Recordar a Assembleia Constituinte
Deixando
os tomos mais técnicos do ponto de vista jurídico, e mergulhando nas memórias
da Constituinte - ainda que não expurgadas de tecnicidade - do Professor Jorge
Miranda é possível aprender imenso sobre múltiplos aspectos histórico-políticos
e ideológicos do nosso sistema partidário. Quando debates há, no interior dos
partidos - e em anos mais recentes se veem, aliás, multiplicando - sobre a
"linha justa" e fundadora (naqueles presente), conviria revisitar
este livro/documento de um dos nossos mais reputados e respeitados
constitucionalistas.
1.Agora que se comemoram os 45 anos do
início dos trabalhos da Assembleia Constituinte, não pode deixar de ser motivo
de grande regozijo, para todos os que se interessam pelas questões
constitucionais, políticas, de história portuguesa contemporânea, a revisitação
das memórias de um grande Professor de Direito, Constitucionalista de
referência, deputado na Constituinte, cidadão com reconhecida auctoritas: o Professor Jorge Miranda.
2.A 25 de Abril de 1975, quase seis milhões de portugueses
vão votar. 91% do eleitorado, com filas desde a madrugada, vai às urnas:
"algo que nunca acontecera em Portugal e nunca mais haveria de
acontecer" (escreve Jorge Miranda, em “Da Revolução à Constituição. Memórias
da Assembleia Constituinte”, Principia, 2015). Daí que se possa dizer que
"o 25 de Abril de 1975 foi o segundo 25 de Abril, o segundo dia da
liberdade". A distribuição sócio-profissional dos deputados constituintes
faz-se com os advogados a estarem em maior número, seguindo-se, a considerável
distância, os engenheiros. Depois, o grupo dos empregados bancários e dos
operários. Havia 5 trabalhadores rurais, dois oficiais das forças armadas, duas
domésticas, dois carteiros e dois locutores.
Até o
CDS, no projecto de Constituição que apresentou, plasmava uma "via
original para um socialismo português", enquanto na sistematização
constitucional dos partidos mais à esquerda as matérias de organização
económica precediam os direitos fundamentais (o inverso sucedendo com os
projectos dos partidos durante décadas descritos como os do “arco da governação”).
Muito significativo, por sinal. No projecto de Preâmbulo, o CDS inscreveu a
necessidade de iluminação do "caminho para uma sociedade sem classes"
e dos "valores do humanismo cristão". O projecto de Constituição
apresentado pela UDP era aquele que continha menos artigos: 44; o do PPD, 153
(o mais prolixo).
E como
funcionava a Assembleia Constituinte? "Por vezes, diz-se que a Assembleia
funcionou sob pressão ou sob coação. Não é verdade. Bem pelo contrário, ela foi
- através do período antes da ordem do dia e das suas principais deliberações
entre Julho e Outubro de 1975 - um centro primordial de resistência às
tentativas de implantação de regimes vanguardistas ou basistas e de afirmação
dos princípios do constitucionalismo democrático de tipo ocidental"
(refere o deputado constituinte). E, se é verdade que os deputados "não
foram insensíveis" ao mundo em volta, imprimindo "várias expressões
ideológico-proclamatórias", contudo, "uma coisa eram as fórmulas ou a
forma, outra coisa o conteúdo. E o conteúdo essencial das opções constituintes
era de democracia pluralista e representativa".
3.Bastante interessante o evocar do esgrimir dos argumentos
travados naqueles anos da aurora da democracia, quanto a um eventual referendo
à Constituição (um debate nunca sentenciado). Jorge Miranda escreve que o que
se pretendia, por parte daqueles que queriam um referendo constitucional,
"era não já um processo para modificar a Constituição (...) mas um
processo para a substituir". O que é certo é que "os resultados da
eleição presidencial de Dezembro de 1980 resolveram este problema no sentido da
inadmissibilidade do referendo e do respeito das regras constitucionais sobre
revisão".
A lei
eleitoral então redigida, com a combinação escola de Lisboa (Jorge Miranda)/ escola
de Coimbra (Barbosa de Melo) resultou numa lei muito avançada e sofisticada que
é ainda, em muitos aspectos, a que sobrevive (são citados, neste livro, elogios
de Vital Moreira à qualidade daquela lei).
4. "Uma das maiores tristezas da
minha vida", confessa Jorge Miranda, foi o saneamento da Faculdade de
Direito. Foram 25 meses de interregno de leccionação na universidade pública,
para a qual regressaria, após a solicitação do aluno, politicamente situado,
como se sabe, bem diferentemente do que hoje, Durão Barroso, e, sobretudo, com
o empenho da então directora da Faculdade de Direito de Lisboa, interessada em
voltar a ter um corpo científico de excelência. Esta evocação pessoal permite
também dar nota do que foi um tempo político em que o instrumento do saneamento
foi utilizado com perda para várias instituições.
5.Filho de médico, irmão de médico, com um bisavô que fora
deputado às cortes, no tempo da Monarquia, e um tio-avô presidente da União
Nacional de Braga, Jorge Miranda retrata-se como um bom, mas não muito bom,
aluno durante a licenciatura, sendo que a excelência, e o "estudar a sério
Direito" lhe acontece pelo ano complementar à licenciatura (6º ano, que
faz com outros dois colegas, um deles Diogo Freitas do Amaral), tendo, em esse
âmbito, tido um dos momentos mais duros da existência com a redacção da tese em
47 dias, em Moledo, no Minho. Ao tempo do 25 de Abril de 1974, a sua
companheira trabalhava em um ministério. Ainda assim, não só acalmou temores de
tempos revolucionários, como se declara "felicíssimo" com o "dia
inicial, inteiro e limpo". Pensando vir a advogar, descobriria a vocação
do ensino que o mantém feliz, sempre. Marcello Caetano, escreve Jorge Miranda,
"foi e será sempre para mim o modelo de professor que eu gostaria de ser".
Tempos
interessantes, confissões pessoais, memórias políticas que convém revisitar
para nos compreendermos ainda hoje.
Pedro
Miranda
(publicado
no jornal I)
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