LIVROS, DEBATES, CONHECIMENTO, TROCA DE IDEIAS EM MATEUS
LIVROS, DEBATES, CONHECIMENTO, TROCA DE IDEIAS EM MATEUS
Domingo
gordo (de contentamento intelectual) na Casa
de Mateus. Principiando, depois de almoço, com a apresentação dos dois volumes
de memórias de Álvaro Vasconcelos (“Memórias
em tempo de amnésia”), realizada pela crítica cultural e investigadora da
Universidade do Minho, Ana Cristina
Pereira (Kitty Furtado), e pelo
escritor Valter Hugo Mãe. Das suas
exposições, bem sistematizadas, resultou inscreveram-se as obras em apreço no “dever
de memória” (de que falou Primo Levi),
destacando-se, nelas, a i) REIVINDICAÇÃO
do autor, também presente na sala, através do resgate de vivências da sua
experiência em Moçambique sob administração portuguesa (nomeadamente, nos anos
50/60), DO DIREITO A NÃO SER PERPETRADOR
DE VIOLÊNCIA sobre outrem (maxime,
no contexto histórico do século XX, registe-se, o testemunho de vida dos
alemães que ofereceram a sua existência para procurar esconder, acolher, salvar
judeus sob o III Reich) e ii) a
referência à elaboração de um CONSTRUTO
DE SAUDADE (conceito/apelo emocional), utilizado como INSTRUMENTO POLÍTICO, ao tempo do ‘Estado Novo’, susceptível
de ‘cativar’ portugueses, mesmo em saída, à “terra”, de modo a que (também) as
suas divisas ficassem ‘presas’ a Portugal.
[sobre o I Volume destas Memórias de Álvaro Vasconcelos, escrevi aqui: https://desinflacionar.blogspot.com/2023/02/memorias-em-tempo-de-amnesia.html]
Os temas da guerra e da paz perpassam,
hoje, o nosso quotidiano e a atenção dos cidadãos presentes foi convocada, de
seguida, na tarde vilarealense, para o debate, sobre os conflitos a decorrer na
Ucrânia e em Gaza, entre o especialista em Relações
Internacionais e ex-ministro da
Defesa José Azeredo Lopes e o também
docente universitário de Relações
Internacionais e ex-vice-presidente
da Assembleia da República, José
Manuel Pureza, moderados, exemplarmente, pelo Mestre em Direito e músico David Dominguez Ramos, impulsionador
deste encontro.
Numa exposição que combinou doses bastantes de inteligência céptica, argúcia e conhecimento profundo dos dossiers em causa, José Azeredo Lopes – que deu o texto de Putin, em 2014, após a tomada da Crimeia, aos seus alunos da Universidade de Barcelona, para estudarem, à época considerada, tal decisão do docente, algo “extravagante” - alertou, num primeiro momento do diálogo (sobre o conflito que decorre na Ucrânia), para a impossibilidade de uma completa vitória frente à Rússia de Putin (no sentido de um regresso a um status quo anterior a 2014, nomeadamente), apontando para a noção de que o voluntarismo não chega quando se colocam as expectativas num ‘tudo ou nada’ – considerando, esse, o excesso de expectativas, um erro político-diplomático, na medida em que Moscovo nunca se permitirá concessões, entendendo que perder é perder tudo, é ‘morrer’ (“se eu perco, estou morto”); “houve uma absolutização da guerra” [de aposta de uma vitória total na guerra] -, e isto numa altura em que, face a avanços pouco manifestos/visíveis da contra-ofensiva ucraniana dos últimos meses, milhares de jovens daquela nacionalidade fogem do país (pagando, sabe-se, para o efeito, cerca de 15 mil euros – numa região muito marcada pela corrupção, encontrando-se, esta, em posições muito pouco apetecíveis nos Índices de Transparência internacional) e o recrutamento para a linha da frente é, agora, cada vez mais difícil (muitos mortos e estropiados entre os militares; até Agosto, 500 mil militares morreram, contabilizando as baixas dos dois lados do conflito, de acordo com os norte-americanos), e isto, também, no momento em que a corrida de líderes europeus para Kiev parece ter abrandado seriamente (sendo que a presença destes era, igualmente, um suporte, político e anímico, importante para quem está a dar a vida nesta luta). As sanções (económicas) – “se nos tivéssemos mobilizado em termos industriais teríamos ganho” - parecem não ter dado os resultados esperados. De acordo com José Manuel Pureza, “nunca deram, desde o tempo da Sociedade das Nações”, e Azeredo Lopes lembrou, embora em contexto bem diverso e num cenário limite de desrespeito pelos direitos humanos, outros momentos de sanções que tiveram efeitos muito negativos sobre as populações: em especial, aquelas acometidas ao Iraque, liderado por Saddam Hussein, resultaram em 800 mil mortes (de forma direta e indireta), tendo a altura média da população diminuído 7 centímetros (!). Com a guerra de agressão da Rússia de Putin à Ucrânia, assistiu-se a uma (antes subestimada) recomposição das Relações Internacionais, sendo, neste âmbito, de sublinhar a junção Irão-Rússia (não previsível antes da guerra iniciada em Fevereiro de 2022). Na elaboração e comunicação