre que puder dê uma alternativa ao seu filho", p.135; quer dizer: valerá uma exaltação exasperada a recusa da couve de Bruxelas?).
13. A punição física é, ainda, permitida em 19 estados norte-americanos. O castigo corporal é aceite em colégios privados de 50 estados dos EUA. Alguns estudos sugerem que 90% dos americanos usam o castigo físico como forma de disciplinar os filhos. Na Dinamarca, o fim da punição física nas escolas deu-se em 1967 (em Portugal, tal apenas sucedeu em meados dos anos 90, do século passado).
Seja como for, há um extraordinário acervo de reflexões, intuições, práticas, estudos, instituições que nos são proporcionadas nesta obra e que resultam em uma sabedoria de experiências feita que merece consideração e estudo. E os dinamarqueses são os mais felizes do mundo há 40 anos.
Pedro Miranda
(publicado no jornal I)
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