ÉTICA E CIÊNCIA. MARIA DO CÉU PATRÃO NEVES
Que relações, hoje, entre a Ética e a
Ciência? Maria do Céu Patrão Neves
Em
uma época em que uma inusitada pandemia desafiou muitas coordenadas que
tínhamos por certas, e em que, entre diversas perplexidades com que somos
confrontados por estes dias, parece podermos assistir, em tempo real, à criação
de uma vacina (para a covid-19), com os recordes de gestação deste instrumento
de combate ao (corona) vírus a serem completamente pulverizados (com o
entusiasmo, e simultâneo receio, que tal facto suscita), as relações entre
ciência e ética readquirem especial centralidade no nosso espaço público. Na
revisitação desta problemática, “O Admirável horizonte da bioética” (FLAD,
2016), da Professora Maria do Céu Patrão Neves, é um manual que merece séria
consideração.
1.Quando
sopesamos modalidades possíveis de relação da Ética face à Ciência,
impõe-se-nos, fundamentalmente, três horizontes de possibilidades, a que
correspondem graus de desejabilidade de concretização, daquele liame, bem
diversos: a) uma função de imposição de
limites - função repressiva
(pouco recomendável); b) uma função de fixação
normativa - se acompanhada de consenso ético prévio, possivelmente uma
função positiva; se assim não for, a ética permanece em zona autoritária; c) formação de consciências - de cidadãos e
cientistas (uma função desejável).
2.O
cientista, como escreve a Catedrática de Ética, especialista em Ética Aplicada
e durante mais de uma década, já no presente século, membro do Conselho
Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Maria do Céu Patrão Neves, em “O
admirável horizonte da bioética”, não pode ser ingénuo, depois de Nagasaki e
Hiroshima: está obrigado a prever as consequências/implicações do que está/vai
fazer/construir/colocar à disposição ("tornou-se evidente que a ciência
não constitui um valor em si mesma, um valor absoluto, o que justificaria os
meios implementados para a obtenção do conhecimento, mas deve antes manter-se
como um instrumento de realização das finalidades humanas. Tornou-se evidente
que todo o conhecimento tem uma aplicação prática, tendo-se esvaziado a ideia
de um conhecimento teórico puro, pelo que o cientista deve assumir a
responsabilidade de prever as consequências possíveis do saber que constrói e
de prevenir as suas utilizações nefastas", p.18). A ciência não é amoral
(e quando o é, como referia João Lobo Antunes, torna-se imoral). Mas, por outro
lado, o terreno da ética não é o da tentação do poder (com uma pretensa função de fiscal); bem mais, aquela
proporciona quadros de formação de uma consciência que o cientista, despido da
arrogância do cientismo, convoca como
parceiro de indiscutível valia e complementaridade.
3.Se
quisermos construir uma espécie de árvore genealógica da bioética,
encontraremos dois documentos primordiais, a saber: i) Código de Nuremberga, de 1947; ii) Comissão
hospitalar, de 1962, criada pelo Dr. Belding Scribner, da Washington
University, em Seattle, composta por membros da sociedade civil, para avaliar
quem seriam as pessoas a quem as escassas vagas da hemodiálise seriam
acometidas (a chamada "God's Committee", pois a comissão como que
exercia o “papel de Deus”: decidia quem vivia e quem morria). Como se percebe
por este segundo caso, a bioética surge, também, em função dos avanços
biotecnológicos - antes da hemodiálise aquele dilema ético, acima assinalado,
não se colocava.
4.Em
1900, surgira, já, um documento legal, de um ministro do governo da Prússia,
para regular a experimentação humana; do mesmo modo, em 1931, o governo alemão
alertava para a necessidade de experimentação humana para o desenvolvimento da
ciência e o florescimento humano, mas com as devidas precauções éticas. Estas,
por sua vez, foram completamente tolhidas não apenas pelos médicos ao serviço
do nazismo, como por membros do exército japonês na invasão à China, no decurso
da II Guerra Mundial. "Hoje, como ontem, a experimentação humana é
reconhecida como indispensável para o progresso das ciências biomédicas"
(p.35), assinala, com efeito, Maria do Céu Patrão Neves. De aí que obrigatória
se tornasse a elaboração de normas para acautelar aqueles que participariam em
tais experimentos e identificação de populações especialmente vulneráveis.
Normas apertadas a Ocidente, refira-se, levaram a deslocalização de
experimentação para outras paragens. Mas na década de 90 do séc.XX, a situação
alterou-se: o homem branco de 30 anos, retirava conclusões - das experiências
em que participara - que não eram extensíveis para mulheres, crianças ou
pessoas de outras etnias. Estas, vão, pois, reclamar ser incluídas em futuros
experimentos médicos.
5.Fundamental, neste contexto, vem a
ser a questão do consentimento informado
por parte de quem é sujeito de experimentação. Duas perguntas afiguram-se como
imprescindíveis esclarecer em cada circunstância experimental: a) que
informação foi transmitida ao participante? b) que processo esteve na base do
seu consentimento?
Entre as questões éticas que se colocam aos participantes em processos de experimentação médica contam-se, ademais, a pressão que exercem os próprios escolhidos, quando há excesso de candidatos - este, um dado quase sempre silenciado quando casos mediáticos irrompem neste domínio; a responsabilidade de se ser voluntário, mesmo sem compensação; a compensação, quando a esta há lugar, atribuída aos recrutados...
6.Ainda hoje, por outro prisma, se discute quer a quantidade, quer a qualidade de informação a passar (a um doente) para aceitação, por parte deste, de qualquer procedimento invasivo, nomeadamente, por exemplo, a questão do exacerbar de riscos residuais na economia de dados a transmitir, no caldeamento, ainda, dos benefícios a retirar para o próprio. Assim, "simultaneamente, a exigência de consentimento informado conduziu também à comunicação abrupta de informações por vezes muito graves acerca da situação clínica do doente, num acto de violência psicológica que se repete quotidianamente. Importa investir em técnicas de comunicação para, sem nunca mentir, saber ir transmitindo as notícias devidas à medida da capacidade de assimilação da pessoa em causa. A inexistência da prática de confirmação da correcta compreensão da informação prestada ameaça também a qualidade do consentimento informado, pelo que deve ser adequadamente exercida" (p.39).
Pedro Miranda
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