jurídicas – aos organismos internacionais competentes - que fez no momento prévio ao ataque à Ucrânia, a Rússia escudou-se no que vira fazer e argumentar para o espoletar da guerra do Iraque (2003) e (nos anos 90) no Kosovo (anotou todos os erros que nos anos e décadas prévias à atual agressão haviam ocorrido por parte de outros actores na cena internacional; “nas Relações Internacionais nada passa” [nada é passado, nada fica, para sempre no passado; por vezes, apenas a marinar até um dia, talvez sem se dar por ela, rebentar]). Na Líbia, em 2011, “interviemos” quando “não havia a necessidade de enviarmos a NATO”. Azeredo Lopes, mostrando-se, pois, reitere-se, muito pouco crente quanto à possibilidade de uma (completa) vitória sobre a Rússia – só em indemnizações relativamente a danos em território ucraniano, o académico contabiliza mais de 700 mil milhões de euros; uma vitória total faria recair sobre os russos o custear de todo este montante, a que acresceria o levar a julgamento os seus dirigentes, obter a sua condenação, ao mesmo tempo que se regressaria territorialmente ao antes de 2014, o que, sendo algo que desejávamos não será possível - entende que nos próximos tempos poderemos assistir a uma mudança no discurso europeu sobre o tema (uma UE que lamenta “volúvel e com falta de consistência” no seu posicionamento internacional). Em caso da vitória de Trump nas Presidenciais de 2024, o ex-governante português dá crédito às palavras daquele líder político, no sentido de que a guerra acabará no dia seguinte (Trump “fechará a torneira”, de imediato, à Ucrânia e aproximar-se-á de Moscovo).
Um ponto central, e transversal às disputas
na Ucrânia e em Gaza, no discurso de José Manuel Pureza passou pela acérrima defesa de fissuras, nichos,
pequenos pólos de contacto entre as partes que contribuam para que o diálogo
não se feche em definitivo. Assim, o grupo que negociou as questões dos cereais
na Ucrânia; assim, a ONG “Combatants for peace”, formada por ex soldados israelitas
e palestinianos que, cara a cara, se perguntam (mutuamente) “porque me odeias
tanto?” – cujos vídeos podem ser observados no youtube, de resto – e do qual
vai resultando um aproximar, mesmo que ultraminoritário, de humanidade e de um
mínimo de tentativas de perspectivas políticas (algo do género deu o seu
contributo aos acordos de Oslo).
Azeredo
Lopes vê Gaza “ocupada”, porque “quem lá está não pode fazer o que quer” e faz
uma síntese da realidade destas semanas sob a forma de uma “matemática
aterradora”: há 70 crianças mortas por cada comandante do Hamas abatido; em 48 dias de guerra, já se quebraram, em Gaza,
recordes de destruição do edificado (mais de 50% dos edifícios destruídos) por
relação com os (nada menos do que) 3 anos de horror pelo qual passou Aleppo; o Ministério da Saúde de Gaza, mau grado o controlo do Hamas, “tem uma tradição sólida de dizer a verdade”,
sendo que a “BBC fez estudo muito
completo” que corroborou as mais de
15 mil mortes – provavelmente, 20
mil, com as pessoas nos escombros – já registadas nos ataques a Gaza. O rácio de mortes de israelitas para
palestinianos é de 1/20. Também na reacção ao massacre perpetrado pelo Hamas – que um dia “a História revelará como foi possível, durante horas, com milhares de
câmaras, num território pequeno, com um dos exércitos mais sofisticados do
mundo. Conheço Israel e sei que eles vão mesmo apurar como foi possível” -,
ao evocar o 11 de Setembro – Israel a dizer que no rácio vítimas/população a relação foi de “15 onzes de Setembro” -,
o que pretendeu em termos político-diplomáticos “foi parasitar a reacção
norte-americana” à época (pese, nas últimas semanas, Biden ter alertado para as
consequências de o fazerem).
Um
estudioso holandês, que estudou todas as resoluções da ONU, concluiu que em
nenhuma destas existe o direito a legítima defesa contra o terrorismo/contra
terroristas ao abrigo do artº51º da Carta das Nações Unidas – que aqui se
indaga, ao nível das discussões no espaço público, se existe, ou não – e isto apesar
de EUA (direito registado nos manuais do Exército), França (depois do Bataclan),
Alemanha (no pós-Síria) o consagrarem; mesmo o Estado português falou em
legítima defesa de Israel do seu território e da sua população – o que é diverso
da legítima defesa contra terroristas no âmbito do mencionado normativo legal
internacional. Israel tem das melhores e mais bem
apetrechadas escolas de juristas especializados e mobilizados na justificação
(político) jurídica do seus actos. Mesmo os momentos de pausa no conflito Israel-Hamas
terem mediadores como o Catar – ou Egipto, Tailândia…- não deixa de arrepiar. Quanto
à ONU, “será sempre aquilo que os Estados queiram” que ela seja (como, aliás,
qualquer organização de natureza próxima).
Numa sessão sempre bem moderada por David Ramos, com pertinentes provocações aos convidados, da plateia
surgiu uma última questão: porque é que
as pessoas de esquerda estão todas ao lado da Palestina e as de direita todas
ao lado de Israel. “Eu sou de esquerda e a favor de Israel”, retorquiu Azeredo
Lopes, que sempre se referiu “aos bandidos do Hamas”, sem prejuízo de não
poder acompanhar a política e a resposta que o Governo de Netanyahu tem
produzido.
[sobre o I Volume destas Memórias de Álvaro Vasconcelos, escrevi aqui: https://desinflacionar.blogspot.com/2023/02/memorias-em-tempo-de-amnesia.html]
Numa exposição que combinou doses bastantes de inteligência céptica, argúcia e conhecimento profundo dos dossiers em causa, José Azeredo Lopes – que deu o texto de Putin, em 2014, após a tomada da Crimeia, aos seus alunos da Universidade de Barcelona, para estudarem, à época considerada, tal decisão do docente, algo “extravagante” - alertou, num primeiro momento do diálogo (sobre o conflito que decorre na Ucrânia), para a impossibilidade de uma completa vitória frente à Rússia de Putin (no sentido de um regresso a um status quo anterior a 2014, nomeadamente), apontando para a noção de que o voluntarismo não chega quando se colocam as expectativas num ‘tudo ou nada’ – considerando, esse, o excesso de expectativas, um erro político-diplomático, na medida em que Moscovo nunca se permitirá concessões, entendendo que perder é perder tudo, é ‘morrer’ (“se eu perco, estou morto”); “houve uma absolutização da guerra” [de aposta de uma vitória total na guerra] -, e isto numa altura em que, face a avanços pouco manifestos/visíveis da contra-ofensiva ucraniana dos últimos meses, milhares de jovens daquela nacionalidade fogem do país (pagando, sabe-se, para o efeito, cerca de 15 mil euros – numa região muito marcada pela corrupção, encontrando-se, esta, em posições muito pouco apetecíveis nos Índices de Transparência internacional) e o recrutamento para a linha da frente é, agora, cada vez mais difícil (muitos mortos e estropiados entre os militares; até Agosto, 500 mil militares morreram, contabilizando as baixas dos dois lados do conflito, de acordo com os norte-americanos), e isto, também, no momento em que a corrida de líderes europeus para Kiev parece ter abrandado seriamente (sendo que a presença destes era, igualmente, um suporte, político e anímico, importante para quem está a dar a vida nesta luta). As sanções (económicas) – “se nos tivéssemos mobilizado em termos industriais teríamos ganho” - parecem não ter dado os resultados esperados. De acordo com José Manuel Pureza, “nunca deram, desde o tempo da Sociedade das Nações”, e Azeredo Lopes lembrou, embora em contexto bem diverso e num cenário limite de desrespeito pelos direitos humanos, outros momentos de sanções que tiveram efeitos muito negativos sobre as populações: em especial, aquelas acometidas ao Iraque, liderado por Saddam Hussein, resultaram em 800 mil mortes (de forma direta e indireta), tendo a altura média da população diminuído 7 centímetros (!). Com a guerra de agressão da Rússia de Putin à Ucrânia, assistiu-se a uma (antes subestimada) recomposição das Relações Internacionais, sendo, neste âmbito, de sublinhar a junção Irão-Rússia (não previsível antes da guerra iniciada em Fevereiro de 2022). Na elaboração e comunicação jurídicas – aos organismos internacionais competentes - que fez no momento prévio ao ataque à Ucrânia, a Rússia escudou-se no que vira fazer e argumentar para o espoletar da guerra do Iraque (2003) e (nos anos 90) no Kosovo (anotou todos os erros que nos anos e décadas prévias à atual agressão haviam ocorrido por parte de outros actores na cena internacional; “nas Relações Internacionais nada passa” [nada é passado, nada fica, para sempre no passado; por vezes, apenas a marinar até um dia, talvez sem se dar por ela, rebentar]). Na Líbia, em 2011, “interviemos” quando “não havia a necessidade de enviarmos a NATO”. Azeredo Lopes, mostrando-se, pois, reitere-se, muito pouco crente quanto à possibilidade de uma (completa) vitória sobre a Rússia – só em indemnizações relativamente a danos em território ucraniano, o académico contabiliza mais de 700 mil milhões de euros; uma vitória total faria recair sobre os russos o custear de todo este montante, a que acresceria o levar a julgamento os seus dirigentes, obter a sua condenação, ao mesmo tempo que se regressaria territorialmente ao antes de 2014, o que, sendo algo que desejávamos não será possível - entende que nos próximos tempos poderemos assistir a uma mudança no discurso europeu sobre o tema (uma UE que lamenta “volúvel e com falta de consistência” no seu posicionamento internacional). Em caso da vitória de Trump nas Presidenciais de 2024, o ex-governante português dá crédito às palavras daquele líder político, no sentido de que a guerra acabará no dia seguinte (Trump “fechará a torneira”, de imediato, à Ucrânia e aproximar-se-á de Moscovo).
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